(Alex Tauber/Pulsar Imagens/Exame)
David Cohen
Publicado em 9 de maio de 2019 às 05h48.
Última atualização em 24 de julho de 2019 às 16h31.
Ninguém pode acusar o engenheiro químico americano David Perry de falta de ambição. “Se formos bem-sucedidos, vamos transformar a maneira como se faz agricultura hoje em dia”, afirmou a EXAME em março, quando lançou em São Paulo a operação brasileira da empresa Indigo Agriculture, hoje a mais valiosa das startups de tecnologia agrícola do mundo. Fundada há quatro anos e meio em Boston, nos Estados Unidos, a Indigo recebeu 250 milhões de dólares em sua mais recente rodada de investimentos, em setembro, indicando um capital total na casa dos 3,5 bilhões de dólares.
Num setor tão dinâmico como o agronegócio, a promessa de uma revolução soa como jogada de marketing. Mas há bons motivos para levar Perry a sério. Não tanto pelo encantamento que a Indigo provoca (está na lista das 50 empresas mais inovadoras dos Estados Unidos da revista Fast Company) ou porque o próprio Perry tenha um histórico de empreendedor bem-sucedido, que se tornou executivo-chefe da Indigo depois de vender uma empresa ao laboratório Pfizer por 5,2 bilhões de dólares. E nem mesmo porque a Indigo passou de 14 funcionários, em 2016, para os atuais 850, com faturamento estimado pela Fast Company em mais de 1 bilhão de dólares para este ano.
Não. Por mais animadoras que sejam as credenciais da Indigo, o principal indicativo de uma nova revolução na agricultura é que ela não é a única a trabalhar por isso. Nos últimos dois anos, houve uma espécie de febre de empresas agrícolas, e uma série de tecnologias já presentes em outros setores vem dando as caras no campo. “Até três anos atrás, a gente tinha conversas eventuais com startups”, diz Aurélio Pavinato, diretor-presidente da SLC, grande produtora de algodão, milho e soja. “De lá para cá, falamos com mais de 300, metade brasileiras.” Boa parte delas vem dos centros de ensino e pesquisa do país. “Em 2016, tínhamos 30 projetos”, diz Sergio Barbosa, gerente executivo da Esalq-Tec, a incubadora tecnológica da escola superior de agricultura da Universidade de São Paulo, em Piracicaba. “Hoje são 122.”
Não é difícil achar quem se refira ao momento atual como o início da terceira revolução agrícola — de-pois da mecanização do século 19 e da Revolução Verde do pós-guerra. Duro é encontrar consenso sobre o tipo de revolução que virá. Há quem diga que o futuro está na biotecnologia, com o uso cada vez mais eficiente de organismos naturais para combater pragas ou melhorar a eficiência de solos e plantas. Outros afirmam que o grande avanço será genético, graças a técnicas de edição de DNA surgidas nesta década. Também há quem fale que o futuro está na digitalização, que dá um impulso à agricultura de precisão. Ou à nova fase da mecanização, com robôs e drones.
Todos estão provavelmente certos. Revoluções costumam ocorrer por uma combinação de fatores. A famosa Revolução Verde uniu mecanização, uso intensivo de fertilizantes e defensivos químicos, melhoramento genético de sementes e adoção da monocultura de escala. No Brasil, o impulso começou com certo atraso, nos anos 70. Mas o ritmo foi espetacular: em quatro décadas, de 1975 a 2015, a oferta de carne bovina foi multiplicada por 4; a de frangos, por 22. A produção de grãos cresceu mais de 550% (ante um aumento de área de 160%). O rendimento médio do trigo e do milho subiu 240%; o do arroz, 315%. O Brasil passou de importador de alimentos a potência do agronegócio.
Dá para repetir esse feito? Há bons indícios que sim. Mas é bem possível que, para a maioria das pessoas, a nova revolução agrícola seja invisível. Por dois motivos. Primeiro, o avanço de produtividade brasileiro é excepcional. Nos últimos anos, ele arrefeceu, embora os dados sejam contaminados pelos resultados ruins de 2016, ano de clima atípico (veja quadro). Mas nunca parou. Num país- com tamanha produtividade, que salto seria suficiente para merecer o nome de revolução? É difícil responder. Mas a simples manutenção da taxa da década passada talvez já valha o apelido.
