A Assis quer ajudar empreendedores individuais a prosperar, conta Raphael Machioni (à esq.), CEO e cofundador da empresa (Assis/Divulgação)
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Publicado em 29 de abril de 2024 às 06h00.
Última atualização em 29 de abril de 2024 às 10h44.
A humanidade sempre teve um anseio por assistência. Não é à toa que a ficção científica tem tantos robôs e criaturas “de serviço”: do R2-D2 de Star Wars à simpática Rosie, de Os Jetsons, frequentemente esteve presente o desejo de uma entidade autônoma, capaz de fazer tarefas de maneira automática, simplificando nosso dia a dia.
Graças à tecnologia de inteligência artificial (IA), esse tipo de ambição está saindo do campo do sonho e se tornando realidade: hoje, cada vez mais o uso de assistentes digitais movidos por IA está disseminado no cotidiano — e, se você ainda não usou um, provavelmente terá uma inteligência artificial para chamar de sua nos próximos meses.
Quem diz isso é a WGSN: em seu relatório de tendências para o ano de 2024, a consultoria trouxe os assistentes de IA como uma das principais novidades da temporada, destacando que “estão ajudando um consumidor sobrecarregado a lidar com tarefas mundanas, como procurar a casa dos sonhos, planejar uma viagem ou fazer compras pessoais”.
“É uma tecnologia de personalização capaz de criar experiências únicas que vão atender às expectativas individuais”, complementa Daniela Penteado, gerente de contas da WGSN no Brasil. “Graças a dados e análises sofisticadas, veremos inteligências artificiais capazes de prever, antecipar e atender desejos dos consumidores antes mesmo que eles sejam capazes de identificá-los.”
Não que a IA não faça parte da nossa vida há alguns anos — que o digam assistentes de voz como Alexa, Siri e Google Assistant, para ficar apenas em três exemplos. Mas há uma mudança significativa de uns tempos para cá. Mais especificamente desde novembro de 2022, quando a americana OpenAI lançou o ChatGPT e popularizou o conceito de inteligência artificial generativa.
Mais do que apenas um serviço, a tecnologia roda a partir de módulos como o GPT-3 e o GPT-4, desenvolvidos pela mesma empresa e também disponíveis para uma série de startups criarem suas próprias IAs, com finalidades específicas para ajudar as pessoas.
A OpenAI, porém, não está só no mercado dos chamados LLMs (large language models, ou “grandes modelos de linguagem”, em bom português). Nomes como o Google (com o Gemini) e a francesa Mistral (com diferentes modelos nomeados a partir de sua marca principal) também se colocam nesse espaço, auxiliando companhias novatas e inovadoras a conversar com usuários em diferentes línguas — incluindo, claro, o português.
Amigas geniais
É o caso, por exemplo, da espanhola Luzia: criada em abril de 2023, a startup já ajuda mais de 40 milhões de pessoas em todo o mundo em duas plataformas — um app próprio e também dentro do WhatsApp, como um contato que pode ser acionado a qualquer momento.
“Luzia é uma boa fonte de informação, tutora e é capaz de escutar e transcrever suas mensagens de áudio para texto”, explica o CEO da companhia, Álvaro Martinez, um cientista da computação que passou por empresas como Deloitte e Amazon antes de empreender.
Inicialmente lançada em espanhol, a IA ganhou uma versão que fala português em julho do ano passado e atingiu 1 milhão de usuários no Brasil em apenas quatro dias. “Hoje, o país é o nosso maior mercado”, comenta Martinez, sem abrir números específicos.
Além de escutar os áudios de usuários e transformá-los em texto, o sistema — turbinado pelos GPTs da OpenAI e outros modelos — também é capaz de traduzir textos em imagens, auxiliando turistas pelo mundo, ou sugerir receitas a partir de fotos de ingredientes. Usar o sistema hoje é gratuito, mas a empresa — que já captou 14,5 milhões de dólares em rodadas de investimentos com fundos como o Khosla Ventures — pretende faturar em interações com o mundo real.
“Na internet dos anos 2000, ninguém sabia monetizar apps. Estamos nessa era com a IA, mas imaginamos que vamos ajudar em aspectos na vida real, como pedir comida por aplicativo, e ganhar com uma fração dessas operações”, diz o CEO. “Queremos ajudar com todo tipo de tarefa. Só não somos capazes ainda de limpar sua casa, mas quem sabe um dia...”
Limpar a casa talvez seja difícil para um sistema computacional, mas já existem assistentes virtuais capazes de ajudar em tarefas cotidianas — como lavar a roupa ou preservar melhor os alimentos na geladeira. É o que acontece com a ThinQ, sistema criado pela LG e presente em diversos eletrodomésticos. “Nossa máquina de lava e seca, por exemplo, usa a tecnologia para reconhecer o peso e a densidade das roupas inseridas num tanque para entender o melhor tipo de lavagem e de uso dos produtos de limpeza”, explica Rodrygo Silveira, gerente de produtos de linha branca da LG.
