Revista Exame

A nova ética no churrasco

Menos carne e de melhor procedência, consumo de cortes dianteiros, mais vegetais, lenha certificada. Bem-vindo à revolução em torno da brasa

Eugene Mymrin/ /  (Eugene Mymrin/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 9 de abril de 2020 às 05h30.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 14h42.

Uma coisa é certa e incontestável no Brasil: a fome de carne só aumenta. Na última década, o consumo por pessoa cresceu, em média, de 39 para 42 quilos por ano. Ao mesmo tempo, nunca se falou tanto em equilibrar o consumo de proteína animal. Nos festivais ou no quintal de casa, uma nova ética consiste em entender o que está acontecendo e absorver essas transformações. Comer menos carne e de melhor qualidade, comprar com consciência e confraternizar com as diferenças estão no topo da lista das novas boas práticas do churrasco. Com a quarentena, como as pessoas estão agora dentro do lar, esse é um hábito que só tende a crescer.

“Ter uma alimentação baseada em vegetais não quer dizer que você é vegetariano ou vegano. Sou contra selos e radicalismos na alimentação”, afirma Lis Cereja, nutricionista e chef, além de vegetariana. “É mais saudável comer carne de um pequeno produtor do que ser vegano e se entupir de comida industrializada, tanto para a saúde quanto para o planeta.” Cofundadora da Feira Naturebas e do projeto Criado Solto, ela enfatiza a importância do equilíbrio, seja no prato, seja no diálogo.

“Comer ou não comer carne é uma escolha pessoal. Fingir ignorância sobre a indústria alimentar e a indústria de animais, não. É um tema controverso e é difícil falar sobre isso sem ser superficial, pois é algo muito mais profundo do que muita gente pensa, e que, infelizmente, leva as pessoas à beira do fanatismo cego, de ambos os lados”, argumenta. Entenda a seguir, em fogo lento, a revolução em torno da brasa.

Menos carne, mais satisfação

Em termos de churrasco, entrar num acordo é fundamental. “Afinal, quem acende a churrasqueira para comer sozinho? O churrasco faz sucesso aqui porque o brasileiro se identifica com o acolhimento em torno disso, é da nossa cultura”, diz o chef e assador Fernando Carneiro, do restaurante especializado em churrasco Lolla Meets Fire, em São Paulo. Após um período na Nova Zelândia, ele é um dos pensadores da nova forma de consumir carne no Brasil. “A gente come pelo prazer e pelo conforto, além da fome. A proposta atual não é se empanturrar de comida, ficar com a barriga cheia e não conseguir nem dormir.”

De acordo com ele, com toda a tecnologia genética, novas raças de gado, cultivos de frutos do mar que respeitam as sazonalidades e processos ambientalmente responsáveis, comer bem está ainda mais fácil de digerir. Sabe aquele número mágico de 300 gramas de carne por pessoa? Não há regras. Experimente colocar na grelha porções mais generosas de abobrinha, milho, tomate, cebola e metades de pimentões com um ovo cru, que vai cozinhando aos poucos dentro do vegetal.

Defumação: além do custo-benefício

Entre os pratos mais disputados do Lolla Meets Fire está a costela defumada por mais de 8 horas no pit, equipamento especial para a técnica do churrasco típico dos Estados Unidos, que usa lenha de árvores frutíferas no preparo. Até a manteiga servida com o pãozinho do couvert entra na defumação. Alimentos variados, como polvo, batata, tomate caqui e abóbora, ganham versões deliciosas diretamente na brasa.

“O número de interessados em fazer fumaça em casa também aumentou”, garante o pitmaster e empresário Anderson Amar, da empresa Smoke Texas, em São Paulo. Especialista no preparo, ele passou a fabricar pits diante do aumento da demanda no ano passado. As versões domésticas, a partir de 1.800 reais, ampliaram a nova onda para as varandas gourmet e ainda garantem economia. “Com 1 quilo de carvão e 600 gramas de lenha, o cliente tem 10 horas de defumação a 150 graus, em média”, destaca Anderson.

Por ser uma cocção longa e em baixa temperatura, a técnica permite assar com excelência, por exemplo, o brisket, ou peito bovino, considerado erroneamente por muitos brasileiros como carne de segunda pela rigidez das fibras. Com o método, é possível aproveitar os cortes dianteiros do animal. É algo bem diferente do nosso churrasco tradicional, feito em poucos minutos com carnes do traseiro bovino, que são naturalmente mais macias e vão direto à grelha sobre a brasa de carvão quente.

Põe mais lenha… na churrasqueira?!

É preciso estar atento ao uso de lenha certificada no processo. Eucalipto, nem pensar. “Tem de ter nota fiscal comprovando que a lenha é originária de uma erradicação ou poda. Além disso, para os agrotóxicos não trazerem malefícios na hora do uso, desenvolvemos um processo que envolve os que trabalham na colheita das frutas a fim de gerar renda para a região produtora”, afirma Renato Andrade, proprietário da Special Meats, que vende o quilo da lenha a partir de 6 reais no atacado. A mesma preocupação quanto à procedência vale na hora de comprar carvão.

Consumo e produção conscientes

Para Eduardo Cocco, do frigorífico Cowpig, em Boituva, no interior paulista, com fazendas em Mato Grosso, a nova ética do churrasco também atinge a produção na aplicação de máximas condições possíveis de bem-estar animal, principalmente em relação aos animais confinados e aos tipos de manejo, que vem crescendo no Brasil, com condições de criação sustentável e sem agredir o meio ambiente. “A produtividade para o empresário rural deverá ser sempre o foco do trabalho, mas respeitando aspectos legais e morais”, diz.