Em segundo lugar, a revolução pode passar despercebida porque as condições daqui para a frente serão piores, e as necessidades, maiores. Para o Brasil, uma população mundial que deverá atingir os 8,5 bilhões de pessoas em 2030 e quase 10 bilhões em 2050 representa uma senhora oportunidade: a pressão de demanda por um crescimento (e aqui vale o duplo sentido) orgânico do setor. Ocorre, porém, que as mudanças climáticas tendem a dificultar a produção, com maior imprevisibilidade de chuvas e temperaturas e degradação dos solos. Sem falar na razão puramente matemática de que, quanto maior a produtividade, mais difícil é aumentá-la.
Nessas condições, manter o ritmo já pode ser considerado uma vitória maiúscula. Há mais. “Não vimos ainda sinais de disrupção no cenário agrícola”, diz José Carlos Hausknecht, sócio da consultoria MBAgro. “Mas a produtividade não tem apenas a medida clássica, de aumento de produção por unidade de terra. Há também o aumento de eficiência, uma agricultura que funcione com menos insumos e forneça mais qualidade.” Sob esse prisma, as novas tecnologias dão razões de sobra para o otimismo. Principalmente em três grandes frentes.
A grande inovação da Indigo consiste em pensar pequeno. “Nosso maior diferencial é lidar com micróbios”, diz Perry. A ideia é relativamente nova: bactérias e fungos que habitam as plantas formam uma espécie de ecossistema que modifica suas propriedades; alterando a comunidade de micróbios, alteram-se as características da planta. É, de acordo com Perry, um passo além da análise de micróbios do solo, porque a própria planta já indica quais ela filtrou para seu uso.
Em linhas gerais, a empresa encontra plantas que crescem em condições difíceis, avalia seus micro-organismos, seleciona os que lhes dão mais rendimento e os aplica nas sementes a ser vendidas aos produtores. Ela possui hoje um “banco biológico” com mais de 70.000 cepas de bactérias e fungos, de 347 gêneros diferentes. “Nós começamos com micróbios que ajudam a plantar em climas secos e quentes”, diz Perry, para fazer frente às mudanças climáticas. Mas a meta é ir além. “Neste ano vamos lançar culturas para melhorar a absorção de nutrientes e reduzir o uso de fertilizantes. No futuro, teremos biopesticidas e bioinseticidas para substituir os defensivos químicos.”
O resultado tem sido promissor. Na cultura de soja, a Indigo afirma ter conseguido melhora de 9% na produtividade. No Brasil, onde a empresa operou em fase de testes em 2018, a melhora foi de 3%, porque se aplicou a primeira geração de micro-organismos por motivos regulatórios (nos Estados Unidos, eles estão na terceira geração). Perry estima que os micróbios possam elevar a produtividade na agricultura em algo entre 20% e 25% nas próximas duas décadas.
“Isso que a Indigo faz é nosso campo também”, diz Rafael Vicente Ferreira, um dos quatro sócios da Itatijuca Biotech, startup que funciona no campus da USP. “Os micro-organismos são a grande fronteira da agricultura.” No caso da Itatijuca, o caminho da agricultura começou pela mineração. No fim de 2014, a startup planejou usar a bactéria Acidithiobacillus para dissolver detritos minerais e deixar como subproduto os metais, técnica conhecida como biolixiviação, especialidade do sócio Maurício Palmieri.
O difícil era educar os potenciais clientes para uma técnica inédita no Brasil. Quando conseguiram, no final de 2015, mal deu tempo de comemorar. O cliente era a mineradora Samarco e na semana em que receberiam a primeira amostra de minério houve o rompimento da barragem em Mariana. Em vez de iniciar o processo de lixiviação, a Itatijuca é que ficou ameaçada de se dissolver. Para sobreviver, criou uma divisão de soluções industriais e, em 2016, passou a prestar atenção na agricultura. No ano passado, lançaram o Eurus Fert, um biofertilizante que não ousa dizer seu nome, porque os ensaios para se qualificar como tal, no Brasil, são demorados e caros. Por isso, ele é vendido como fertilizante classe A.
