Bairro de Shibuya, em Tóquio: a covid-19 causou poucas mortes, mas empurrou o país de vez para a recessão (Kyodo News/Getty Images)
Nos últimos dias, pequenos grupos de turistas e curiosos passaram a ser vistos tirando selfies diante de um sobrado em um vilarejo na cidade de Yuzawa, localizada entre as montanhas da província de Akita, no norte do Japão. É a casa onde viveu na infância Yoshihide Suga, que no dia 16 de setembro tomou posse como o novo primeiro-ministro do país, substituindo Shinzo Abe, que renunciou ao cargo por problemas de saúde. Nos tempos em que o menino Suga se divertia pescando nos rios da região e jogando beisebol no time da escola, a cidade de Yuzawa tinha cerca de 80.000 habitantes. Hoje a população se reduziu à metade, e 40% dos moradores têm mais de 65 anos.
A cidade definha com o envelhecimento da população, com a redução da força de trabalho e com a queda na arrecadação de impostos.
O inverno rigoroso (a temperatura chega a 5 graus negativos em janeiro) e as poucas oportunidades de emprego (as principais atividades são a produção de arroz e de saquê) levaram muitos jovens da região a buscar trabalho nas grandes cidades. Suga foi um deles e agora tem a tarefa de enfrentar os problemas gerados pelo encolhimento da população e da economia — não somente em sua cidade natal mas também no Japão.
O caso de Yuzawa é emblemático, mas está longe de ser uma exceção. Um estudo feito em 2014 apontou que 896 municípios — cerca de metade do total no país — correm o risco de desaparecer até 2040 por causa da persistente redução da população.
O Japão atingiu seu pico demográfico em 2008, quando chegou a 128,1 milhões de habitantes. De lá para cá, com a queda da taxa de fecundidade (hoje de 1,4 filho por mulher, abaixo da taxa considerada necessária para manter uma população estável, de 2,1 filhos por mulher), o país começou a encolher.
Segundo projeções, essa tendência deverá prosseguir e o Japão terá menos de 100 milhões de habitantes em 2053 — em 30 anos, o país vai perder o correspondente a duas vezes a população da cidade de São Paulo.
GABINETE DE ANCIÃOS
Com a diminuição dos nascimentos, vem também o envelhecimento da população — o japonês vive em média 84 anos, a maior expectativa de vida do mundo. A fatia de pessoas com mais de 65 anos deverá subir dos atuais 28% para 36% em 2050.
O governo que assumiu em setembro é um retrato desse país velho, porém saudável. A idade média do novo gabinete é de 60 anos.
O ministro das Finanças, Taro Aso, é o mais velho da turma, com 80 anos. O primeiro-ministro Suga está um pouco acima da média — completa 72 anos em dezembro —, mas procura manter a forma física com uma rotina diária de 40 minutos de caminhada e 100 abdominais todas as manhãs.
Suga precisará muito mais do que exercícios abdominais para concluir ou, pelo menos, dar continuidade às tarefas inacabadas de seu ex-chefe Abe, de cujo governo foi porta-voz e chefe de gabinete.
O mais longevo primeiro-ministro da história do Japão, Abe trouxe certa estabilidade política ao país. Nessa sua segunda passagem como chefe de governo (a primeira vez foi de 2006 a 2007), Abe ficou quase oito anos no cargo, em contraste com seus cinco antecessores, que se mantiveram, em média, apenas um ano como premiê.
Logo ao assumir em dezembro de 2012, Abe anunciou um programa econômico, que batizou de Abenomics, baseado em três pilares (ou “flechas”, como prefere dizer): uma política monetária agressiva, para aumentar a oferta de moeda na economia; estímulos fiscais, por meio do aumento dos gastos públicos; e reformas estruturais, para reduzir as amarras à competitividade.
O programa conseguiu fazer o PIB do país crescer por 71 meses consecutivos, ainda que a uma taxa modesta, de em média 1,1% ao ano. O ciclo de expansão terminou em outubro de 2018, a menos de dois meses de quebrar o recorde de crescimento contínuo do país no pós-guerra.
