Ilka Almeida, da fintech Creditas: aulas de meditação e parte do aluguel custeada pela empresa integram o pacote de benefícios (Eduardo Frazão/Exame)
Luísa Granato
Publicado em 15 de julho de 2021 às 05h25.
Última atualização em 8 de setembro de 2021 às 11h17.
Uma vez a cada três meses a equipe de recursos humanos da Olist, startup a caminho de se tornar unicórnio de Curitiba destinado a conectar pequenos lojistas a marketplaces como Americanas e Magazine Luiza, faz uma espécie de “Black Friday” do pacote de benefícios oferecido aos funcionários. A cada fim de trimestre, a plataforma de benefícios, Beneflex, fica aberta para os 1.000 funcionários mudarem por completo o portfólio de mimos corporativos.
O esquema lembra um programa de fidelidade: o funcionário ganha uma porção de pontos de acordo com o cargo ocupado na empresa e, em datas predeterminadas, é bombardeado por ofertas de agrados patrocinados pela Olist.
Basta o funcionário colocar em seu carrinho virtual o que mais lhe agrada. Na lista estão desde benefícios convencionais, como vales-alimentação e transporte, até agrados inusitados, como seguro de vida para os pets dos funcionários ou ajuda de custo para a aquisição de instrumentos de trabalho no home office.
Tudo isso, na visão da Olist, ajuda a atrair gente qualificada num cenário de escassez generalizada de talentos do mercado de trabalho. “Os funcionários veem os benefícios como uma maneira de deixar de gastar por vias próprias”, diz Melissa Guimarães, responsável pela área de recursos humanos da Olist e uma das principais defensoras do modelo “total flex” dos benefícios corporativos.
Ao que tudo indica, até agora a estratégia tem funcionado. Fundada em 2015, a Olist demorou cinco anos para chegar a 500 funcionários. Turbinada pelo aporte de 310 milhões de reais numa rodada liderada pelo banco japonês SoftBank, em novembro do ano passado, a Olist dobrou o número de funcionários no início de 2021. A maioria já personalizou pelo menos uma vez o pacote de benefícios. “O sistema ajuda na atração e retenção de mão de obra”, diz Guimarães.
A filosofia da Olist de dar liberdade total aos funcionários para montar um pacote de benefícios corporativos é uma tendência crescente mundo afora. A pandemia e o home office mudaram radicalmente as regras do trabalho e, de quebra, as aspirações da mão de obra. Antes da crise sanitária, o convívio num mesmo escritório impelia colegas de empresa a esperar mais ou menos a mesma coisa de seus empregadores.
Em países com tradição de saúde suplementar, como Brasil e Estados Unidos, um bom plano de saúde invariavelmente ficava em primeiro lugar na lista de desejos sobre os empregadores. Agora, com cada um por si em sua residência, as aspirações tomaram rumos bem distintos — e forçaram uma guinada na atuação dos departamentos de RH. Numa pesquisa recente da consultoria em saúde Mercer Marsh Benefícios com 737 empresas brasileiras, de vários portes e setores de atuação, 48% disseram adotar algum benefício corporativo flexível. Numa sondagem semelhante, em 2019, só 17% tinham essa prática.
“Estamos no vértice de uma nova onda, o mundo do trabalho como um todo será mais flexível, mais variado e personalizado”, diz Antonio Salvador, líder de negócios na Mercer Brasil.
A boa vontade das empresas com seus funcionários está abrindo oportunidades de negócios. O faturamento do setor de benefícios corporativos, onde estão gigantes como a francesa Sodexo e a brasileira Alelo, cresce 6% ao ano no mundo. Trata-se de um mercado com receitas globais de 37 bilhões de dólares — 18% disso em países da América Latina, segundo uma estimativa da consultoria americana Baroe.
Economias emergentes, como o Brasil, devem sustentar a expansão nos próximos anos, segundo a consultoria. Entre os motivos por trás da expansão estão a entrada de jovens da chamada geração Z (nascidos nos anos 2000) e a disputa entre os departamentos de RH por gente capacitada em setores como o de tecnologia da informação (TI). Na conta estão ainda fatores como a transformação digital das empresas, responsável pela abertura de milhares de postos de trabalho em boa medida ocupados, justamente, pelos profissionais da geração Z, já acostumados a ser bombardeados por afagos, como cashback ou programas de milhagem, na hora de fazer uma compra na internet.