Nos testes, segundo a Itatijuca, obtiveram 5.000 reais a mais por hectare numa plantação de batatas e 2.000 reais a mais numa de cebolas, para um investimento de 150 reais por hectare (o custo do frasco). Bastou para injetar uma boa dose de confiança. “Há uma corrida mundial para substituir o glifosato, o herbicida revolucionário que de quatro anos para cá começou a perder eficiência”, diz Ferreira. “Nossos produtos vão transformar a Itatijuca na próxima startup de 1 bilhão de dólares.”
Indigo e Itatijuca representam estratégias diferentes. Uma foca as características das plantas, outra o ambiente. Mas é perfeitamente factível perseguir as duas vias ao mesmo tempo. E outras. Duas das frentes em que os 2 420 pesquisadores da Embrapa trabalham têm a ver com micro-organismos. Uma delas, assim como a Itatijuca, é o uso de micróbios para controle de pragas. Outra é o uso de insumos biológicos para alterar condições do solo.
Um bom exemplo é o que foi feito no final da década de 80, usando uma bactéria que captura nitrogênio da atmosfera e o transfere ao solo. “Isso hoje está implantado nos 33 milhões de hectares de plantio de soja no Brasil”, diz Celso Moretti, diretor de pesquisa e desenvolvimento da Embrapa. “Segundo nossos cálculos, só esse invento economizou, até hoje, 19 bilhões de reais para os agricultores brasileiros, que não precisam acrescentar nitrogênio a seus adubos.”
Um campo relacionado ao da biotecnologia é o do processo usado para dispensar os produtos no solo. Nessa seara, o químico Leonardo Fernandes Fraceto pensa em termos ainda mais minúsculos que a Indigo. Ele lidera o Grupo de Nanotecnologia Ambiental do Instituto de Ciência e Tecnologia da Unesp, em Sorocaba. Mais do que lidar com bactérias e fungos, a atenção dele está voltada para as moléculas.
Um exemplo do que esse trabalho pode render é a atrazina, um dos herbicidas químicos mais usados no país. O problema são os efeitos colaterais. Na União Europeia, o produto foi banido por seu potencial de contaminação das águas. O perigo, obviamente, cresce com a quantidade de produto utilizado. A aplicação normal é de 3 quilos por hectare. Na formulação desenvolvida pela equipe de Fraceto, a molécula ativa é encapsulada em outras substâncias e liberada aos poucos. Dessa forma, com 300 gramas de atrazina obtém-se o mesmo efeito da formulação original. A técnica já foi patenteada e licenciada para uma empresa para se tornar um produto.
A mesma ideia de encapsulamento pode ser usada com micro-organismos. A equipe de Fraceto usa o fungo Trichoderma harzianum para atacar o Sclerotinia sclerotiorum, fungo responsável pelo mofo branco, doença que ataca a soja. “Com o encapsulamento, protegemos o composto de combate a pragas da deterioração causada pelo ambiente”, diz Fraceto. Além disso, a aplicação normal rende um pico de ação da substância, mas o efeito some rápido. “Com nosso sistema não há pico. A liberação é mais lenta, contínua.” A equipe de Fraceto também tem estudado óleos essenciais, como citronela, cravo, orégano e canela, que possuem substâncias com ação repelente, para funcionar no controle de pragas.
Numa dimensão um tanto maior, a startup Agribela também trabalha com encapsulamento. Nesse caso, em geral de ovos de vespas. “A ideia surgiu em 2015”, diz a bióloga Gabriela Silva, que fundou a empresa em sociedade com Luiz Guilherme Arruda. A tecnologia que eles usam já tem quatro décadas e lembra um pouco o filme Alien: o Oitavo Passageiro. Trata-se de jogar na plantação ovos fecundados da vespa Cotesia. Quando adulta, essa vespa coloca seus ovos no corpo da lagarta que prejudica a plantação. Os filhotes comem a lagarta. Dependendo do caso, a estratégia muda. A vespa Telenomos podisi põe seu ovo dentro do ovo do percevejo nocivo às plantas. Em vez de filhotes de percevejo, nascem filhotes da inofensiva vespa. Esse bicho, porém, ainda está em fase de testes para obter aprovação de uso no Brasil.
