Revista Exame

Como o agronegócio brasileiro irá se reinventar nos próximos dez anos

Os novos saltos de produção precisarão ser conjugados com as demandas dos consumidores e as exigências ambientais — tudo isso regado com muita tecnologia

Carminha Maria Gatto Missio, produtora de soja no oeste da Bahia: há quatro anos, sua propriedade de 6.000 hectares utiliza insumos naturais, feitos à base de bactérias e fungos, para combater pragas e aumentar a fertilidade do solo (Calan Sanderson/Divulgação)

Carminha Maria Gatto Missio, produtora de soja no oeste da Bahia: há quatro anos, sua propriedade de 6.000 hectares utiliza insumos naturais, feitos à base de bactérias e fungos, para combater pragas e aumentar a fertilidade do solo (Calan Sanderson/Divulgação)

CA

Carla Aranha

Publicado em 15 de abril de 2021 às 05h09.

Última atualização em 15 de abril de 2021 às 09h54.

Há quatro anos, a agricultora Carminha Maria ­Gatto Missio, uma das maiores produtoras de soja do oeste da Bahia, decidiu tomar uma rota diferente de muitos de seus vizinhos. Em 2017, ela passou a comprar insumos naturais, feitos à base de bactérias e fungos, desenvolvidos para combater pragas e aumentar a fertilidade do solo. Ela também certificou sua propriedade, de 6.000 hectares, na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) para utilizar micro-organismos desenvolvidos pela instituição no controle de doenças como alternativa a agrotóxicos. A iniciativa está longe de ser experimental, mas não é prática tão comum entre os grandes produtores. Hoje, o mercado de bioinsumos, como são chamados esses produtos, movimenta cerca de 1 bilhão de ­reais por ano, o dobro do registrado cinco anos atrás.

Missio está animada com os resultados dessa nova abordagem no campo. No ano passado, a produtividade média de sua fazenda foi de 63 sacas de soja por hectare (a média nacional foi de 55 sacas). Neste ano, ela deve faturar cerca de 36 milhões de reais, 12,5% mais do que em 2020.

“Nosso agronegócio é conhecido por ser muito produtivo e inovador, mas o que impressiona os clientes hoje são os avanços em relação à preservação ambiental”, diz a produtora que, em 2019, recebeu na fazenda um grupo de 15 embaixadores que foram à região a convite da Confederação Nacional de Agricultura. No tour pela propriedade, os diplomatas puderam acompanhar trabalhos de reflorestamento das margens de nascentes de rios e da mata local.

A agricultora de Luís Eduardo Magalhães, na Bahia, é uma entre muitos produtores rurais brasileiros que estão conscientes de que o agronegócio está em profunda transformação. Como ela, 57% dos fazendeiros do país já utilizam métodos de fertilização naturais e 78% fazem o controle biológico de pragas, segundo uma pesquisa da consultoria McKinsey realizada no início do ano.

“Há uma demanda crescente pelo uso mais eficaz e produtivo de defensivos agrícolas e pela preservação ambiental, o que se reflete também em novas exigências das empresas de comércio exterior e das redes de varejo”, diz Nelson Ferreira, sócio sênior da McKinsey. “Muitos já entenderam que é preciso começar a implementar uma série de tecnologias e inovações sustentáveis para estar bem posicionado no mercado no médio e longo prazo.”

Quem não entender o recado corre o risco de sofrer no bolso. O Banco Central lançou em março uma consulta pública para a incorporação de critérios relativos à agricultura de baixa emissão de carbono e a utilização de energias renováveis na fazenda para a concessão de crédito rural. A medida deverá entrar em vigor no início de julho. Os fazendeiros que adotarem essas práticas deverão ter acesso a condições melhores de financiamento.

O banco Santander já utiliza critérios semelhantes para negociar empréstimos para cooperativas agrícolas e grandes empresas do setor. Iniciativas como a revitalização de nascentes podem gerar descontos na taxa de juro. “Temos um departamento de sustentabilidade com funcionários que cuidam só desse tipo de avaliação”, diz Carlos Aguiar, diretor de agronegócio do Santander.

Não é por acaso que 33% dos produtores rurais brasileiros consideram altamente estratégico medir o impacto ambiental de seu negócio e 47% dizem que é importante reportar de maneira mais eficiente esse aspecto da gestão, de acordo com uma pesquisa da consultoria PwC publicada com exclusividade pela EXAME.

