Revista Exame

A hora de superar o atraso no saneamento

O novo marco regulatório de saneamento é uma chance para o Brasil atrair o capital privado e melhorar os vergonhosos índices nessa área

Praia de Ponta Verde, em Maceió: 60% dos moradores da cidade não têm acesso a coleta de esgoto  (Tales Azzi/Pulsar)

Praia de Ponta Verde, em Maceió: 60% dos moradores da cidade não têm acesso a coleta de esgoto (Tales Azzi/Pulsar)

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Da Redação

Publicado em 22 de novembro de 2019 às 05h42.

Última atualização em 25 de novembro de 2019 às 14h32.

Até pouco tempo atrás, os indicadores de saneamento básico em Recife eram terríveis. Apenas 5% do esgoto da capital pernambucana era coletado e tratado. O restante era despejado em fossas ou deixado a céu aberto. Nos últimos anos, essa situação começou a mudar. Em 2013, a Compesa, companhia estadual de saneamento, lançou um edital de parceria público-privada (PPP) para ampliar a cobertura da coleta e do tratamento de esgoto. A vencedora foi a empresa de saneamento BRK Ambiental, ex-Odebrecht Ambiental, hoje controlada pelo fundo canadense Brookfield.

De lá para cá foram construídos 15 estações de tratamento de esgoto e 1.170 quilômetros de rede, beneficiando mais de 2 milhões de moradores na região metropolitana: 40% da população da Grande Recife não precisa mais se preocupar com o destino do esgoto. O índice deverá subir para pelo menos 50% em cinco anos. Desde 2013, a BRK captou 1,7 bilhão de reais para o programa de saneamento da Grande Recife, em instituições como o IDB Invest (braço financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento, o BID), a Caixa Econômica Federal e o Banco do Nordeste. “O contrato traz garantias quanto ao fluxo de remuneração da empresa, rentabilidade e investimentos necessários para cada ciclo do projeto”, diz Sérgio Barros, diretor financeiro da BRK. “Essa modelagem ajuda a atrair investidores.” A companhia espera obter mais de 1 bilhão de reais de crédito para o novo ciclo de investimentos que está prestes a iniciar.

A situação calamitosa do saneamento básico em Recife não é uma exceção. Em todo o Brasil, cerca de 100 milhões de pessoas ainda não têm acesso ao serviço de coleta de esgoto. Além disso, quase 35% dos brasileiros não contam com água potável. São índices piores do que os de países como o Iraque, que foi devastado por guerras nos últimos 15 anos. Os índices de cobertura de saneamento básico no Brasil são muito inferiores também aos de outros serviços públicos, como energia elétrica e telecomunicações, nos quais a iniciativa privada é mais atuante.

Uma saída óbvia para ampliar a oferta de serviços é buscar mais parcerias com o setor privado. É esse o caminho escolhido pelo estado de Alagoas, onde 60% dos moradores não têm acesso a coleta de esgoto. Para enfrentar a situação, o governo estadual anunciou no início do mês o lançamento do primeiro lote de concessão de saneamento da área metropolitana de Maceió. Ao mesmo tempo, a companhia estadual de saneamento, a Casal, está passando por um choque de gestão. Para enxugar a folha de pagamentos, foram dispensados 30% dos funcionários. A dívida da empresa, de 950 milhões de reais, também está sendo renegociada. “As companhias públicas de saneamento não têm condição de investir”, diz Maurício Quintella, secretário de Infraestrutura de Alagoas. “É preciso arrumar a casa e atrair entes privados para melhorar o serviço.” Quintella, o governador Renan Calheiros Filho, outros membros do governo estadual, o presidente do BNDES, Gustavo Montezano, e representantes do setor privado participaram dos debates do EXAME Fórum PPPs e Concessões Alagoas, realizado no dia 7 de novembro em Maceió.

Há sinais de que o Brasil, finalmente, está acordando para o problema. Está em tramitação na Câmara dos Deputados um projeto de lei para a criação de um novo  marco regulatório do saneamento básico que pretende reduzir as deficiências do setor, atrair mais capital privado e aumentar a oferta de serviços. Atualmente, as prefeituras podem renovar automaticamente os contratos com as companhias estaduais de saneamento, sem estipular metas para a melhoria dos serviços ou os direitos e deveres de ambas as partes. “Infelizmente, não faltam contratos incompletos”, afirma Diogo Mac Cord de Faria, secretário de Desenvolvimento da Infraestrutura do Ministério da Economia.

O projeto prevê que apenas os municípios que contarem com 90% de abastecimento de água e 60% de tratamento de esgoto poderão renovar os contratos com as companhias estaduais — hoje, apenas 6% das cidades brasileiras atendem a esses requisitos. Com isso, deverá haver um estímulo a licitações, que devem atrair o setor privado. O marco regulatório também estipula que a Agência Nacional de Águas será a instituição responsável pela definição dos pilares das chamadas normas de referência, que regulam aspectos importantes, como a prestação do serviço de saneamento e a abrangência esperada. Hoje, nada disso é regulamentado. “A intenção é criar um arcabouço jurídico e um ambiente regulatório mais sofisticados do que o atual”, diz o deputado Geninho Zuliani (DEM-SP), relator do projeto de nova lei setorial. “Com isso, o serviço vai melhorar e teremos condição de atrair mais investimentos privados.”