A novidade não são as vespas, é o modo de liberá-las. Em vez de colocar os ovos em copinhos plásticos e enterrá-los, a Agribela põe os ovos em recipientes biodegradáveis parecidos com bolas de pingue-pongue, com furinhos de um lado e um pesinho do outro, e os lança com um drone (numa parceria com outra startup, a Arpac, do Rio Grande do Sul). O peso garante que a parte com os furinhos fique para cima. A primeira tentativa foi um recipiente em forma de gota — daí o nome do produto, Biodrop, que eles mantiveram mesmo depois que a forma mudou. “Em cana, somos pioneiros na técnica”, diz Gabriela. “Em soja e milho, estamos entre os primeiros.”
Esse tipo de trabalho tem eficiência de 70% a 80% no controle de pragas na soja, no milho e no tomate, segundo Gabriela, índice comparável ao dos pesticidas químicos. “A Agribela passou na prova de conceito, agora está no programa-piloto em 3.000 hectares de cana e 500 hectares de soja e milho”, diz Fábio Mota, vice-presidente do centro de ser-viços compartilhados da empresa de bioenergia Raízen. “Só por ela ter acertado a colocação das vespas nos pontos que deviam ser atingidos já é um ótimo resultado. Antes, falhava e a gente não sabia por quê. Foi a chuva? O empregado colocou no lugar errado?”
O Brasil tem ainda um enorme potencial de elevação de produtividade, porque as regiões não se desenvolveram de forma uniforme. O outro lado dessa moeda é que os estados que atingiram níveis de produtividade mais altos já não mostram crescimento tão grande, como esclarece José Garcia Gasques, coordenador-geral de avaliação de políticas e informação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. “De 2000 a 2016, a produtividade de São Paulo aumentou 2,1% ao ano; a do Rio Grande do Sul, 2%. Já a de Tocantins subiu 6% ao ano; a de Goiás, 4,7%”, diz Gasques.
Vale para o agronegócio a velha e não tão boa lei dos retornos decrescentes: quanto melhor seu resultado, mais custoso é aumentá-lo. Ainda estamos um pouco longe do limite em que os ganhos são irrisórios. “As pesquisas apontam que é possível extrair 200 toneladas de cana por hectare”, afirma Gasques. “Nossa média é de 70 toneladas. Na soja, tiramos 3,2 toneladas por hectare. Dá para chegar a 6 ou 7.” E depois? “Daí para a frente, só com novas modalidades de plantas.”
É aí que entra o melhoramento genético. Nas últimas três décadas, o mundo caminhou célere nessa direção, com os organismos geneticamente modificados. Eles ajudaram a elevar a produtividade, mas ganharam uma oposição ferrenha. “Não é que os transgênicos sejam assim tão problemáticos”, diz Moretti, da Embrapa. “Nestes 30 anos de consumo, não foi demonstrado nenhum problema para a saúde humana.” Mas os cuidados regulatórios com a mistura de espécies encarecem a oferta de transgênicos. Por isso o mundo tem se voltado para a edição genômica, técnica que seleciona pedaços do código genético de plantas da mesma espécie.
A edição foi enormemente facilitada por um método apelidado de Crispr, descoberto em 2012 e aperfeiçoado a partir de 2015. Consiste em usar uma enzima que corta e cola pedaços do gene. O que era impossível está não só se tornando viável mas relativamente barato. A Embrapa trabalha hoje com três projetos envolvendo o Crispr, em parceria com a Corteva, uma divisão do laboratório DowDuPont: adaptação da soja a climas mais secos; melhoria da soja para resistir a nematoides, vermes comuns em Mato Grosso e Goiás; e eliminar o escurecimento do feijão quando ele fica armazenado.
Também o processo tradicional de melhoramento genético está sendo reinventado. Em seu modo usual,- pesquisadores demoram até 15 anos para chegar a uma nova planta. No caso de uma seringueira, o processo leva 25 anos. Ou levava. Uma equipe multidisciplinar liderada pela geneticista Anete Pereira de Souza, do Instituto de Biologia da Unicamp, conseguiu reduzir esse tempo a 15 anos — e com uma eficiência extraordinariamente maior, a julgar pelos resultados preliminares do estudo.