“O agronegócio está passando por uma revolução para se preparar para o futuro, o que envolve aprimorar a gestão e investir em novas tecnologias e políticas ESG [sigla em inglês para ambiental, social e governança]”, diz Mauricio Moraes, líder de agronegócio da PwC. Tudo isso, claro, em meio a uma crise sanitária. “Apesar do contexto econômico e social da pandemia, o agronegócio superou as expectativas no último ano”, diz Pedro Parente, presidente do conselho de administração da BRF.

O tema foi debatido no dia 8 de abril no evento online Superagro 2021, promovido pela EXAME, que contou com a participação de executivos de grandes empresas, governadores, embaixadores, especialistas e fundadores de startups.

Joe Valle, produtor de orgânicos em Brasília: as 5.000 toneladas de hortaliças são vendidas em grandes varejistas e na rede de lojas próprias que ele criou (Cristiano Mariz/Divulgação/Exame)

A história de sucesso do campo nacional já marca quatro décadas. Nos últimos dez anos, o cultivo de grãos aumentou 72,5%, chegando a 257 milhões de toneladas na última safra, um recorde histórico. Neste ano, deverá ser batido um novo marco, com a colheita de 272 milhões de toneladas, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento.

Para 2030, o Ministério da Agricultura projeta um cenário com quase 370 milhões de toneladas de produção de grãos, o principal motor da agricultura brasileira. Esse avanço virá, sobretudo, do aumento da produtividade média, de 3% ao ano (percentual que se mantém consistente desde os anos 1970).

Nessa toa­da, o PIB do agronegócio, que em 2020 respondeu por 24% do total da geração de riqueza no país, deverá alcançar o patamar de quase 3 trilhões de reais no fim da década, a preços de hoje. No ano passado, o agronegócio movimentou 2 trilhões de reais.

Esse crescimento virá da produção de commodities consagradas, como a soja, mas também de segmentos considerados nichos de mercado ou de lavouras que nem sequer existiam no país. Esse é o caso da cannabis cultivada para fins medicinais. Proibida no Brasil, a cultura foi legalizada em países como Canadá e Estados Unidos.

Há quem já se prepare para o cenário aqui. Criada em 2015, a Entourage passou seus primeiros cinco anos em projetos de pesquisa sobre a aplicação da cannabis na fabricação de medicamentos. A empresa, que já recebeu aportes da ordem de 25 milhões de reais de grupos estrangeiros e investidores particulares, deverá lançar os primeiros remédios à base de canabidiol para combater dores crônicas e enjoos fortes, comuns em quem faz quimioterapia (é necessário ter prescrição médica).

“A expectativa é que o cultivo para fins medicinais seja permitido no Brasil, o que deve impulsionar esse mercado”, diz Caio Abreu, fundador da empresa.

Claudinei Saldanha Júnior, produtor de leite orgânico no interior de São Paulo: na fazenda que fornece para a Nestlé, o lema é vacas “felizes” produzem um leite melhor (Leandro Fonseca/Exame)

Outro mercado promissor para o agro é o de carnes vegetais. Símbolo da transformação dos desejos do consumidor, a startup brasileira Fazenda Futuro chegou a 15 países com produtos como hambúrguer, linguiça e almôndegas à base de plantas e desembarca em maio no concorrido mercado americano.

Por lá, a concorrente Beyond Meat, desde sua oferta inicial de ações em 2019, foi de pouco mais de 1 bilhão para 8 bilhões de dólares em valor de mercado. Para o fundador da Fazenda Futuro, Marcos Leta, o mercado para as carnes de planta é um caminho sem volta.

Neste ano, a empresa também lançou seu hambúrguer de planta “versão 2030”, com menos sódio e mais produtos orgânicos — uma acusação comum aos produtos do setor é de serem ultraprocessados.

Críticas à parte, empresas de todos os tipos têm lançado produtos vegetais nos últimos anos — de laticínios, como as multinacionais Nestlé e Danone, a produtores de ovos, como o grupo brasileiro Mantiqueira.

Entre os gigantes de carne bovina, um dos destaques é a Marfrig: depois de lançar seu hambúrguer vegetal em 2019 e emplacar uma parceria com o Burger King no Brasil, criou no ano passado uma joint venture com a americana ADM, de processamento de grãos.

