Temer: sem popularidade e sem preparo para enfrentar a greve | Andre Coelho//Getty Images / (Andre Coelho/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 7 de junho de 2018 às 05h00.
Última atualização em 7 de junho de 2018 às 05h00.
Há dois modos de interpretar a declaração feita no dia 28 de maio pelo ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, de que o governo venceu a greve dos caminhoneiros. E nenhum dos dois é muito reconfortante. O primeiro é que o governo decidiu experimentar essa via de comunicação que tem sido tão usada ultimamente, a prática das notícias exageradas, alternativas — ou simplesmente falsas. O segundo modo de interpretar a declaração é mais benévolo, mas igualmente inquietante: a escala que o governo usa para definir o que é vitória está completamente desregulada.
Em qualquer dos casos, pode-se afirmar que pelo menos nesse episódio o presidente Michel Temer (a quem cabe a responsabilidade última pelas ações do governo) não demonstrou sua propalada qualidade de ser um bom negociador. Ele não está sozinho nessa dificuldade. Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump, que se autointitula um especialista na arte de negociar, tornou um hábito proclamar vitória após grandes recuos — como no recente embate com a China, quando, depois de alardear que exigiria um gasto de 200 bilhões de dólares extras por ano em produtos americanos e receber como resposta um inequívoco não, aceitou um acordo que alude a um vago compromisso de comprar uma não especificada quantidade de bens produzidos nos Estados Unidos.
Ou como no caso da Coreia do Norte, em que atropelou a diplomacia marcando uma reunião de cúpula pelo Twitter para suspendê-la ante alguns desrespeitos do “líder supremo” Kim Jong-un a seu governo. Ou o caso do muro na divisa com o México, que ele ainda insiste que será construído e pago pelos mexicanos; ou pela rejeição de acordos tachados de “péssimos”, como o da desnuclearização do Irã, o acordo de Paris para deter o aquecimento global e, possivelmente, o Nafta, de livre comércio com Canadá e México, sem viabilizar alternativas. A lista é enorme.
Mas, se atingiu o mesmo ponto que Trump (chamar derrotas de vitórias), Temer chegou ali pelo caminho oposto. O estilo de Trump é buscar o confronto. Xingar. Bater com o bastão na mesa. Mostrar-se forte para intimidar o adversário e forçá-lo a aceitar seus termos. No caso da Coreia do Norte, deu a entender, inclusive, que poderia usar armas nucleares.
Temer, na negociação com os caminhoneiros, foi tépido. Ante críticas de ter permitido que os grevistas dominassem as discussões, respondeu, sem citar a greve diretamente: “Alguns confundem, e digo isso com letras garrafais, diálogo com even-tual leniência política, fraqueza. O diálogo é da própria essência da democracia, é a sua fortaleza”.
O diálogo, porém, teve primordialmente uma única via — como admitiu o próprio presidente, em 29 de maio, em entrevista à TV Brasil, afirmando ter cedido tudo o que era possível. “Esprememos todos os recursos governamentais para atender os caminhoneiros e para não prejudicar a Petrobras”, disse. “A essa altura não temos mais como negociar, o que fornecer.” E concluiu dizendo ter a “impressão” de que em um ou dois dias a situação estaria normalizada. Ninguém leu o manual? Num confronto que poderia culminar numa grave crise de abastecimento (como acabou ocorrendo), em vez de seguir à risca as boas práticas de negociação, o governo decidiu riscar boa parte do manual da disciplina.
Uma das regras bem estabelecidas por especialistas é jamais ceder sem levar algo em troca. Outra é usar o tempo a seu favor. O que o governo fez foi o contrário. Deixou que a situa-ção chegasse a um ponto em que cada dia de greve representava uma agonia. E cedeu, tudo, sem a garantia de que o movimento teria fim.
De acordo com G. Richard Shell, um dos mais conceituados especialistas em negociação, o sucesso de uma negociação depende até 90% da preparação dos negociadores. Ele é autor do livro Negociar É Preciso — cujo título original, Bargaining for Advantage (na tradução do inglês, “Barganhando por vantagem”), dá uma noção mais clara do embate a que os negociadores estão sujeitos. O mesmo conceito dá base ao best-seller Pré-suasão, do psicólogo Robert Cialdini. O neologismo do título é um recado de que a persua-são ocorre antes mesmo do encontro. Cialdini fala especialmente de marketing, mas suas ideias se aplicam igualmente à mesa de negociação.
Por essa ótica, o governo Temer já entrou no confronto em desvantagem: seus baixos índices de popularidade revelam uma dificuldade atroz em “pré-suadir”, persuadir e possivelmente (mas só a história poderá dizer) “pós-suadir”. Deepak Malhotra, professor na escola de negócios de Harvard e autor de Acordos Quase Impossíveis, afirma que a qualidade mais importante de um negociador é a empatia. Ele precisa entender os interesses, as limitações, as alternativas e o ponto de vista dos demais envolvi-dos na negociação. O governo brasileiro teve empatia, no sentido de ser gentil e generoso com os grevistas. Mas não é disso que se trata, segundo Malhotra. A empatia é necessária para atingir os próprios objetivos. Trata-se de compreender o que move seus interlocutores, para estruturar um acordo viável. Sem isso, não é possível saber quanto poder se tem para negociar com eles.