A partir daí, o Japão, terceira maior economia do mundo, passou a sofrer com os efeitos da guerra comercial entre os dois países que estão à sua frente, os Estados Unidos e a China. A elevação do imposto de consumo, de 8% para 10%, em outubro de 2019, levou a uma contração do PIB de 6,3% no último trimestre do ano passado. Veio o ano de 2020 e, com ele, a pandemia do novo coronavírus.
Apesar do elevado percentual de idosos, o Japão teve um número relativamente baixo de mortes pela covid-19 — menos de 1.600 óbitos, ou 12 por milhão de habitantes (no Brasil, a proporção é de quase 680 óbitos por milhão de pessoas). Mas a pandemia derrubou as exportações japonesas e empurrou o país de vez para a recessão. No trimestre de abril a junho, o PIB do país teve uma contração de 7,9%, o que corresponde a uma taxa anualizada de 28,1% — a maior queda desde 1980.
Os gastos do governo para atenuar os efeitos da covid-19 elevaram ainda mais a dívida pública, que já é a maior do mundo — perto de 240% do PIB. Esse quadro tende a piorar com os gastos crescentes com o sistema previdenciário e com os cuidados de saúde exigidos pelos idosos. Foi esse o Japão que Abe entregou a Suga.
Entre os vários desafios que o novo premiê do Japão tem pela frente, Kotaro Horisaka, professor emérito da Universidade Sophia, em Tóquio, destaca a necessidade de intensificar o combate à covid-19. Ainda que tenha obtido alguns bons resultados, o país terá de fazer mais para garantir a segurança aos atletas e ao público dos Jogos Olímpicos, que foram adiados para julho de 2021 devido à pandemia.
“O Japão tem a obrigação e a responsabilidade de promover a Olimpíada de forma exitosa, e caberá ao governo do premiê Suga fazer com que isso se cumpra”, diz Horisaka. Ele observa que a crise do coronavírus serviu para revelar quanto o Japão está defasado na digitalização.
Por mais que dominem a tecnologia digital, os japoneses ficam atrás quando se trata de incorporar as inovações em seu dia a dia. Um exemplo é o uso arraigado do hanko, um carimbo pessoal que cumpre a função de firma reconhecida.
No auge da pandemia, muitos funcionários iam ao escritório para carimbar documentos — uma tarefa cumprida por toda a hierarquia, do baixo escalão ao topo das organizações. Embora o governo tenha pedido às empresas que adotassem o trabalho remoto durante o estado de emergência, que vigorou em todo o país de 16 de abril a 25 de maio, a taxa de adesão foi de apenas 28% — bem abaixo da expectativa de 70%.
Em uma de suas primeiras entrevistas ao assumir como primeiro-ministro, Suga reconheceu a necessidade de o governo usar a tecnologia digital de forma mais eficiente e prometeu criar uma nova agência para liderar as iniciativas nessa área.
Nos anos 1980, quando ainda era a segunda maior economia do mundo, o Japão foi um dos expoentes do que hoje chamamos de Terceira Revolução Industrial, marcada pelos avanços na eletrônica, que possibilitou a automação do processo produtivo. Agora o mundo vive a Quarta Revolução Industrial, caracterizada pela convergência de várias tecnologias, da internet das coisas ao big data e à inteligência artificial. Nesse cenário, a maioria dos especialistas avalia que o Japão está atrás de outros países.
“O maior desafio para o primeiro-ministro Suga é mudar a estrutura do país e, ao mesmo tempo, manter o crescimento econômico. Para isso, é fundamental promover a Quarta Revolução Industrial”, diz Shinichi Seki, economista sênior da consultoria Japan Research Institute.
Ele diz que a pandemia deve acelerar esse processo. “Com o coronavírus, o estilo de trabalho está mudando, assim como os cuidados médicos, a educação e a logística. Agora é a hora de implementar reformas e fomentar uma nova indústria.”
A maioria dos analistas acredita que Suga deve dar sequência às políticas de Abe, sobretudo porque a crise da covid-19 reduz a margem de manobra para promover uma guinada. “A pandemia do coronavírus exige uma política fiscal e uma política monetária a todo vapor, e nenhum sucessor pode virar as costas ao Abenomics”, diz Shigeto Nagai, economista-chefe da consultoria Oxford Economics no Japão.