Esta não é a primeira vez que se tenta passar uma lei definindo novas normas para o setor. A Medida Provisória no 868, de 2018, também visava abrir o mercado de saneamento, mas acabou nem sendo votada. Ela caducou no início de junho, por pressão dos sindicatos das companhias estaduais de saneamento e de governadores de 24 estados contrários à mudança da lei. Existe o temor de perda de benefícios e regalias. “Muitas empresas públicas de saneamento são vistas como cabide de emprego e acabam servindo para um toma lá dá cá entre governos estaduais e prefeituras”, diz o economista Claudio Frischtak, presidente da consultoria Inter B. “A expectativa é que agora, finalmente, o marco regulatório seja aprovado.”

O mercado está ansioso para a entrada em vigor da nova lei. Estimativas preliminares apontam que os investimentos no setor podem chegar a 144 bilhões de reais de 2020 a 2025. “Só nos últimos 30 dias fizemos três reuniões com investidores interessados nas oportunidades que devem surgir”, diz Sandro Marcondes, diretor da área de mercado de dívida do banco Santander. “Antes, ocorria no máximo um encontro dessa natureza a cada bimestre.” Na próxima década, os investimentos em saneamento no Brasil podem chegar a 335 bilhões de reais, segundo cálculos da consultoria Pezco Economics, especializada em infraestrutura e energia. Em Alagoas a previsão é que 2,6 bilhões de reais sejam investidos, a maior parte dentro de oito anos, para ampliar as redes de água e esgoto nos 15 municípios da Grande Maceió. Dinheiro que se espera venha principalmente de investidores. “O cidadão não quer saber de onde vem o dinheiro, se é público ou privado. Quer receber o serviço”, diz o governador Renan Filho.

A IFC, braço financeiro do Banco Mundial, já elegeu o Brasil como foco na América Latina para os investimentos em saneamento básico nos próximos anos. “Globalmente, o país também é um dos mercados mais atraentes no setor”, diz Rogério Pilotto, executivo sênior de investimentos da IFC para o setor de água e saneamento. “O Brasil tem um histórico de atração de investidores privados estrangeiros para a infraestrutura, e a nova lei do saneamento melhorará o ambiente de investimento no setor.” A IFC pretende desembolsar de 9 bilhões a 16 bilhões de dólares no país até 2023, prioritariamente na área de infraestrutura, incluindo o setor de saneamento.

As PPPs também estão sendo analisadas com atenção por empresas e investidores. Embora tenham avançado lentamente nos últimos anos, boa parte por causa de resistências das companhias de saneamento em abrir mão de serviços e da arrecadação, elas devem andar mais em 2020. Entre os 118 contratos de PPPs assinados no país desde 2014, só 19 foram de saneamento básico, segundo a consultoria Radar PPP. Em 2020, devem ser lançadas pelo menos seis PPPs, em estados como Acre, Amapá e Ceará, além de Alagoas. A modelagem dos projetos está sendo feita pelo BNDES. “São locais prioritários para uma melhoria urgente do saneamento, um dos maiores gargalos de desenvolvimento do país”, diz Fábio Abrahão, diretor de infraestrutura do BNDES. “O novo marco regulatório deverá atrair mais investimentos.” A votação do projeto de lei na Câmara dos Deputados está prevista para o final de novembro. Depois a proposta seguirá para o Senado. A expectativa é que a medida seja aprovada até o fim do ano ou no início de 2020. É uma nova chance para o Brasil se recuperar de décadas de atraso nessa área vital.


COMO TIRAR PROJETOS DA GAVETA

O EXAME Fórum PPPs e Concessões debateu opções para driblar a escassez de recursos e realizar obras de infraestrutura | Fotos: Fabiola Picozzi

Gustavo Montezano, presidente do BNDES, e Renan Calheiros Filho, governador de Alagoas: novo projeto de distribuição de água e coleta e tratamento de esgoto na região metropolitana de Maceió, financiado por uma combinação de investimentos públicos e privados
Antônio Tenório Cavalcante Neto (Alagoas Ativos), Maurício Quintella (Secretaria da Infraestrutura) e George Santoro (Secretaria da Fazenda): novos projetos em Alagoas serão oferecidos a investidores nos próximos anos
Fabrício Marques Santos (Secretaria de Planejamento): arcabouço regulatório
Rafael de Goés Brito (Secretaria de Desenvolvimento Econômico): investimentos
James Andrade (Nova Ceasa), Viviane Moura (PPPs do Piauí), Adriano Barbosa (BRK Ambiental), Fabricio Dantas (FGV), Priscila Romano Pinheiro (Secretaria da Fazenda da Bahia) e Gabriel Godofredo Fiuza de Bragança (Subsecretaria de Regulação e Mercado): casos bem-sucedidos de PPPs no Nordeste
Antônio Jorge Pontes Guimarães Júnior (Banco do Nordeste) e Ricardo Schneider (Tribunal de Contas do Estado): contribuições para o programa de PPPs e Concessões
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