A companhia brasileira controla 70% da nova empresa, batizada de PlantPlus Foods. A consultoria Euromonitor aponta que o mercado de substitutos da carne cresceu 70% no Brasil no último ano, embora ainda seja incipiente, chegando a 82,8 milhões de dólares em 2020 — e projeção de 132 milhões de dólares em 2025.

Um estudo recém-lançado da consultoria Boston Consulting Group estimou que os alimentos à base de planta vão capturar de 11% a até 22% do mercado de proteína global em 2035 (o relatório também ganhou as notícias por afirmar que o consumo de carne atingirá seu “pico” em 2025 nos Estados Unidos e na Europa). “O Brasil pode se tornar um polo de produção de plant based para o mundo”, diz Leta.

Os alimentos orgânicos são uma das novidades que já se impuseram. Em 2020, o setor movimentou cerca de 6 bilhões de reais, um crescimento de 30% em relação a 2019. Até 2025, a projeção é de uma expansão de 30%, de acordo com a Euromonitor.

“Os apelos da alimentação saudável e o ganho de escala que os produtores vêm obtendo estão ajudando a encher as prateleiras dos supermercados com os orgânicos”, diz Rodrigo Godoi, analista da Euromonitor. O engenheiro florestal Joe Valle, de Brasília, vem acompanhando de perto essas transformações. Neto de pequenos produtores rurais do Distrito Federal, ele resolveu voltar às origens em 1985, quando comprou uma área de 13 hectares perto de Brasília, para cultivar hortaliças.

Depois de sofrer uma intoxicação com agroquímicos, o engenheiro passou a pesquisar o uso de insumos naturais. Hoje, ele cultiva em uma área quatro vezes maior e colhe 5.000 toneladas de hortaliças por ano. Boa parte da produção segue para grandes redes de varejo, como Carrefour e Oba. Com o aumento das vendas, o produtor decidiu abrir há três anos uma rede de lojas próprias em Brasília. O Mercado Malunga tem hoje seis unidades na capital. No ano passado, Valle faturou quase 40 milhões de reais.

A expectativa para os próximos cinco anos é chegar a pelo menos 75 milhões de reais. “Não tenho dúvidas que o cultivo orgânico será uma das maiores vertentes do agronegócio em um futuro próximo”, diz.

O interesse por orgânicos não se limita ao varejo. Grandes empresas, como a Nestlé, também vêm investindo no segmento. Para criar produtos à base de leite orgânico, a empresa teve de criar uma cadeia de fornecimento no interior de São Paulo.

O produtor Claudinei Saldanha Júnior, de Itirapina, faz parte dela. Em 2016, começou a fornecer leite orgânico para a multinacional. Isso ocorreu três anos depois de o produtor transformar o então haras da família em uma fazenda de produção de leite de olho no potencial do mercado para bebidas orgânicas.

A receita da propriedade chegou a 560.000 reais em 2020 e, nos próximos cinco anos, deverá atingir o patamar de 1,3 milhão de reais. Na fazenda de Júnior, o lema é que vacas “felizes” produzem um leite melhor. Ele implementou um sistema para o bem-estar animal que utiliza sensores (colocados nas orelhas das vacas) que medem desde alterações da temperatura corpórea até os batimentos cardíacos. “Nos últimos anos, houve um grande processo de inclusão digital e profissionalização dos nossos pequenos produtores”, diz Barbara Sollero, gerente de qualidade e desenvolvimento de fornecedores na cadeia do leite da Nestlé.

Desde 2018, um aplicativo criado pela empresa ajuda os produtores a controlar as vendas, as notas fiscais e até a gestão da água. O objetivo agora é ampliar iniciativas para integrar o pasto com plantação e floresta para reduzir a pegada de carbono do gado. Como outros gigantes, a Nestlé tem o compromisso de zerar as emissões de carbono até 2050, investindo 3,6 bilhões de dólares globalmente.

(Arte/Exame)

Da fazenda à mesa, empresas de toda a cadeia alimentar já começam a se movimentar para as demandas do futuro. A BRF, dona de marcas como Perdigão e Sadia, lançou em dezembro passado o projeto Visão 2030. O objetivo é ampliar a produção e lançar novas frentes de negócio para o consumidor do futuro, de modo a atingir 100 bilhões de reais em faturamento, ante 39,5 bilhões no ano passado.