Daqui para a frente, essa lógica de ir atrás da melhor oferta deve ficar mais evidente dentro das empresas — mesmo que isso contrarie o jeitão de trabalhar de profissionais mais velhos. “Os dinossauros serão exceção”, diz Salvador.
Essa nova era dos benefícios corporativos vem na esteira de décadas de evolução na maneira como as empresas enxergam os atrativos oferecidos à sua mão de obra. As mudanças dependiam do nível de tolerância das gerações aos sofrimentos impostos pela labuta diária — e da pressão exercida por sindicatos e legisladores para melhorar as condições de trabalho. Basta lembrar que no advento da Revolução Industrial, em meados do século 19, a norma eram jornadas de trabalho acima de 14 horas diárias em linhas de produção pouco iluminadas e com nada além de um salário em troca.
De lá para cá, alguns eventos ajudaram a explicar a liberdade crescente dos tempos atuais. Em 1946, logo após a Segunda Guerra, o governo do primeiro-ministro trabalhista britânico Clement Attlee introduziu uma lei pioneira obrigando empresas a garantir a alimentação de seus funcionários, dando o pontapé inicial dos mercados de vale-alimentação e das refeições em cantinas corporativas.
O Brasil adotou uma legislação três décadas mais tarde. Até os anos 1990, patrões ofereciam comida, transporte da casa ao trabalho e, como diferencial, a possibilidade de uma carreira longa e planejada aos melhores funcionários.
A ruptura da lógica ocorreu em meados dos anos 2000, com a globalização e a expansão de empresas de tecnologia com ramificações globais. Em 2006, o Google criou a posição de chief culture officer, algo como um diretor de cultura, para consolidar essa visão de ambiente de trabalho e de benefícios inovadores. Hoje, a posição é ocupada pela executiva Stacy Sullivan, uma das mais influentes da empresa.
Em paralelo, reformas trabalhistas como a implantada pelo governo de Michel Temer no Brasil, em 2017, colocaram regras para mudanças importantes nas relações trabalhistas, como o trabalho em home office e as férias em modalidades distintas dos 30 dias garantidos por lei, além de criar regras para o chamado trabalho intermitente, pago por horas. A pandemia só acelerou um movimento de flexibilização já em prática há algum tempo.
Em meio à corrida das empresas pelo conforto de sua mão de obra, startups dedicadas justamente a mapear os benefícios mais adequados ao perfil do funcionário ganham clientes. Há, via de regra, duas maneiras de tirar as amarras das empresas nessas horas. Uma delas é criar benefícios, como estender a licença parental para seis meses (a lei estipula apenas quatro) e também aos funcionários homens (pela legislação brasileira, só mulheres têm direito à folga).
Outra é tornar mais maleável a distribuição de recursos nos itens obrigatórios, regulamentados pela lei trabalhista, normas e acordos sindicais. São os clássicos de vale-alimentação, refeição, plano de saúde e seguro de vida.
Para garantir que o dinheiro investido pela empresa em benefícios seja usado apropriadamente pelo funcionário, o empreendedor Marcelo Ramos fundou a Vee Benefícios em 2016. A proposta de valor da startup é estreitar o abismo entre o gasto do RH com a empresa e a percepção de valor do empregado sobre o que lhe é ofertado.
“O primeiro passo foi mudar a mentalidade de que o benefício é uma mercadoria, uma commodity, para focar a experiência do usuário”, diz Ramos. A solução inicial do negócio foi oferecer um cartão único para flexibilizar a distribuição das quantias para vale-alimentação e refeição. Depois, a evolução foi oferecer a segunda forma de flexibilização: criar uma plataforma única para o RH e o colaborador com diversos serviços e produtos opcionais.
O faturamento da empresa vem crescendo a taxas anuais de dois dígitos — no ano passado, foram 73 milhões de reais. Em fevereiro deste ano, a Vee captou 200 milhões de reais após um processo de fusão com a francesa Swile, uma das maiores do setor. O negócio deve agregar serviços de análise de dados na plataforma. “É um caminho sem volta”, diz Ramos.