Diante dessa gama de possibilidades, é importante tomar cuidado com o que se entende como IA, diz o executivo. “Depois do ChatGPT, muita gente pensa que é uma tecnologia que conversa com as pessoas, mas não é bem assim. Tem muita coisa dizendo que é IA no mercado, mas na verdade é só uma tecnologia de conectividade”, ressalta Silveira. “Muitas vezes, a IA vai trabalhar em silêncio, fazendo coisas pelo usuário sem ele nem saber, mas facilitando sua vida.”
A hora da estrela
Se a Luzia ouve o usuário, há quem busque ajudá-lo a escrever melhor — como a brasileiríssima Clarice.ai, cujo nome toma como inspiração a escritora Clarice Lispector. “É uma escritora que escreveu em vários gêneros e ainda tem um jogo de palavras com clareza, claríssimo. As pessoas gostam da homenagem”, brinca o CEO da startup, Felipe Iszlaji. Doutor em linguística computacional pela Unesp, ele criou a empresa em 2017, ainda sem utilizar os modelos de IA generativa: na época, alimentou o serviço com erros de português e desvios de estilo comuns, apresentando soluções e fazendo-o aprender com os padrões. Esse banco de dados deu origem às duas funções mais populares da Clarice: edição e revisão de textos, ajudando freelancers, produtores de conteúdo, estudantes e advogados, entre outros profissionais que trabalham com a palavra, não só com ortografia e gramática, mas também com aspectos de estilo, clareza e concisão. “Com poucos cliques, a Clarice consegue indicar o erro e uma substituição interessante, que pode ser aprovada ou não pelo usuário. Com esse recurso, a gente ajuda as pessoas e também treina um banco de dados para construir outro sistema”, diz Iszlaji.
A terceira e mais recente função da Clarice, a de redatora, ainda está em fase de construção, mas já disponível para uso. “Nossa ideia é ter um data set mais treinado para escrever em português melhor que o ChatGPT”, comenta o executivo, atualmente em busca de uma rodada de captação. Além de aplicativo e plataforma próprios, a Clarice também já tem disponível um plug-in para o Google Docs. Ao contrário da Luzia, porém, é preciso pagar para usá-la, com planos que variam de 38 reais a 75 reais por mês. Há ainda planos sob consulta para empresas — nomes como Globo e Sem Parar atualmente testam o serviço, na fase de prova de conceito.
Grandes esperanças
Os assistentes digitais não se concentram apenas em atividades corriqueiras. Há companhias interessadas em ajudar as pessoas a lidar com grandes objetivos, como uma viagem em família ou a compra de uma casa. Fundada em dezembro de 2022, a Wizzi nasceu como uma ferramenta para auxiliar agentes de turismo, mas depois percebeu que teria mais potencial ajudando os consumidores diretamente. Por meio de um questionário simples, é possível filtrar opções de lugares, levando em consideração aspectos como tempo, orçamento e até mesmo interesses específicos, como “curtir cervejas artesanais”. Ao final, além de sugerir vários planos de viagem, a empresa envia um roteiro personalizado com atividades.
“Sempre temos curadoria humana para filtrar as alucinações da IA enquanto não treinamos o sistema da melhor maneira”, explica Alexandre Rodrigues, fundador da Wizzi, que trabalhou por 15 anos no setor de turismo em agências de viagens. Ainda recente, o sistema hoje é capaz de cotar passagens e hotéis. No futuro, deve permitir personalizações dentro do roteiro e até mesmo ter um marketplace de guias de viagem, ajudando diversas pontas de uma indústria que representa 8% do PIB nacional.
Quem também tem foco tanto no consumidor quanto no mercado que representa é a Lastro, fundada em 2021 com a ambição de automatizar e facilitar processos no mercado imobiliário. Inicialmente, o produto era um software capaz de ajudar proprietários com muitos imóveis a deixar as planilhas para trás. Com o boom dos sistemas da OpenAI, a empresa passou a apostar na Lais, uma assistente que respondia dúvidas sobre compra, venda e aluguel de imóveis. “Era uma forma de entender quais oportunidades faziam mais sentido”, explica Allan Paladino, CEO da startup.
Hoje, a Laís é capaz de ajudar tanto quem busca um imóvel quanto os corretores. Na ponta do consumidor, faz o atendimento inicial, guiando o usuário entre quesitos, como número de dormitórios, valor do aluguel e preferências como piscina ou varanda. Ela também é capaz de filtrar apartamentos de acordo com a garantia desejada (seguro-fiança, fiador ou caução), gerando uma lista de imóveis potenciais. “Se o interessado engajar na conversa, uma tarefa que pode levar dias com um corretor é feita em apenas 10 minutos”, exemplifica Paladino. “Para o corretor também é interessante, porque ele só assume a conversa quando o cliente está mais interessado, evitando curiosos.”