“Como a companhia vai chegar lá? Não é fazendo a mesma coisa, do jeito que sempre foi”, diz o presidente Lorival Luz. Investimento em produtividade junto com os produtores parceiros é o pilar indispensável desse planejamento. A partir deste ano, os principais executivos da BRF passam também a ter metas de sustentabilidade diretas, como rastrear 100% da cadeia de fornecedores de grãos (diretos e indiretos) e reduzir o uso de água na produção.

“Hoje todo mundo diz que está ‘ok’ com a frente ambiental. Mas não está. Todas as empresas e os setores ainda precisam dar um passo”, diz Luz.

A busca por essas novas soluções no agro passam invariavelmente por novas tecnologias. Na Coopercitrus, maior cooperativa do Brasil, com sede em Bebedouro, interior de São Paulo, os 37.000 produtores associados devem se beneficiar de uma série de projetos em curso para melhorar a produtividade de pequenas propriedades.

Um dos serviços, de piloto automático em tratores guiado por satélite, tem sido capaz de aumentar em mais de 10% a produtividade em uma mesma área. Para capacitar os produtores para a tomada de decisão, a Coopercitrus criou também um curso de big data no agro em parceria com a Faculdade de Tecnologia de São Paulo, e lançará neste ano uma plataforma digital para substituir sua tradicional feira, paralisada em meio à pandemia.

Sergio Rocha, da Agrotools: a startup criou tecnologia de monitoramento por satélite capaz de acompanhar toda a cadeia das empresas do agro, do campo à prateleira (Leandro Fonseca/Exame)

Se por um lado novidades tecnológicas aportam em fazendas de todo o Brasil, há ainda um imenso contingente de propriedades que não usufruem de técnicas já dominadas. A agricultura familiar, que responde por 70% da mesa do brasileiro, segue majoritariamente sem acesso à tecnologia, com pouco crédito e dificuldade em aplicar as informações sobre como ampliar a produção. Mais de 2 milhões de famílias agricultoras ganham menos de 5.000 reais por ano, vivendo na linha da pobreza.

O Censo Agro 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostrou que 21% dos produtores brasileiros não sabem ler nem escrever e 43% não completaram o ensino fundamental. Essas limitações tornam quase impossível que gráficos de produtividade, clima ou informações sobre insumos sejam interpretados pelos produtores sem assistência. Problemas de infraestrutura, como a péssima logística de transporte no Brasil e a falta de internet de qualidade no campo, também seguem sendo gargalos.

É um mundo ainda muito longe do 5G, dos satélites e dos sensores avançados. Uma pesquisa do Sebrae junto com a Embrapa constatou que 95% dos produtores já tinham um smartphone, mas não conseguiam se apropriar dos recursos e aplicativos para melhorar sua produção.

O engenheiro-agrônomo Alexandre Chequim, um dos fundadores e presidente da startup agrícola DigiFarmz, diz que o Brasil poderia estar produzindo, em média, três vezes mais soja, por exemplo, mas ainda falta informação no campo.

Chequim, que é neto e filho de produtores rurais, criou o que classifica como “Waze do agro”: uma ferramenta com recomendações sobre qual insumo usar ou como se adaptar a alguma variação específica do clima, guiando os produtores clientes de forma customizada do plantio à colheita.

São mais de 200.000 hectares sob gestão da DigiFarmz, de pequenos a grandes produtores. Depois de quadruplicar sua área atendida e o faturamento na última safra, a DigiFarmz vai entrar neste ano nas culturas de trigo e milho. Chequim diz que as fazendas clientes chegam a triplicar a produção com as soluções, podendo produzir de três a 18 sacos de soja a mais por hectare acima da média nacional (de 55 sacos), mas há recordes na casa dos 150, mostrando que é possível subir a régua.

(Arte/Exame)

Elo fraco

Apesar das iniciativas de aprimoramento da governança no campo, quase todas as grandes produtoras agropecuárias e empresas da indústria de alimentos têm, ainda, algum elo fraco em sua cadeia. Um relatório feito pela organização Chain Research Reaction (CRR) mostrou que as principais multinacionais de grãos e pecuá­ria compraram de produtores que desmataram, só no Cerrado, o equivalente a 110.000 hectares.

Ao todo, foram mais de 700.000 hectares desmatados no Cerrado em 2020, alta de 13% (mais de 100 vezes o tamanho de ­Manhattan, em Nova York). “As empresas estão altamente expostas a esse desmatamento em suas cadeias, indo contra suas próprias políticas”, diz o pesquisador mexicano Marco Túlio Garcia, da ONG holandesa Aidenvironment, parceira da CRR.