Ele observa que, durante o governo Abe, as grandes empresas nipônicas conseguiram expandir os negócios no exterior, elevando seus lucros. “Sem um aumento significativo nos salários, porém, os benefícios do Abenomics não foram compartilhados pelas famílias e, portanto, não estimularam a demanda doméstica.”
Uma das metas que o Abenomics não conseguiu cumprir foi elevar a inflação para 2% ao ano — em 2020, deverá ficar em torno de 0,2%. O Japão tem um crônico problema de deflação — a queda generalizada dos preços de produtos e serviços, um movimento inverso ao da inflação.
A deflação prolongada pode ser tão danosa para a economia quanto a inflação. No Japão, um consumidor que esteja precisando comprar um computador ou um carro, por exemplo, não terá pressa em fazer a aquisição.
Ele sabe que daqui a um ou dois anos o preço do produto continuará praticamente o mesmo — ou será até mesmo inferior ao de hoje. Se os consumidores adiam as compras, as lojas não vendem e as indústrias reduzem a produção, deprimindo a economia.
Na maioria dos casos, a deflação tende a provocar alto desemprego. Não no Japão, onde subsiste o secular sistema de emprego vitalício. Em geral, um jovem recém-formado numa faculdade é recrutado por uma empresa e ali permanece anos a fio até se aposentar.
Nesse percurso, o funcionário galga novos postos por tempo de serviço. Em troca da lealdade do funcionário, a companhia oferece estabilidade no emprego. Para Tomoya Masanao, diretor-geral da gestora de investimentos Pimco no Japão, esse “contrato social” entre empresas e empregados é o principal obstáculo para o país se adaptar às mudanças exigidas pelo envelhecimento da população e pela globalização. “O emprego vitalício e os sistemas de recompensas baseados na antiguidade desestimulam os trabalhadores a adotar formas mais inovadoras e produtivas de fazer as coisas”, afirma Masanao. “Uma reforma para tornar o sistema de emprego mais flexível é a mudança mais importante a ser feita no país.”
Não é uma mudança fácil de implementar, contudo. O governo Abe tentou introduzir uma reforma para estimular a adoção de um sistema de emprego baseado mais na meritocracia, mas obteve limitado sucesso. “O sistema de seguridade social do país foi desenhado com base no pressuposto de que as empresas cuidarão de seus trabalhadores e o Estado deve se concentrar nos jovens e idosos”, diz Nagai, da Oxford Economics. Ele afirma que, nos últimos anos, jovens cansados da rígida escala salarial baseada na antiguidade estão buscando trabalho em empresas mais dinâmicas, como as subsidiárias de empresas estrangeiras, onde podem desenvolver sua carreira mais rapidamente. Como resultado, as empresas japonesas tradicionais não conseguem mais atrair um número suficiente de funcionários jovens e competitivos.
Uma das consequências do emprego vitalício é que, para reduzir suas despesas, as empresas recorrem cada vez mais a trabalhadores temporários ou de meio período, aos quais não pagam os mesmos benefícios dos empregados regulares.
A participação desses funcionários na força de trabalho cresceu de 20%, em 2000, para 32%, no ano passado. Como os salários dessas pessoas são menores do que os dos trabalhadores regulares, um novo problema está surgindo no Japão: o empobrecimento da classe média. “A participação das famílias de baixa renda no total tem aumentado à custa dos grupos de renda média. A pobreza está se tornando cada vez mais um problema”, afirma Nagai. Segundo a OCDE, o clube dos países ricos, a taxa de pobreza do Japão é de 15,7% — o índice de pessoas cuja renda familiar é menos da metade da mediana do conjunto da população. “A classe média está desaparecendo no Japão, embora gradualmente”, diz Nagai.