O processo é gratuito — quem paga a conta são as imobiliárias, que reportam aumento de 30% a 80% na taxa de conversão depois da adoção da Laís. Além de uma taxa de instalação, os planos de adesão começam em 1.500 reais por mês. Em março, a assistente conversou com cerca de 40.000 pessoas, em 60 imobiliárias espalhadas pelo país. “É claro que tem um período de treinamento e adaptação, mas no geral os corretores adoram o produto porque percebem que o tempo deles se tornou mais produtivo”, destaca Paladino.
Também no meio do caminho entre o universo pessoal e profissional está a Assis, fundada em abril de 2023 para ajudar empreendedores individuais a prosperar. “É um profissional que muitas vezes começa a trabalhar com um hobby, vira empresário e não tem formação para lidar com diferentes aspectos do negócio, de marketing a vendas, passando por jurídico, financeiro e cobrança”, explica Raphael Machioni, CEO e cofundador da empresa. Filho de arquiteta, ele viu na família a inspiração para a assistente digital. “A primeira contratação que esse tipo de profissional faz é justamente um assistente, um faz-tudo capaz de ajudar em várias tarefas.”
Desde as primeiras interações, o sistema já trabalha em prol do empreendedor: é capaz de fazer um site simples para profissionais como fotógrafos, manicures ou professores de pilates. Além de um app próprio, que funciona como sistema de cadastro de clientes e de gestão interna, a Assis se integra ao WhatsApp do usuário, fazendo o primeiro atendimento. “Outra funcionalidade que as pessoas adoram é a de lembrar de cobrar os clientes, com textos personalizados, e de sugerir a hora certa de oferecer algo novo para quem já comprou antes”, diz Machioni, cuja empresa já captou 5 milhões de dólares com fundos como Canaan Ventures, CostaNova, Maya e Latitud.
Eu, robô
Como se pode perceber, no momento atual as inteligências artificiais são capazes de fazer muitas tarefas chatas e repetitivas. Conforme o tempo for passando, porém, é possível imaginar que elas se tornem substitutas dos humanos. “Se a IA vai escrever, desenhar e falar por você, minha preocupação é que, quando chegar o momento em que ela fizer tudo isso, o que é que a humanidade vai fazer?”, questiona Carlos Affonso de Souza, professor de direito na UERJ e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio).
A maioria das empresas ouvidas para esta reportagem aposta mais numa abordagem de copiloto, com a IA servindo para auxiliar os humanos. “Não acredito que a IA vai escrever um texto de ficção. A Clarice é um copiloto para fazer as pessoas se preocuparem menos com ortografia e gramática, não cometerem erros de estilo e prestarem mais atenção justamente nos argumentos ou na graça do texto”, afirma Felipe Iszlaji.
Mas há quem não pense assim: em uma entrevista recente, Sam Altman, CEO da OpenAI, descreveu o potencial da tecnologia em termos de personalização, sonhando com uma IA que pudesse cuidar de sua caixa de e-mails, lendo e respondendo mensagens de maneira customizada. “À medida que essa evolução acontece, o assistente fica melhor, mas abre-se uma porteira para customizar tudo: a IA pode não só substituir o lado intelectual e criativo como também radicalizar as pessoas: se hoje a gente se preocupa com bolhas de quem pensa igual a gente, daqui a pouco só vamos falar com máquinas projetadas para refletir o que pensamos”, projeta o diretor do ITS-Rio.
Em compensação, Affonso acredita que as pessoas estão mais estruturadas para lidar com esse debate sobre sociedade e uso de dados do que estavam quando surgiram as redes sociais. “Ao contrário do otimismo que havia numa época de Primavera Árabe, por exemplo, hoje o cenário é de certo ceticismo com a tecnologia, um olhar mais desconfiado”, diz. “Aqui, há uma oportunidade para empreendedores mostrarem utilidades genuínas e benéficas, com riscos controlados. É um ambiente em que as empresas vão precisar navegar.”
No entanto, é importante lembrar que a tecnologia de inteligência artificial tem evoluído de maneira exponencial — não só por avanços computacionais mas também porque ela é capaz de aprender com seu próprio funcionamento. Outra forma é entender como a tecnologia já tem sido utilizada em campos regulados, como a psicologia. Serviços como Wysa e Character.a, somente em inglês, buscam funcionar como assistentes de “saúde mental” 24 horas por dia.
“Toda vez que falarmos de IA, vai ser importante pensar em desafios como ética, responsabilidade, transparência e segurança”, pontua Daniela Penteado, da WGSN. Para lidar com tantas dificuldades, não chega a ser inesperado que comece a surgir, nos próximos tempos, uma pressão regulatória em torno da tecnologia. Para Carlos Affonso, porém, o horizonte é menos nublado do que parece. “Assim como na questão dos dados, a pressão regulatória vai se construir a partir do que já vivemos com as redes sociais”, diz ele, que vê pelo menos uma vantagem no paradigma futuro. “Ao contrário das redes sociais, em que regular a produção de conteúdo é um desafio pela descentralização, na inteligência artificial tudo é centralizado e as possibilidades de controle são mais afuniladas. Mas será um desafio de qualquer maneira.”