A expansão acelerada é a mesma jornada trilhada pela Flash Benefícios, fundada em 2019 e já destino de 125 milhões de reais aportados pelo fundo americano de venture capital Tiger (a rodada foi em junho deste ano). Além de oferecer o famoso cartão físico multibenefícios, a startup quer ser um hub digital para soluções de RH — a ideia é poder contratar por ali fornecedores de benesses como os vouchers para os perus de Natal doados por muitas empresas aos funcionários, entre outras tantas coisas.
“É necessário criar algo que gere valor para o colaborador, algo que crie o diferencial na proposta de trabalho”, diz Ricardo Salem, um dos fundadores da Flash. Com a proliferação de concorrentes, empresas tradicionais como Sodexo, VR Benefícios e Alelo correram para acompanhar as inovações das novas entrantes. Em 2020, por exemplo, a Sodexo lançou um cartão que funciona como carteira digital.
A facilidade de contratar boa parte dos benefícios, muitos deles disponíveis em aplicativos para celular, acelera a curva de adoção deles nas empresas. Um bom exemplo é o aplicativo Gympass, pioneiro no Brasil em ofertar um cardápio de academias, personal trainers, nutricionistas e até profissionais dedicados a ensinar meditação à mão de obra. Na pandemia, essas facilidades ajudaram a seguradora Zurich a dar uma força, à distância, aos 1.500 empregados espalhados pelo país.
Mesmo em casa, Pryscilla Ferreira, analista da Zurich, sentiu-se conectada ao trabalho com um recurso de meditação guiada por um aplicativo patrocinado pela empresa. A ferramenta serviu como canivete suíço durante a pandemia. Por ali, Ferreira checou sintomas da covid-19, testou sugestões de caminhadas e agora está treinando para a primeira maratona.
“A empresa sempre esteve lá para me apoiar, nos momentos mais difíceis da solidão no isolamento; e agora até com o preparo mental para uma maratona ou o dia a dia do trabalho”, diz. Na pandemia, a seguradora aderiu à campanha Não Demita, além de estender o auxílio funerário a parentes vítimas da covid-19 e fazer uma apólice de 1.000 dólares para o caso de internação de qualquer membro da família internado com sintomas graves causados pelo vírus. Em outra frente, a empresa investiu em diversidade: a licença parental foi estendida a casais de todas as orientações sexuais. O plano de saúde, agora, cobre também cirurgia de readequação sexual. Tudo isso baixou a rotatividade de 17% para inéditos 10%.
Olhando para a frente, o avanço da vacinação e do trabalho híbrido deverá forçar mudanças ainda mais radicais nas políticas de benefícios das empresas. Os aplicativos de mobilidade estão mirando clientes corporativos interessados em mimar seus funcionários. No Brasil, Uber e iFood já disponibilizam em seus apps áreas para funcionários rodarem por aí ou pedirem comida por conta de seus empregadores.
Recentemente, a IWG, gigante britânico do mercado imobiliário dono das marcas de coworkings Spaces e Regus, lançou um serviço sob demanda para empresas dispostas a oferecer um terceiro local de trabalho a funcionários de saco cheio do home office e, ao mesmo tempo, sem disposição de voltar para a antiga baia no escritório.
A depender do desejo dos brasileiros, a educação financeira deve virar um filão para mais benefícios corporativos. Numa pesquisa recente da Mercer, sete em dez entrevistados disseram confiar no aconselhamento financeiro oferecido pelos empregadores. Em outro estudo, feito pelo Ibope e encomendado pela fintech de crédito Creditas, 37% dos profissionais endividados procuraram novos empregos para pagar as contas; outros 26% ficaram desmotivados com o serviço.
Por isso, a Creditas criou uma frente de negócio chamada Creditas @Work com crédito consignado, adiantamento de salário e educação financeira para os funcionários em apuros financeiros. “É um complemento aos benefícios que acreditamos muito que vai melhorar o ecossistema de educação financeira no país. E é um pilar para o bem-estar dos colaboradores”, diz Viviane Sales, vice-presidente do Creditas @Work.
