Revista Exame

No varejo de roupas a moda é ser responsável

Sob ataque por questões polêmicas, como más condições de trabalho, o varejo de roupas investe para ter mais transparência nas suas oficinas de costura

Loja da C&A, em São Paulo: fornecedores certificados (Germano Lüders/Exame)

Loja da C&A, em São Paulo: fornecedores certificados (Germano Lüders/Exame)

AJ

André Jankavski

Publicado em 4 de julho de 2019 às 05h34.

Última atualização em 8 de julho de 2019 às 15h06.

Uma equipe coordenada pela paulista Dari Santos costumava buscar cartazes com ofertas de emprego espalhados nas ruas das zonas leste e norte de São Paulo. Nessas regiões, além de pequenos restaurantes com cardápios cada vez mais fartos de opções da culinária boliviana, não faltam anúncios de oficinas de costura. Eles são procurados em boa parte por imigrantes vindos da Bolívia em busca de dinheiro para sobreviver e para enviar à família no país natal.

Quase sempre o trabalho oferecido não envolve carteira assinada e as pessoas muitas vezes dormem e comem no mesmo espaço exíguo. No Instituto Alinha, ONG que fundou em 2014 e preside, Dari quer mudar a realidade dessas oficinas clandestinas. O primeiro passo é legalizá-las. O segundo é melhorar as condições de trabalho. Há casos, segundo ela, em que os trabalhadores recebiam 4 reais por hora. Para chegar a um salário mínimo por mês, o pagamento às oficinas deveria ser de pelo menos 14,50 reais a hora.

O esforço da Alinha ganhou força nos últimos dois anos, quando passou a oferecer algo em troca às oficinas convertidas: a chance de vender seus produtos para varejistas interessados em garantir uma cadeia de suprimentos livre de mazelas como o trabalho análogo à escravidão. Desde 2017, as oficinas são cadastradas num sistema que usa a tecnologia blockchain, espécie de livro contábil virtual de alta segurança, que faz o registro de transações pela internet, como as usadas pelas criptomoedas. A proposta é manter a confiabilidade do registro de origem, capaz de ser rastreado inclusive pelo próprio consumidor, por meio de uma etiqueta presa a cada peça. Por enquanto, já são 97 oficinas no sistema, sendo que 68 tiveram algum tipo de intervenção da ONG. “A ideia é criar uma cadeia mais transparente do início ao fim”, afirma Dari.

O problema ainda está longe de uma solução definitiva e pressiona a indústria de moda. Um levantamento da organização não governamental australiana Walk Free Foundation apontou que o Brasil teria cerca de 370 mil trabalhadores em condição considerada análoga à escravidão — no ano passado, o Ministério Público do Trabalho resgatou 2.000 no país. A maioria deles está nos setores têxtil e de agropecuária. No mundo, são 40 milhões de pessoas nessas condições — e o setor têxtil é o segundo principal responsável por isso, atrás apenas do de tecnologia.

Estima-se que 128 bilhões de dólares sejam movimentados por ano no setor têxtil com produtos que envolvam trabalho análogo à escravidão em todo o planeta. O valor corresponde a 5% do que gira a indústria da moda. Sob ataque, boa parte das grandes varejistas do setor, em reação, tem tentado tornar mais transparente a cadeia de fornecimento — que se manteve por muito tempo como uma espécie de caixa-preta. O que se vê é um movimento inédito no sentido de jogar luz em informações no mundo todo e, mais recentemente, no Brasil.

Boa parte da dificuldade em rastrear a cadeia de suprimentos nesse setor está em sua complexidade. No modelo consolidado ao longo dos anos, a terceirização se repete em cascata até chegar, muitas vezes, a milhares de pequenas oficinas clandestinas. Mudar, nesse caso, pode representar um processo demorado. Um exemplo é o esforço empenhado pelas 90 companhias ligadas à Associação Brasileira de Varejo Têxtil (ABVTex). O grupo patrocina uma devassa na cadeia de fornecedores para certificar oficinas de costura desde 2010. Nesse período, foram certificadas 3 800 oficinas e 34 mil auditorias foram feitas.

Com uma base ampla de fornecedores, o projeto começou finalmente a render frutos. No primeiro relatório, divulgado em 1o de julho, 32 empresas associadas — entre as quais as três maiores do varejo de moda: as redes Renner, Riachuelo e C&A — conseguiram migrar recentemente 100% de suas cadeias para as oficinas certificadas. “É um mercado bastante fragmentado, mas nossa- participação acaba sendo significativa”, diz Edmundo Lima, diretor executivo da ABVTex, que representa 25% do setor, com mais de 20 mil oficinas de costura espalhadas pelo Brasil.

No mundo, a transparência desses dados começou a ganhar força com a iniciativa de organizações independentes. É o caso do movimento Fashion Revolution, criado por ativistas em 2013 no Reino Unido após o desabamento do edifício Rana Plaza, em Bangladesh. A tragédia matou mais de 1 000 trabalhadores da indústria da moda e deixou outros 2 500 feridos, e trouxe à tona as péssimas condições de trabalho a que eram submetidos.