Hoje, o consumidor tem duas grandes preocupações: a primeira, do ponto de vista gastronômico, da experiência; e a segunda, de como o alimento é produzido”, pontua Marcelo Shimbo, da marca 481, referência no mercado em padronização e alta qualidade. “Não aceitamos nenhuma alimentação para o gado que não seja vegetal nem uso de hormônio. Nossos frigoríficos são, além de inspecionados rigorosamente, auditados para garantir a segurança alimentar de maneira muito minuciosa”, explica Shimbo, com mais de duas décadas de experiência no mercado.

Para uma compra sem erro, é possível customizar a espessura dos steaks e observar a escala de 1 a 5 identificada nas embalagens, que leva em conta sabor, maciez e suculência de cada corte.

Claudia Totir/Getty Images

Sabor, um caminho sem volta

Queridinha dos mais abastados, a carne da raça Wagyu pode custar 400 reais o quilo. Mas quantidade não é garantia de satisfação: o intenso marmoreio, ou gordura entremeada dos cortes, pede uma degustação moderada. Da mesma forma, o dry aged, método de maturação longa a seco, que vai de 30 a 120 dias, que amacia e transforma o sabor da carne, também pede moderação no volume para ser bem apreciado.

Enquanto, no pasto, o resistente Nelore cede espaço pouco a pouco para as raças britânicas Angus e Hereford, a picanha também dá lugar na prateleira para pacotes com nomes estrangeiros, como chorizo (Argentina e Uruguai), T-bone e ­tomawawk (Estados Unidos) ou entrecôte (França). “Ainda é grande o volume, em torno de 80%, de animais Nelore em nosso rebanho. Mas cada vez cresce mais a inseminação artificial com as raças europeias continentais e britânicas. Isso está mudando o perfil da pecuária nacional”, diz o agrônomo e consultor Roberto Barcellos, que criou uma linha própria de cortes nobres, a BBQ Secrets, em parceria com o frigorífico Frigol.

“Esse é o tipo de consumo que, depois que começa, torna-se um aprendizado do qual não se abre mão”, opina Pedro Merola, engenheiro agrônomo e sócio-proprietário do açougue-butique Feed, em São Paulo, que vende carnes da própria fazenda, em Goiás. “Minha família mexe com gado há cinco gerações, e só em 2007 passamos a pensar o que queríamos no prato e a procurar na fazenda como chegar a esse resultado.”

Sai a linguiça, entra a charcutaria

Nesse caminho sem volta de melhorar a ex­periên­cia do churrasco estão contemplados os embutidos e os acompanhamentos. Receita infalível é servir charcutaria biológica no lugar da linguiça toscana industrializada e muçarela de búfala orgânica em vez do desgastado queijo coalho. Não se trata só de variar: são alimentos de valor nutricional superior. “Nosso produto tem 35% menos colesterol e é ausente de proteína Caseína A1, que pode causar alergia”, afirmam os produtores Ana e Rafael Borges, do laticínio Gondwana Organics, em Brodowski, no interior de São Paulo.

O casal aproveita o soro do leite, subproduto da fabricação de queijos, além de coco de macaúba e frutas silvestres, para alimentar porcos de cruzamentos nacionais com o preto ibérico. Criados soltos, os suínos que são matéria-prima da salumeria instalada em contêineres refrigerados no local ainda ajudam a recuperar o solo desgastado por anos pela monocultura canavieira do século passado.

Universal Images Group/Getty Images

Contra o patriarcado no churrasco

Na vanguarda do movimento, em 2015, Rogério Betti criou com amigos o festival Churrascada, um dos maiores do mundo. Nesse cenário, nasceu o profissional do churrasco no Brasil, uma carreira que paga cachês de 1.500 reais para assar carnes e legumes em festas particulares, em média. Formada em gastronomia e comércio exterior, Camila Miyahara teve uma ascensão meteórica no restaurante Quintal DeBetti a partir de 2018. De subchefe da cozinha passou para chefe, depois para gerente do restaurante e, atualmente, gerencia tudo o que envolve a marca DeBetti. “No começo, era uma das únicas mulheres da equipe. Hoje, representamos 20% dos funcionários”, diz.

A chef Larissa Morales, formada em gastronomia, criou há três anos o primeiro canal de churrasco apresentado por uma mulher no YouTube, o Larica na Brasa. O trabalho não venceu apenas o preconceito do segmento, majoritariamente masculino, mas também se tornou um case impressionante: são 120.000 inscritos que acompanham diariamente as receitas e dicas da cozinheira. “Fazia churrasco na casa dos amigos e a dor de cabeça já começava no açougue. Pedia picanha e o funcionário queria me vender coxão duro, duvidando do meu conhecimento”, conta. “Meu canal me deu visibilidade, sem que eu dependesse de ninguém. Venci o machismo.”

Diversão para todos

De uma família de açougueiros com mais de um século de tradição, Rogério Betti produz e vende 100 toneladas de carne de cruzamento de Angus com Nelore e já fez churrascos até para xeiques árabes em Dubai. Ele resume o que considera ser a nova ética no segmento: “É comprar um animal de alta qualidade, bem tratado, pagar um bom preço ao fornecedor, ter minha margem de lucro e meu cliente ficar satisfeito”. Para Betti, quando o consumidor pede uma carne de qualidade, come menos e não tem desperdício. Ele prega a democratização do consumo. “No meu restaurante vêm pessoas simples, que consomem 25 reais, e milionários que pagam contas de 10.000 reais. Acho que churrasco é isto: diversão para todo mundo”, afirma.

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