A revolução é cortar toda uma etapa do processo. Normalmente, o melhorista planta milhares de sementes da seringueira. Depois, vai colhendo dados para avaliar suas características. É a análise do fenótipo. Após 15 anos, a equipe escolhe os melhores exemplares e planta diversas gemas deles para aferir se os resultados não se deveram a fatores externos, como qualidade do solo, ventos, bichos. Isso leva dez anos, muito trabalho e dinheiro.
O que a equipe de Anete fez foi sequenciar pedaços do DNA das seringueiras e, por meio de análise estatística (em conjunto com um time da Esalq), combinar o fenótipo com características genéticas e dados extraídos do monitoramento por satélite, que permitem saber se aquela árvore resistiu a alguma seca ou se perde mais nutrientes do que devia, por exemplo. Além de economizar dez anos de checagem, os primeiros resultados, colhidos em abril, indicaram uma produção oito vezes maior do que a das plantas escolhidas apenas com base no fenótipo. “Isso só é possível porque, desde 2005, o sequenciamento de DNA tem ficado muito mais potente e muito mais barato”, diz Anete.
Uma das grandes vantagens desse método é que ele permite estudar espécies tipicamente brasileiras, tropicais, que não têm o genoma decodificado. A turma de Anete está estudando a cana e o capim braquiária, usado em pastagens. “Desde que voltei do meu mestrado na França, em 1993, meu sonho era trabalhar num momento como este que estamos vivendo agora”, diz ela.
A terceira frente da nova Revolução Verde é tão nova que ainda nem se estabeleceu por qual nome será chamada. Os mais em voga são agricultura 4.0, AgTech, Smart Farming, agricultura de precisão e agricultura digital. Todos querem dizer mais ou menos a mesma coisa: a chegada da revolução digital ao campo, com uma nova leva de mecanização preparada para a iminente internet das coisas, capaz de extrair dos campos uma montanha de dados, e algoritmos para analisá-los. Cada uma dessas vertentes traz inúmeras oportunidades, e atrás delas dezenas de startups.
O Brasil tem hoje cerca de 300 pequenas empresas, a maioria com menos de dois anos, oferecendo soluções aos agricultores. É um fenômeno mundial. Nos últimos dois anos, o total aplicado em startups de agricultura mais do que dobrou, para 6,9 bilhões de dólares. No Brasil, embora a maior parte dos investimentos em 2018 tenha sido a aposta no iFood, empresa de entrega de alimentos, as startups que atuam mais perto da fazenda receberam 70 milhões de dólares. Para além das startups, o crescimento desse mercado também é vigoroso. De acordo com a consultoria Reports and Data, o mercado global de agricultura de precisão atingiu 5,3 bilhões de dólares no ano passado e deverá saltar para 14,1 bilhões em 2026, uma evolução de 12,7% ao ano.
É um movimento que começou há muito pouco tempo. A SLC, por exemplo, iniciou testes com gestão digital de dados há apenas dois anos em duas de suas 16 fazendas. Neste ano, o processo está sendo implantado em outras quatro. “A agricultura de precisão permite um ganho de 5% a 10% de produtividade e uma redução de custos gerais de 3% a 5%”, diz Pavinato.
A Raízen também passou a prestar mais atenção no assunto em 2017, abrindo a aceleradora de startups Pulse em Piracicaba. “Minha missão era encontrar o próximo Uber”, diz Fábio Mota, líder do projeto. “Falei que, se soubesse como, não contaria a ninguém e pediria demissão.” No mundo das startups, é preciso entender que só uma minoria dará resultados. “Um dos projetos prometia fazer chover”, diz Mota. Teoricamente, já se sabe como fazer isso há tempos, com uma haste carregada de íons para forçar a precipitação. Na prática, os resultados são semelhantes a bater tambores para obter o favor dos deuses.
Na montagem da Pulse, após o mapeamento de 400 empresas, foram escolhidas 12. Em três meses, duas já haviam fechado. Oito apresentaram 11 projetos, dos quais quatro evoluíram para contratos comerciais. “A gente não diz quanto investiu. Mas posso contar que só um de nossos projetos, com inteligência artificial, já pagou os custos da Pulse pelos próximos cinco anos.” Para a Raízen, a Pulse é uma forma de incentivar a inovação em áreas típicas do Brasil. “A gente precisa atrair os cérebros para atuar na cana, que só tem aqui”, diz Mota. Por isso, até concorrentes da Raízen, como Bunge e São Martinho, participam. A ideia é mostrar que existe um mercado pujante ávido por melhorias na produtividade.