Parte dos empregados de meio período optou por trabalhar nessa condição para ter uma vida mais flexível. É o caso de muitas mulheres que precisam conciliar a vida profissional com os afazeres domésticos. A falta de infraestrutura adequada, como berçários e creches, é um dos entraves ao aumento da participação de mulheres no mercado de trabalho. No início de seu governo, Abe lançou o que chamou de “Womenomics”, um plano para ampliar a presença das mulheres na economia. A meta era que, até 2020, elas representassem 30% dos cargos de liderança.
Dados mais recentes da OCDE indicam, porém, que as mulheres ocupam menos de 15% dos cargos gerenciais no Japão (no Brasil, elas são 38%). A ascensão profissional das mulheres em grandes corporações tem diversas barreiras no Japão devido a práticas antigas. “Os executivos ainda preferem funcionários do sexo masculino que estejam dispostos a trabalhar por muitas horas e aceitem, sem reclamar, ser transferidos para outras unidades”, diz a socióloga Kumiko Nemoto, da Universidade de Kyoto e especialista em gênero, sexualidade e trabalho. “Tornar as mulheres ativas na economia exige também melhorar as condições salariais e de emprego.”
O papel secundário das mulheres no país se reflete na composição do gabinete de Suga. Há somente duas mulheres entre seus 20 ministros.
Se as mulheres podem ajudar a atenuar a escassez de mão de obra no Japão, uma alternativa seria ampliar o contingente de trabalhadores estrangeiros. É o que está fazendo Izumo, cidade milenar na província de Shimane (costa oeste) famosa por seus santuários. Há quatro anos, a cidade lançou o Plano de Promoção da Convivência Multicultural, com a meta de aumentar em 30% o número de estrangeiros até 2021. “Enfrentamos muitas dificuldades no início, mas fomos conquistando a confiança dos moradores e políticos da região”, diz o brasileiro Eiji Shimada, presidente da Avance, empresa que desde 1995 recruta pessoas para morar e trabalhar em Izumo.
Com o apoio da prefeitura, foram construídos um centro comunitário que oferece aulas gratuitas de japonês, uma creche para 60 crianças com atendimento bilíngue e, em abril do próximo ano, será inaugurado um espaço para oferecer atividades extracurriculares a crianças do ensino fundamental. Dos atuais 175.000 habitantes de Izumo, 4.575 são estrangeiros, sendo a maioria (68%) brasileiros.
Se a população japonesa está encolhendo, a de residentes estrangeiros vem crescendo há seis anos seguidos e soma hoje 2,9 milhões de pessoas. Destas, 207.000 são do Brasil. Desde a mudança da Lei da Imigração em 1991, que facilitou a entrada de estrangeiros com ascendência nipônica, a comunidade brasileira cresceu ano a ano. Chegou a passar de 310.000 e ser o terceiro maior grupo de estrangeiros no Japão.
Com a crise econômica de 2008, foi diminuindo ano a ano e agora ocupa a quinta posição, atrás de chineses, coreanos, vietnamitas e filipinos. No ano passado, o Japão criou um visto especial para atrair estrangeiros com certos níveis de especialização e habilidades.
A meta é atrair pelo menos 350.000 pessoas até 2024. Um dos requisitos é comprovar conhecimento do idioma japonês — o ponto fraco de muitos brasileiros. Para Angelo Ishi, professor na Faculdade de Sociologia da Universidade Musashi, em Tóquio, o ex-premiê Abe sabia que a maioria dos japoneses reluta em abrir o país para receber milhões de imigrantes.
Com o novo visto, Abe procurou mostrar que o país não vai atrair “imigrantes”, apenas “trabalhadores”, já que as exigências são severas. Além de provar conhecimento do idioma japonês, é proibido vir com a família, e o tempo de permanência é de no máximo cinco anos.
“O governo Abe foi inteligente e pragmático, usando truques de ilusão de ótica e camuflando suas ações e intenções com um bom uso do jogo de palavras”, diz Ishi.
Como quase tudo no Japão, é improvável que ocorram mudanças drásticas na política de imigração com o novo governo. Horisaka, da Universidade Sophia, diz que não se deve esquecer que o país é conservador. “Não se mudam a cabeça das pessoas e as regras de uma hora para a outra. O Japão vai continuar avançando para repor a mão de obra de um país envelhecido, porém em seu próprio ritmo.”