Jair Bolsonaro e o chanceler, Ernesto Araújo: suas ideias lançaram dúvidas sobre a liberalização comercial | Dida Sampaio/Estadão Conteúdo /
Da Redação
Publicado em 22 de novembro de 2018 às 05h54.
Última atualização em 27 de novembro de 2018 às 12h53.
A montadora japonesa Toyota vive um momento de expansão no Brasil. Sua fábrica em Sorocaba passou a funcionar em três turnos neste mês de novembro — algo que nunca havia ocorrido. A expectativa é aumentar a produção em 50%. Já na fábrica em Indaiatuba, também no interior paulista, a empresa planeja investir 1 bilhão de reais na modernização dos equipamentos para melhorar a produção. O número de funcionários deve aumentar. O que tem levado a essa ampliação não é apenas uma melhora das expectativas para a economia brasileira e para o mercado automotivo, mas uma estratégia de elevar as vendas de carros para o exterior a partir do Brasil.
Quase um terço dos cerca de 200.000 veículos que devem ser produzidos pela Toyota em 2018 será destinado à exportação, um recorde para a companhia. E o destino não são apenas os países que fazem parte do Mercosul (Argentina, Paraguai e Uruguai), tradicionais compradores de automóveis brasileiros. Neste ano, a montadora passou a exportar também para a Colômbia e para o Chile. O curioso é que, nesses países, a empresa concorre não só com as demais marcas mas também com os veículos da própria Toyota produzidos em outros lugares, como Estados Unidos e Tailândia. Portanto, ter um carro com preço competitivo é fundamental. O investimento nas fábricas brasileiras vem ajudando a ganhar competitividade, e os bons resultados têm sido comemorados.
Mas o fato é que a companhia poderia expandir ainda mais as vendas no exterior se o Brasil tivesse políticas mais favoráveis ao comércio internacional. O país tem uma das maiores tarifas de importação do mundo, e isso eleva o custo das empresas que dependem de bens intermediários comprados do exterior. No caso da Toyota, uma em cada três peças usadas para produzir os carros é importada, e a empresa paga, em média, uma tarifa de 16% sobre sua importação. Além disso, a combinação complexa de altos impostos estaduais e federais acaba elevando o custo do produto final exportado. Isso sem falar nos prejuízos causados pela má qualidade das estradas brasileiras, pela demora para a liberação de produtos nos portos e por uma série de exigências técnicas e sanitárias impostas pelo Brasil que, no final, encarecem os produtos feitos no país.
A equipe econômica do governo Jair Bolsonaro, liderada pelo futuro ministro da Fazenda, Paulo Guedes, tem se mostrado favorável a eliminar esses gargalos e a seguir uma agenda de abertura comercial e maior competitividade das empresas brasileiras no mercado internacional. Mas a recente nomeação do diplomata de carreira Ernesto Henrique Fraga Araújo, de 51 anos, para o Ministério das Relações Exteriores gerou dúvidas sobre o compromisso do governo Bolsonaro com essa agenda — e ainda sobre como as posições do novo chanceler, e as do próprio presidente eleito, podem afetar as relações com importantes parceiros comerciais, como a China e os países árabes.
Araújo ficou conhecido por suas críticas ao “globalismo” (veja quadro abaixo), por sua admiração pelo presidente americano, Donald Trump (apontado como um possível “salvador do Ocidente”) e por suas teses sobre uma suposta conspiração marxista para dominar as instituições internacionais, como as Nações Unidas. Ainda é cedo para dizer se essas opiniões controversas poderão influenciar a política externa brasileira, especialmente num órgão tão bem estruturado como é o Itamaraty.
O histórico mostra que Araújo pode ser mais moderado do que parece à primeira vista. Pessoas ouvidas pela reportagem de EXAME que já trabalharam com o futuro chanceler disseram que ele é pragmático, culto e muito capacitado para negociações de comércio exterior, e que nunca o ouviram expressar essas opiniões antes. Mas há, de qualquer modo, um ruído novo, o temor de que um debate ideológico contamine a política externa e o comércio exterior, em prejuízo do país e de suas empresas.