Não é que a Raízen não se preocupasse com isso antes. Em 2010, quando ainda se chamava Cosan, antes da joint-venture com a Shell, instalou o primeiro sistema de telemetria em tempo real do Brasil. Era um trabalho da Solinftec, empresa brasileira criada por seis biotecnólogos cubanos. “O grande achado era a fila única de transporte, espécie de processo just in time entre colheitadeiras, caminhões e caçambas que permite economizar o número de máquinas”, afirma Mota.
Se fosse só isso, a economia já seria grande. Cada colheitadeira custa em torno de 1 milhão de reais. “Num dos casos em que o fazendeiro passou a usar nosso sistema, reduziu o número de máquinas de 30 para 17”, diz Britaldo Hernandez, sócio-diretor da Solinftec. Mas a digitalização envolve bem mais coisas. Sensores podem monitorar a rotação dos motores para sugerir a melhor forma de manter a meta de produção e economizar combustível. Podem cruzar dados meteorológicos e sugerir a hora ideal para aplicar determinado tipo de insumo. Informam quantas sementes foram aplicadas, com que espaçamento.
Há eficiências intangíveis (não ter de mandar uma equipe passear no campo às 4 da madrugada para coletar dados em estações analógicas) e outras bastante tangíveis: “Tivemos reduções de mais de 60% de tempo de motor ocioso, de 5% a 20% de economia de combustível e emissões de CO2, de 5% a 15% de corte no uso de insumos químicos”.
A Solinftec é um dos principais casos de sucesso entre as startups brasileiras. Hoje atua em 7 milhões de hectares de cana mais 1,5 milhão de hectares de grãos. Em 2018, expandiu as vendas para os Estados Unidos, onde já atua em 1 milhão de hectares, e para outros países da América Latina. Em março ganhou nos Estados Unidos o prêmio de startup internacional mais inovadora para o agronegócio, concedido pelo fundo de investimentos AgFunder. Também se uniu à Universidade de Purdue, no estado de Indiana, para desenvolver novas tecnologias. “Hoje temos de 40 a 50 produtos na agricultura de precisão”, diz Hernandez. A empresa está neste mês em rodada de busca de investimentos com o objetivo de angariar 50 milhões de dólares e impulsionar o crescimento — a expectativa é dobrar a área de atuação até o fim do ano.
Não se trata de criar todas as soluções possíveis de aumento de eficiência. Assim como no mundo do comércio digital e das redes sociais, tende a prevalecer quem conseguir construir não uma empresa que faça tudo, mas a plataforma capaz de agregar diversas soluções. É aí que entra a aposta da Solinftec na Alice, assistente virtual compatível com os sistemas de celulares e capaz de fornecer insights aos agricultores em tempo real. “Neste ano vamos lançar a primeira fazenda do mundo com gerenciamento assistido por inteligência artificial”, diz Hernandez.
Essa é a corrida também de gigantes da biotecnologia. “Temos mais de 70 startups conectadas ao nosso sistema”, afirma Mateus Barros, líder para a América Latina da Climate, divisão da Bayer para a agricultura digital. Startup fundada em 2006 por ex-funcionários do Google, a Climate foi o primeiro unicórnio do setor agrícola, vendida à Monsanto (hoje engolida pela Bayer) por 1 bilhão de dólares.
Hoje ela é focada em soluções digitais que facilitem a tomada de decisões — e há dois anos desembarcou no Brasil. “Listamos 700 casos com algum tipo de ganho de valor”, diz Barros. “Na média, o lucro aumenta 170 reais por hectare nas culturas de soja e milho, algo como 4% ou 5% de produtividade.” Num caso extremo, conta Barros, um agricultor de Mato Grosso identificou uma área pouco produtiva, analisou as condições do solo, concluiu que havia nematoides e aplicou um redutor natural da praga. Na safra seguinte colheu 90 sacas de soja, em vez de 30. “Está aí um agricultor que nunca mais vai duvidar da agricultura de precisão”, afirma.