Outro especialista, Adam Grant, professor na escola de negócios Wharton, recomenda no livro Dar e Receber que você entre numa negociação sabendo seu preço-alvo e as condições em que você desistiria de chegar a um acordo. Ao que tudo indica, o governo não tinha um preço-alvo. Aparentemente, também entrou nas negociações sem um Batna, conceito primordial de William Ury, coautor do primeiro best-seller da disciplina, Como Chegar ao Sim. Batna significa “melhor alternativa a um acordo negociado”, das iniciais da frase em inglês. Quer dizer que você deve ter em conta qual a melhor opção caso a negociação não dê certo. Ela representa seu limite inferior de acordo. Pela lógica, você não deveria aceitar termos piores do que poderia obter sem negociação nenhuma.
Não se pode dizer que o governo te-nha feito isso. Uma alternativa às ne-go–ciações seria colocar a polícia (e, pro-vavelmente, as Forças Armadas) nas ruas para reabrir estradas à força — com alto risco de consequências bem piores do que ceder às exigências dos grevistas. O problema é que a solução para a greve dos caminhoneiros abriu as portas para outros movimentos. Ao dar sinais de fraqueza (por mais que a chame de “inclinação ao diá-logo”), deu a entender que qualquer categoria com suficiente poder de pressão pode conseguir o que quiser.
O contraponto mais eloquente para a tibieza com que o governo tratou as demandas dos caminhoneiros é a mão de ferro com que a então primeira-ministra britânica, Margaret -Thatcher, lidou com a greve dos mineiros nos anos de 1984 e 1985. Curiosamente, quando a greve acabou, Thatcher não cantou vitória. Disse apenas que estava extraordinariamente aliviada. À pergunta sobre quem ganhou e quem perdeu ao final daquela tão longa paralisação, ela respondeu que, se havia algum vencedor, eram “os mineiros, que continuaram trabalhando, os trabalhadores que mantiveram as atividades e impediram o país de parar”. Claro, não havia necessidade de dizer que havia vencido. O mundo inteiro sabia que -Thatcher não apenas ganhara a parada contra os mineiros, ela tinha dado um golpe incapacitante em todo o movimento sindical — que desde a década anterior fazia sucessivos governos de reféns, com exigências que faziam sentido em cada caso, mas, no conjunto, paralisavam a economia.
Não é sensato, no entanto, acreditar que bastaria repetir, aqui, as atitudes que deram certo no caso britânico. A maior diferença era que Thatcher estava preparada para o confronto. Pode-se até considerar que ela havia sido eleita para travar essa batalha. Sob o comando do Partido Trabalhista, os sindicatos ganharam tanto poder que suas reivindicações por melhores salários e condições de trabalho contribuíram para tornar a indústria do país cada vez menos competitiva, numa economia que se tornava cada vez mais global. E então se fazia um círculo vicioso: o país tinha menos possibilidades de atender às demandas, as condições de trabalho pioravam… e as demandas aumentavam. E os sindicatos ficavam mais intransigentes. Naquela década, o Reino Unido perdeu o equivalente à produção anual de mais de 60 000 trabalhadores em razão de greves e paralisações.
Nesse clima, Thatcher se elegeu com uma plataforma de reformas de um mercado de trabalho rígido e pouco competitivo. Não só Thatcher não foi pega de surpresa (e seu governo estocou carvão para não ficar refém dos mineiros) como a greve ocorreu pouco tempo depois da rápida e fulminante vitória britânica na Guerra das Malvinas, contra a Argentina. Antes daquela guerra, pouca gente acreditava que Thatcher ficasse mais um ano no poder; após a vitória militar, sua popularidade subiu 10 pontos percen-tuais, ficando à frente de trabalhistas e social-democratas — e pavimentando o que seriam seus 11 anos de governo.
Foi fácil para Thatcher, portanto, usar um discurso de guerra contra os mineiros. Literalmente, ela afirmou que enfrentara os inimigos “de fora”, agora era o momento de enfrentar os inimigos “de dentro”. Não titubeou em convocar a polícia para reprimir piquetes. Além disso, os mineiros não conseguiram fazer uma assembleia nacional e, por isso, a greve foi declarada ilegal — o que permitiu manter algumas regiões produzindo energia para o país.
Nenhuma dessas condições estava disponível para o governo Temer. Ele não teve nem popularidade nem preparo. Pode-se argumentar que a inteli-gência do Estado não funcionou: o governo menosprezou a movimentação dos caminhoneiros e só percebeu o risco quando era tarde demais. Ocorre, porém, que o setor de inteligência não estava treinado para esse novo mundo, em que as lideranças não podem ser identificadas porque espocam localmente, alimentadas por mensagens em redes sociais, e são menos guias que intérpretes — quer dizer, podem ser desautorizadas no instante em que deixarem de refletir a insatisfação geral. Essa condição, aliás, torna muito mais difícil uma negociação.
Quase tudo que poderia dar errado para o governo, nas negociações com os caminhoneiros, deu. Mas uma paralisação convocada em seguida pelos petroleiros foi prontamente enfrentada com ações para declará-la ilegal. E, por ação coordenada ou espontânea, os chefes militares afastaram qualquer hipótese de insurgência contra o governo. Aparentemente, a lição foi aprendida. Ao custo de 13 bilhões de reais em gastos extras e ao risco de perder (novamente) a credibilidade da Petrobras, que mal voltara a ser a maior empresa do país e já despencou do posto. Uma lição bem cara.