Um dos objetivos dos relatórios da organização é apontar às empresas e instituições financeiras suas ligações com o desmatamento na ponta, de modo, inclusive, a prevenir riscos. Outro estudo, este do professor Raoni Rajão, da Universidade Federal de Minas Gerais, concluiu que 20% da soja brasileira exportada para a União Europeia tinha alguma origem em desmatamento ou uso ilegal de terras do Estado.

É o que Rajão classifica como “as maçãs podres” do agro brasileiro. Para ele, as cadeias ainda são insuficientemente transparentes para rebater as críticas do exterior (leia o texto na página 57). Na outra ponta, o setor público precisa ampliar o investimento em fiscalização para evitar crimes ambientais.

A boa notícia é que o Brasil tem tudo para chegar lá se fizer a lição de casa — e souber comunicá-la. A JBS, como líder mundial em pecuária bovina, é uma das que têm investido na transformação do setor. A empresa anunciou neste ano a meta de ser carbono zero em 2040, dez anos antes do prazo estipulado pela ONU. Criou também um fundo que pode chegar a 1 bilhão de reais com aportes da empresa e de outros financiadores, para ampliar o desenvolvimento sustentável, investimento em ciência e apoio a comunidades no bioma amazônico.

Até chegar a emissões zero, terá o desafio de lidar com as pontas soltas de sua cadeia, garantindo que seus produtores não comprem de áreas desmatadas. Fábio Dias, diretor de relacionamento com os pecuaristas da JBS, aponta que a empresa compra diretamente de mais de 25.000 fazendas por ano, com mais de 600 negócios fechados por dia em média. Mas é em outros milhares de fornecedores indiretos que está o maior desafio.

A JBS lançou uma plataforma em que os produtores que vendem para a empresa conseguem garantir também a legalidade dos produtos que eles próprios compram. “Basicamente, é fazer com que nosso parceiro exija de seu fornecedor o mesmo que nós exigimos dele”, diz Dias.

Uma das parceiras da JBS no desafio hercúleo de acompanhar milhões de hectares de plantações e pastos vem da cidade de São José dos Campos, polo tecnológico no interior de São Paulo. Foi lá que a startup Agrotools­ desenvolveu há mais de dez anos uma ferramenta de monitoramento por satélite capaz de acompanhar toda a cadeia das empresas, do campo à prateleira.

Os serviços vêm sendo usados por uma centena de empresas, incluindo gigantes como McDonald’s, Carrefour e Grupo BIG, com soluções para segurança da marca, garantindo que não seja contaminada por algum produtor irregular. Instituições financeiras também são seus clientes, com subsídios para que analisem risco de crédito, “conectando a Faria Lima ao campo”, diz o fundador Sergio Rocha.

Marcos Leta, da Fazenda Futuro: em um cenário em que as carnes vegetais podem capturar até 22% do mercado de proteína animal, o Brasil pode ser polo da produção plant based (Germano Lüders/Exame)

Iniciativas como as da Agrotools mostram como o agro é uma das raras áreas em que o Brasil é pioneiro em tecnologia. O número de ­start­up­s­ com soluções para o campo, as chamadas agritechs, passa de 300 no país, segundo estimativa do grupo AgTech Garage, que reúne startups do setor.

Enquanto isso, as universidades e os institutos brasileiros são referência mundial em agropecuária, e os pesquisadores são disputados em todo o mundo. Por tudo isso, Rocha acredita que o Brasil tem uma grande oportunidade pela frente. “O mundo conhece o agro brasileiro de uma forma distorcida. O produto brasileiro é sempre visto como pior, porque não conseguia provar que era sustentável. Agora vamos poder nos apresentar com a roupa certa”, diz.

Um dos desafios é fazer com que as excelentes ferramentas e pesquisas que o Brasil produz — no setor público e privado — cheguem de fato ao campo. Foi para ajudar nessa ponte que nasceu o Land Innovation Fund, fundo de fomento à inovação e produção sustentável em países da América do Sul.

O aporte inicial foi da produtora de grãos americana Cargill. O objetivo é diminuir a distância entre as pesquisas acadêmicas e a inovação das startups diante das práticas agrícolas na vida real. Em uma primeira leva de apoios, de 2,2 milhões de reais, foram selecionadas startups e pesquisadores para ajudar em um projeto de plantio de soja sustentável com 1.300 produtores no sul da Bahia. “A agricultura brasileira avançou muito nos últimos 30 anos. Mas talvez não tenhamos mais 30 anos para fazer a próxima revolução.

