Revista Exame

Novas fronteiras: investimentos no exterior ganham força entre brasileiros

Juros baixos, avanço da tecnologia e novas normas abrem caminho para que mais brasileiros invistam no exterior, mas ainda há barreiras importantes

Bolsas: mercado financeiro no Brasil passou por uma profunda transformação nos últimos anos (Érika Garrido/Folhapress)

Bolsas: mercado financeiro no Brasil passou por uma profunda transformação nos últimos anos (Érika Garrido/Folhapress)

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Guilherme Guilherme

Publicado em 10 de setembro de 2020 às 06h00.

Nos últimos anos, o mercado financeiro no país começou a passar por uma profunda transformação, como consequência da redução das taxas de juro e dos avanços da tecnologia. Ganhou uma base crescente de novos investidores, uma concorrência cada vez mais acirrada que derruba os custos de transação, além de novas fontes de informação.

É um ciclo virtuoso que se autoalimenta. Uma nova fronteira no desenvolvimento do mercado começa a ganhar força: a internacionalização dos investimentos dos brasileiros. É um passo adiante que atende a uma demanda do próprio mercado, do lado da oferta e da demanda. No ato mais recente, pequenos investidores passarão a negociar indiretamente ações listadas em bolsas no exterior, até então um privilégio para os chamados investidores qualificados, que possuem 1 milhão de reais ou mais de patrimônio.

As novas regras foram editadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em agosto. Para dar uma dimensão de como a regra anterior era restritiva: apenas 2%, aproximadamente, de todos os investidores da B3 possuem 1 milhão de reais ou mais em ações.

A negociação se dará por meio dos Brazilian Depositary Receipts, os BDRs, que são recibos negociados na B3 com lastro em ações de bolsas estrangeiras. As novas normas também passam a permitir que empresas brasileiras negociadas no exterior, como Stone, PagSeguro, XP, Arco Educação e Vasta, emitam BDRs, outra antiga reivindicação.

A autorização para a negociação dos BDRs por investidores comuns já está em vigor desde o início de setembro e faltam apenas alterações no regulamento da B3 para que estejam disponíveis em qualquer plataforma de negociação.

A expectativa é que isso leve no máximo dois meses. Quando começar a vigorar, vai significar a abertura de um mercado que abrange algumas das maiores e mais conhecidas empresas do mundo, como Apple, Amazon, Netflix e Tesla.

A soma de valor de mercado das 559 empresas nas quais é possível investir atualmente por meio de BDRs é de mais de 30 trilhões de dólares, o equivalente a 40 bolsas brasileiras e a um terço do mercado global de ações. E esse número deve crescer ainda mais com a oferta de novas BDRs.

“A intenção é ampliar a quantidade de BDRs não só de ações mas também de ETFs e de títulos de dívida estrangeiros”, afirma Felipe Paiva, diretor de relacionamento com cliente & pessoas físicas da B3. Os Exchange Traded Funds (ETFs) são conhecidos como fundos de índice, pois acompanham a variação de índices de ações.

(Arte/Exame)

O fenômeno da internacionalização é mais uma consequência direta da era dos juros baixos no país, que reduz o apelo do ganho fácil com os títulos de renda fixa e, ato contínuo, empurra investidores de diferentes perfis para outras classes de ativos.

Nos 12 meses até julho, fundos de renda fixa tiveram fuga de 129 bilhões de reais. Não existem tantos produtos no mercado brasileiro para dar conta de tamanha liquidez. E isso reforça a necessidade do acesso a ativos de outros países, muitos dos quais podem oferecer maior rentabilidade (e maior risco, como é a correlação de costume).

A importância de ter uma carteira diversificada ganhou força neste ano com a disparada do dólar e das ações de empresas de tecnologia nos Estados Unidos. O principal índice da Nasdaq, a bolsa que reúne as companhias do setor, chegou a acumular 34% de alta no ano, enquanto o Ibovespa ainda não se recuperou do forte tombo nos mercados em fevereiro e março: está 12,5% abaixo do nível de 2019.

A importância da diversificação geográfica é ainda maior no Brasil, um mercado historicamente conhecido pela baixa exposição do investidor a ativos do exterior. Um levantamento feito pela gestora americana Charles Schwab há quatro anos apontou que o Brasil aparecia entre os dez países em que a carteira média apresentava maior predomínio de ativos nacionais: o chamado viés nacional superava 90% do total, enquanto em países como Estados Unidos caía para 70% e, na Alemanha, para menos de 50%.