A Indigo também percebeu a necessidade de expandir sua atuação. No ano passado, comprou uma empresa de satélites para oferecer serviços de informações. “Hoje, cada produtor faz comparações com base em sua própria experiência”, diz Perry. “E se ele puder fazer benchmark com várias outras fazendas? É isso o que estamos começando a oferecer.” Nos Estados Unidos, cerca de 160 fazendas aderiram ao que Perry chama de “o maior laboratório agrícola do mundo”, com monitoramento de milhares de hectares.
Isso é possível porque a imagem por satélite é mais um setor que deu um salto de eficiência. Hoje, enxergam-se imagens com precisão de 30 centímetros quadrados (duas vezes melhor do que quatro anos atrás). “Além disso, hoje você consegue tirar uma foto do mesmo local todos os dias. Antigamente, tinha de esperar uma semana”, diz Samuel Campos, diretor executivo da Vega Monitoramento do Agronegócio. Mais do que isso, há pouco mais de dois anos as empresas de satélites deixaram de vender as imagens e passaram a cobrar pelo serviço de interpretação. “O custo caiu 90%”, diz Campos.
O complemento dos satélites são os drones, uma solução para áreas muito enevoadas, como Mato Grosso. Mas os drones estão evoluindo para outras atividades também, desde pulverizar áreas distantes até monitorar pragas. A limitação é o tamanho, algo que a startup Model Works pretende ultrapassar.
Os dois sócios, Carlos Moritz e Lucas Candeloro, têm hoje um protótipo com capacidade de sustentar 10 litros de substâncias, mas a meta é desenvolver e obter a aprovação da Agência Nacional de Aviação Civil para um modelo de 65 litros e, em seguida, um de 300 litros. Se chegarem a isso, seu modelo com asas e funcionamento a gasolina poderia substituir os aviões nas pulverizações, com economia de até dois terços de produtos (porque reduz a evaporação). Demanda, parece haver. “Na feira Expo Londrina do ano passado, havia mais de 150 interessados num produto assim”, diz Moritz.
Outra área com grande demanda é a eficiência de insumos. Espera-se uma crise mundial de água nos próximos anos, e a agricultura sofrerá pressão. Segundo o Worldwatch Institute, cerca de 70% da água consumida no mundo atende à irrigação na agricultura. Também há soluções para isso. A startup AgroSmart, por exemplo, nasceu com a crise hídrica de 2014.
A administradora de empresas Mariana Vasconcelos e seu sócio, o engenheiro eletricista Thales Nicoleti, conheceram-se na Universidade Federal de Itajubá, em Minas Gerais, e junto com outro amigo, Raphael Pizzi, tiveram a ideia de implantar sensores que medissem temperatura e umidade, um pluviômetro e estações meteorológicas no campo, com um algoritmo capaz de informar o melhor momento de irrigar a plantação. “O segredo está na modelagem e na tecnologia de transmissão de dados”, diz Pizzi.
Para isso, é preciso estudar a cultura local. O primeiro cliente foi Marcos Vasconcelos, pai de Mariana, que tem uma fazenda de 200 hectares com plantação de milho e pastagem para gado. Deu sorte. Ou deu certo. “O sistema permite economizar, em média, 60% de água e 30% de energia elétrica”, afirma Pizzi. A análise da umidade do solo também permite prevenir doenças, com aplicação preventiva de tratamentos quando o solo apresenta condições propícias às pragas.
Em 2016, a AgroSmart monitorava 10.000 hectares. Recebeu investimentos de 2,5 milhões de reais, e no ano seguinte mais 7 milhões. Passou a atender 100.000 hectares. Hoje, tem 48 funcionários e monitora 200.000 hectares, incluindo terras da Raízen e toda a produção de cocos da Obrigado. Está entrando numa nova rodada de investimentos com a meta de angariar mais 30 milhões de reais e fechar o ano com 80 funcionários.
É comum que os efeitos de uma revolução sejam sentidos apenas depois de algumas décadas. Mas os sinais estão todos aí, na consistência e na diversidade de soluções tecnológicas. A nova Revolução Verde aponta não apenas para um aumento da produção, mas também para um aumento da qualidade e para um salto de sustentabilidade.