Desde 2017, a organização realiza um levantamento anual chamado “índice de transparência do setor”, que mescla dados públicos aos fornecidos voluntariamente pelas empresas sobre as condições de trabalho na cadeia e outros temas, como o impacto ambiental da produção. A primeira edição teve 40 empresas globais, nenhuma delas com mais de 50% dos pontos possíveis no índice. A mais recente teve 200 companhias participantes, e 18 pontuaram acima desse patamar. As marcas Adidas, Reebok, Patagonia, Espirit e H&M tiveram um desempenho ainda melhor: conquistaram mais de 60% dos pontos.

No Brasil, por enquanto, a instituição britânica realizou apenas um levantamento em 2018. Os dados não parecem tão animadores. Somente duas empresas ultrapassaram metade dos pontos possíveis: a subsidiária da holandesa C&A e a catarinense Malwee. O engajamento voluntário na hora de abrir informações também ainda é baixo. Das 20 companhias analisadas, 40% não responderam ou não concluíram as questões do relatório da instituição. “O mercado brasileiro tem evoluído, mas ainda tem muito a ser feito”, afirma Eloísa Artuso, diretora de educação na Fashion Revolution Brasil.

Oficina têxtil: há cerca de 20 mil delas no país, numa complexa cadeia de suprimentos | João Prudente/Pulsar Imagens

Isoladamente, algumas companhias e representantes do setor também começam a abrir outras frentes para ampliar a transparência no setor. A família Brenninkmeijer, fundadora da C&A, por exemplo, começou a dedicar investimentos ao Instituto C&A, braço filantrópico independente da varejista, e para iniciativas como o Instituto Alinha. A gaúcha Renner iniciou recentemente a estruturação de sua própria cadeia baseada na mesma tecnologia, ainda em fase de testes. “Já é cada vez mais claro que a moda antiga está saindo de moda”, afirma Paulo Correa, presidente da C&A no Brasil. Como um dos efeitos desses esforços, as grandes empresas do setor não têm recebido autuações do Ministério Público do Trabalho desde meados de 2017.

Trata-se de um movimento que vai determinar a própria sustentabilidade do setor no longo prazo. Uma pesquisa da consultoria Euromonitor aponta que 17% dos brasileiros preferem comprar roupas produzidas de forma responsável. É um número que deve crescer, segundo especialistas. No setor têxtil, o trabalho análogo ao escravo é uma das maiores, mas não a única controvérsia. Recentemente entrou em xeque o próprio modelo de negócios preponderante nesse segmento, o fast fashion, que estimula a troca contínua de peças e coleções. A questão é o impacto que o consumo acelerado gera, desde a produção de algodão (o cultivo agrícola que mais demanda o uso de agrotóxicos e um dos que mais consomem água) até o descarte do produto. A reflexão já fez com que parte do setor se reinventasse.

A americana Urban Outfitters criou um serviço de aluguel de roupas chamado Nuuly: por 88 dólares mensais, o cliente pode pegar emprestados seis itens e usá-los por 30 dias. Depois é só devolver. A meta é chegar a 50 milhões de dólares de faturamento no primeiro ano de operação. E esse tipo de discussão já influencia os mercados em todo o mundo. Na Dinamarca, o empresário Reimer Ivang criou a startup Better World Fashion, especializada em jaquetas de couro. Em parceria com uma ONG, a empresa passou a aproveitar couro de segunda linha, que pode ser reciclado diversas vezes. Além disso, a Better World Fashion aposta no aluguel: a pessoa pode comprar uma jaqueta pelo preço de 450 dólares ou alugar por 25 ao mês. Se o consumidor a alugar por 18 meses seguidos, a jaqueta passa a ser oficialmente dele, numa espécie de compra a prazo. Como última opção, após a compra, o consumidor ainda pode devolver a jaqueta para reciclagem e comprar outra pela metade do preço. A Better World Fashion já vende para 40 países. “O mercado de moda está mudando e os consumidores estão querendo roupas melhores e mais sustentáveis”, diz Ivang.

Na Europa, onde a renda média chega a ser seis vezes a brasileira, a transformação deve ser mais veloz. Mas, também por aqui, embora o preço ainda tenha um apelo relevante, a exigência por mais responsabilidade é vista como uma tendência irreversível. No Brasil, a Renner já assumiu uma série de compromissos até 2021: 100% de seus produtos deverão ter algodão certificado. A Riachuelo pretende abrir, em setembro, uma loja que oferecerá serviço de reparação e reforma de roupas. “O setor de moda vai se transformar e o que vai sobrar do fast fashion é a eficiência e a rapidez, sem a pegada negativa que ainda vemos hoje”, afirma Elio Silva, diretor executivo de marketing da Riachuelo. Nesse caso, a moda — para ser bem-sucedida — terá de ser duradoura.

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