“O viés de investir no mercado local existe em qualquer país. Mas antes o investidor de varejo não tinha escolha. Agora ele vai poder investir fora, de forma a montar uma carteira diversificada e inteligente, aproveitando oportunidades como o do setor de tecnologia dos Estados Unidos”, afirma Will Landers, chefe de renda variável para a América Latina da BTG Pactual Asset Management (do mesmo grupo que controla a EXAME).

Zurique, na Suíça: o país é um dos destinos de investimentos de brasileiros por causa da tributação (Getty Images)

Atualmente, a maioria (88%) dos BDRs negociados na B3 é de empresas listadas nos Estados Unidos. Em seguida vem o Reino Unido, com 12 papéis, entre eles o do gigante de bebidas Diageo, da empresa de bens de consumo Unilever e da mineradora Rio Tinto. A B3 também negocia o BDR do Mercado Livre, da Argentina, que se tornou em agosto a empresa com maior valor de mercado da América Latina, e da Baidu, da China.

“É importante não correr apenas o risco Brasil, especialmente em uma pandemia global, na qual os países não são afetados da mesma maneira e podem ter menor correlação com a evolução da economia brasileira”, diz Claudia Yoshinaga, coordenadora do Centro de Estudos em Finanças da Fundação Getulio Vargas (FGV).

É uma diversificação que faz sentido também do ponto de vista de alocação setorial, uma vez que muitas das ações listadas em bolsas americanas complementam o mercado brasileiro, explica Yoshinaga. “São setores promissores, como os das big techs e das empresas de entretenimento, nos quais atualmente o pequeno investidor brasileiro não consegue se posicionar pela limitação de ativos no país”, afirma.

O acesso facilitado a ativos no exterior vem ao encontro de uma demanda do próprio investidor. Nos últimos anos, em linha com o processo gradual de redução da taxa básica de juro, o volume de investimentos em renda variável e fixa no exterior já estava em trajetória de crescimento.

Segundo dados do Banco Central, o volume de investimentos internacionais em carteira de brasileiros cresceu 49,5% de 2016 a 2019, para 47 bilhões de reais. Somente o volume em ações estrangeiras — categoria que inclui fundos de ações e BDRs — teve aumento de 67% no período.

Foi um movimento captado pela corretora Avenue, com sede em Miami, nos Estados Unidos, mas com foco em clientes latino-americanos, especialmente brasileiros. “O objetivo foi oferecer acesso a algo que sempre esteve ao alcance apenas do investidor com patrimônio acima de 1 milhão de reais”, diz Roberto Lee, diretor da corretora criada há um ano.

Com quase 150.000 clientes, Lee afirma que o número de novos usuários ganhou tração de forma significativa nos últimos meses, com mais de 1.000 contas abertas por dia, na medida em que cresceu o interesse do brasileiro pelo investimento no exterior. Ele afirma que as novas regras que facilitam a negociação de BDRs têm o mérito de “colocar a discussão na mesa”, ainda que defenda seu modelo adotado de investimento diretamente nas ações no exterior.

“Qualquer intermediário a mais adiciona custo. Além disso, o investimento direto dá acesso a um número maior de ativos e de forma mais rápida. Será possível investir em um laboratório que acabe de anunciar uma vacina contra a covid-19, por exemplo”, diz. É um caminho já procurado. Dados do BC mostram que a posição de brasileiros em ações adquiridas de forma direta aumentou 84% de 2016 a 2019, para 35,4 bilhões de reais.

(Arte/Exame)

O caso da Avenue evidencia que o mercado vai atrás da demanda, mesmo quando a regulação é um entrave. Sem acesso aos BDRs, o investidor de varejo dispunha de alternativas indiretas, como fundos de investimento, para conseguir alguma exposição a ativos do exterior sem precisar abrir uma conta fora do país.

Os números de captação desse segmento nos últimos meses, a despeito das incertezas provocadas pela pandemia, revelam a dimensão do apetite por parte dos pequenos investidores. O fundo de ações globais BDR do Banco do Brasil DTVM mais do que quintuplicou seu patrimônio líquido neste ano, passando de 73 milhões de reais para mais de 400 milhões de reais, enquanto a quantidade de investidores cresceu de 4.900 para 17.900.

Já o fundo de BDRs da gestora Western Asset, que acumula mais de 60% de rentabilidade no ano, passou de 200 milhões de reais de patrimônio para 1,8 bilhão de reais. Além da busca por diversificação, muitos investidores foram atraídos pelo desempenho de tais fundos.