Na corrida pelos benefícios, um recado dos especialistas a quem está disposto a dedicar tempo e energia: chame os beneficiários para a conversa — só assim é possível acertar a mão. Esse tipo de diálogo acontece com certa frequência entre os funcionários da Creditas. Em julho, por demanda popular, a fintech fechou uma parceria com uma empresa de assistências especializadas para ofertar um serviço de manutenção para casa, dando acesso rápido a encanadores ou eletricistas.
Em 2019, a fintech já havia criado um grupo de meditação de uma iniciativa de Ilka Almeida, gerente de projetos na Creditas. “Agora temos aulas de ioga, práticas semanais de meditação e até reiki à distância”, diz Almeida. Atualmente, ela mora num apartamento mobiliado cujo aluguel é parcialmente custeado pela empresa.
Foi com o espírito de ouvir o público-alvo dos benefícios que o RH da Tempest, uma das principais empresas de cibersegurança do país, criou recompensas de até 10.000 reais por publicação de artigos científicos no exterior. O prêmio ajuda na retenção de seus 400 funcionários, boa parte deles sendo hackers cujo perfil é difícil de achar no mercado. Em dois anos de benefício foram mais de 120 publicações de 58 pesquisadores da casa. Assim como a Tempest, muitas empresas já indicaram a disposição de investir cada vez mais para agradar os funcionários. É mais uma faceta do futuro antecipado pela pandemia.
Para Job van der Voort, CEO da Remote, a startup que quer inovar a contratação no futuro remoto, e uma das principais lideranças de times 100% remotos, empresas globais precisam ter benefícios replicados para equipes de diferentes locais | Luisa Granato
Conforme as empresas começam a adotar modelos mais flexíveis de trabalho, surge a oportunidade de contratar funcionários sem se importar com sua localização. Parece tudo lindo até precisar de um endereço para mandar o VR. E oferecer um plano com cobertura na região do funcionário. E, se for contratar gente fora do país, como fazer o pagamento?
Essas dificuldades assombravam o dia a dia do holandês Job van der Voort quando ele era vice-presidente da GitLab, empresa de software que nunca teve escritório e contrata pessoas do mundo todo. Ao perceber que ninguém resolvia o problema que ele tinha, Voort fundou a Remote com Marcelo Lebre em 2019. A startup já recebeu 46 milhões de dólares e está presente em mais de 30 países, incluindo o Brasil, tanto oferecendo o serviço para empresas quanto contratando pessoas. O negócio cuida da folha de pagamentos, faz consultoria sobre os benefícios legais em cada localidade e mostra o que adicionar ao pacote para tornar a empresa mais competitiva.
Você acredita que mais empresas vão contratar globalmente?
Sim, eu acredito que quase todas as empresas vão precisar competir globalmente para encontrar os melhores talentos. Se você está em posição para contratar remotamente, você já começou a fazer isso, especialmente quando você olha para profissionais de alta demanda de marketing, design e software. Você pode ganhar muito bem e não estar preso ao lugar em que mora.
Ao contratar globalmente, os benefícios de alguns países vão influenciar os de outros?
Primeiro, existem os benefícios regulamentares. Se você contrata nos Países Baixos ou em Portugal, nós podemos recomendar quais são os requerimentos legais em cada país. Para os profissionais de todos os lugares estarem em pé de igualdade, o mesmo benefício de um local pode ser replicado para a equipe de outro. E benefícios adicionais garantem essa igualdade entre funcionários de locais distintos, como um orçamento para home office que em alguns países é obrigatório, por exemplo. Outra coisa que é muito efetiva para a concorrência global: pagar melhor as pessoas. É uma boa, parece óbvio, mas é efetivo. Em alguns países, empregar muitos profissionais lá pode ser muito vantajoso se você consegue concorrer com os salários locais. Eu vejo que são os caminhos que empresas que querem competir globalmente vão tomar.
O que isso muda na cultura e para o RH?
Uma vez que você se livra do escritório, é preciso se adequar a outras mudanças, como diferentes fusos horários e viagens de negócios. A ideia de “estar junto ao mesmo tempo”, do expediente das 9 às 5 horas, começa a desaparecer e você passa a operar com um pensamento assíncrono. Não é necessário ter uma reunião para cada coisa ou estar junto para fazer seu trabalho individual. Você pode compartilhar informações por tantas formas, como o velho e-mail, ou até gravar vídeos assíncronos usando o Loom.