Esta década será crucial”, diz Carlos Quintela, da consultoria Chemonics International, que gerencia o fundo. Por isso, para conquistar o futuro, os agricultores em 2021 terão de agir como se 2030 já tivesse chegado.


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Percepção no exterior de que o Brasil apoia políticas de destruição ambiental pode, no longo prazo, fechar mercados ao produto nacional |  Carolina Riveira

Protestos em Londres: desmatamento e queimadas na Amazônia afetam a reputação da produção agropecuária brasileira no exterior (Sopa Images/Getty Images)

A vista da Amazônia em chamas virou ilustração comum para se referir à política ambiental do Brasil em reportagens dos principais jornais do mundo. No ano passado, foram mais de 11.000 quilômetros quadrados desmatados de floresta (a meta proposta pelo Brasil à Convenção do Clima em 2009 foi de 3.000).

Cerca de 30% da área do Pantanal — vizinho de muitas plantações nos grandes estados produtores do Centro-Oeste — foi afetada pelo ápice do incêndio que durou mais de dois meses no ano passado. Parte da perda é irreversível. Todos esses números não necessariamente têm relação com o agronegócio. Mas os debates passaram a ser indissociáveis. No começo do ano, o presidente francês, Emmanuel Macron, chegou a dizer que “continuar a depender da soja brasileira seria ser conivente com o desmatamento da Amazônia”.

O acordo comercial entre União Europeia e Mercosul, que abriria mercados valiosos para o agro brasileiro, segue emperrado. Em participação no evento online Superagro, da EXAME, o embaixador americano no Brasil, Todd Chapman, disse que a questão ambiental será também uma prioridade do governo Joe Biden.

“O importante é que todos não paguem pelo que é feito por alguns”, disse sobre o agro brasileiro. Estudo do professor Raoni Rajão, da UFMG, publicado na prestigiada revista Science, mostra que só 2% das fazendas são responsáveis por mais de 60% do desmatamento ilegal da soja que é exportada para a União Europeia. Mas não importa. Uma vez que a imagem da agricultura de ponta do Brasil é manchada, todos sofrem, dizem executivos do setor.

A visão negativa sobre o agro brasileiro pode se tornar um problema competitivo dos grandes. “Os negócios seguem sendo feitos, as commodities brasileiras estão baratas. Mas, se nossa vantagem é só o custo baixo, e se o produto atrapalha a reputação dos compradores, eles vão procurar uma alternativa em breve”, diz Rajão.

No ano passado, o governo brasileiro recebeu cartas de um grupo de investidores internacionais que somam mais de 4 trilhões de dólares sob gestão, pressionando acerca da política ambiental. Em reuniões no exterior, tornou-se quase impossível para os empresários brasileiros falar da produção agropecuária sem citar o meio ambiente.

“Uma boa parte não chega perto de áreas florestais; no entanto, toda a produção é contaminada”, diz o ex-diretor da Organização Mundial do Comércio e diretor de assuntos corporativos da empresa de alimentos Pepsico, Roberto Azevêdo. “Não é uma página que se vai virar da noite para o dia.”

O Brasil — incluindo as empresas do agro — terá de se esforçar para mostrar ao mundo que se importa com a preservação ambiental, empregando transparência extrema nas cadeias de produção e fiscalização séria para cumprimento das leis ambientais. Só neste ano, órgãos federais de monitoramento e fiscalização, como o Ibama e o Inpe, chegaram a sofrer cortes de até 46% no orçamento, o menor patamar em cinco anos, segundo levantamento da organização de acesso à informação Fiquem Sabendo, em parceria com a Transparência Brasil.

Números como esses não ajudam a transmitir a mensagem de que o Brasil está levando a sério o combate ao desmatamento. Há, é claro, uma série de interesses comerciais em jogo. Quanto aos concorrentes do agro brasileiro no exterior, sua intenção não é sempre das melhores ao se referirem à nossa política ambiental.

No entanto, o Brasil precisa fazer sua parte. As empresas e os produtores nacionais só têm a perder se o país não cuidar dos problemas que ainda existem — e são muitos. Imagens do Pantanal queimando por meses, certamente, não abrirão mercados.


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