Dos 100 fundos de ações com os melhores desempenhos até julho, 27 eram dedicados a BDRs, embora essa classe represente menos de 5% do total de fundos de ações, segundo dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima). Para Maurício Lima, gestor do fundo da Western Asset, a busca por esse tipo de classe passa pela proteção. “Se o investidor tem um fundo de BDRs, traz para o portfólio uma exposição cambial que pode funcionar como contrapeso para os ativos locais atrelados ao risco daqui.”

O investidor brasileiro qualificado também passou a procurar fundos de ações que aplicam diretamente no mercado internacional. Segundo a Anbima, essa categoria teve captação líquida de 10,6 bilhões de reais entre janeiro e julho, atrás apenas dos 63,1 bilhões de reais captados pelos fundos de ações livres (que incluem os de BDRs).

Em julho, os fundos de ações no exterior somavam patrimônio líquido de 87,7 bilhões de reais e já correspondiam a 17% do total da indústria de fundos de ações. A queda da barreira dessa categoria de fundo para o investidor de varejo é uma demanda antiga da gestora GeoCapital, uma das pioneiras no segmento.

A gestora iniciou os trabalhos em 2013, quando somente pessoas com recursos no exterior podiam fazer alocações em seus fundos. “Temos a expectativa de que os reguladores permitam que todos os investidores invistam nos fundos. Seria um caminho mais saudável do que forçar as gestoras a investir em BDRs”, diz Gustavo Aranha, sócio da GeoCapital.

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Apesar de bem-vinda, a possibilidade de diversificação da carteira de investimentos dos brasileiros em ativos no exterior requer cuidados. Um dos desafios é saber administrar adequadamente a variação cambial, que, em caso de valorização do real, pode zerar os ganhos, por mais que a ação tenha subido no mercado de origem.

“Há muita gente querendo investir em BDR porque o mercado americano andou e o dólar valorizou. Mas como vai ser quando ocorrer o contrário?”, alerta Bruno Lima, analista de renda variável da EXAME Research. Isso ocorreu, por exemplo, em 2016. Naquele ano, o dólar fechou em queda de 17,7%, enquanto o principal índice acionário dos Estados Unidos, o S&P 500, subiu 9,5% (abaixo do Ibovespa, com alta de 38,9%). Como resultado, investidores que projetavam uma alta no mercado americano tiveram perdas.

É prudente, portanto, que a decisão de investir em BDRs ou em outros ativos no exterior seja adotada como estratégia de longo prazo de diversificação e proteção da carteira, recomendam analistas. Outro conselho, especialmente no momento atual de fortes oscilações no câmbio, é que o investidor escolha ativos do mercado externo aos poucos, para buscar uma cotação média.

O investidor que buscar companhias estrangeiras terá de lidar com outros desafios, como entender o modelo de negócios e os fatores de risco das companhias em que quiser aplicar. Parece compreensível que a ação do Facebook suba porque cresceu o número de usuários na rede social, mas entender como movimentos de boicote da sociedade e leis de proteção de dados mundo afora impactam o valor da companhia pode não ser tão simples. A porta para o mercado global está cada vez mais aberta. Mas explorar essa nova fronteira requer conhecimento — o mundo, maior, é também mais complexo.


EM BUSCA DE PROTEÇÃO

Investidor mineiro decidiu colocar 15% da carteira em ações de bancos e tecnologia e ETFs nos Estados Unidos

Thiago Henriques: ele gostou de investir em ações diretamente no exterior e não pretende negociar BDRs (Marcus Desimoni/Nitro)

A forte valorização do Ibovespa em 2019, quando acumulou alta de 31,6%, foi a deixa de que o administrador de empresas Thiago Henriques, de 37 anos, precisava para tomar uma decisão: começar a investir no exterior. O objetivo era aumentar a diversificação de sua carteira para se proteger. Naquele momento, Henriques já dividia seu capital: 30% em renda fixa e 70% em renda variável. Sem alternativa para aplicar diretamente em ações estrangeiras no Brasil, procurou uma corretora fora do país. “Decidi investir no exterior quando percebi que a bolsa brasileira estava muito esticada (jargão do mercado para dizer que subiu demais)”, afirma.

Henriques conta que decidiu dedicar 15% de sua carteira a ativos no exterior. E que escolheu aplicar em ações de bancos e de empresas de tecnologia nos Estados Unidos, além de ETFs (fundos que replicam índices de ações). “Peguei toda a queda das bolsas, mas apliquei ainda mais para aproveitar oportunidades”, afirma. Segundo ele, o retorno acumulado chega a 20%. O administrador mineiro diz que não pretende aplicar em BDRs nem alterar suas posições. “Minha estratégia é de longo prazo: não fico movimentando a carteira lá fora.”

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