No agronegócio, na indústria de carnes e alimentos, no setor de mineração, no segmento de bens de consumo ou de máquinas e equipamentos, todas as empresas brasileiras sofrem com o chamado custo Brasil. Reduzir esses prejuízos é fundamental para que o país ganhe competitividade internacional e consiga, de fato, inserir-se numa economia globalizada. Apesar de todo o sucesso das exportações de carne, soja, minério de ferro e automóveis, o Brasil ainda tem uma economia pouco integrada ao restante do mundo. O fluxo de comércio exterior — a soma do valor das importações e das exportações — equivale a cerca de 25% de nosso produto interno bruto, um dos menores níveis do mundo.
O que se vê é que ainda persiste uma visão de que é preciso proteger as empresas nacionais da concorrência externa. Mas, ao cobrar altas tarifas, o Brasil perde a chance de aumentar a produtividade das empresas e fazer a economia crescer numa velocidade maior. Os economistas Lucas Ferraz, Emanuel Ornelas e João Paulo Pessoa, da Fundação Getulio Vargas, calcularam qual seria o impacto econômico caso o Brasil reduzisse as tarifas sobre dois itens essenciais para acelerar a produção: os bens de capital (máquinas e equipamentos) e os bens de informática e telecomunicações. O resultado seria um ganho de até 0,5% do PIB ao ano, o que equivale a cerca de 10 bilhões de dólares de acordo com os valores de 2017. “E não estamos falando de zerar as tarifas, mas apenas de reduzir à média mundial, que é de 4%”, diz Ornelas. Para ter uma ideia, o acordo comercial negociado entre o Mercosul e a União Europeia traria um benefício econômico de 0,4% do PIB, ou seja, menor do que se o Brasil optasse por diminuir suas tarifas unilateralmente.
O custo das políticas protecionistas do Brasil, como sempre, é pago pelo consumidor — especialmente o de menor renda. Um estudo de economistas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que o conjunto dos consumidores brasileiros gasta 130 bilhões de reais a mais, por ano, para comprar produtos e usar serviços devido às altas barreiras alfandegárias. “É preciso refletir se o custo pago pela sociedade para que sejam mantidos os níveis de impostos de importação praticados no país realmente é algo benéfico para os brasileiros”, diz o economista Ivan Tiago Machado Oliveira, diretor do Ipea e um dos autores da pesquisa.
Se as tarifas fossem reduzidas, o brasileiro pagaria um valor até 8% menor sobre produtos eletrônicos, por exemplo, e até 15% menor para produtos têxteis, segundo uma estimativa da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos, ligada à Presidência. “Se não pensar numa política de modernização comercial, o Brasil estará perdendo competitividade e estará comprometendo sua capacidade de crescimento econômico”, diz o secretário Hussein Kalout.
Uma das propostas estudadas pela equipe econômica de Bolsonaro é um conjunto de medidas elaborado pela economista Sandra Polónia Rios, do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento. As medidas também foram incluídas em um documento, chamado “Carta Brasil”, elaborado por 100 economistas, com ideias para o novo governo. Entre as propostas apresentadas está a simplificação das tarifas de importação, definindo apenas quatro alíquotas — 0%, 5%, 10% e 15% (hoje são vários níveis, de 0% a 35%, dependendo do produto).
Outra medida seria aderir aos acordos multilaterais de facilitação do comércio de serviços e de produtos de tecnologia da informação, conhecidos pelas siglas TiSA e ITA, negociados na Organização Mundial do Comércio. A conclusão de acordos comerciais com a União Europeia e a busca de novos parceiros, como os países latino-americanos que formam o bloco da Aliança do Pacífico, também estão entre as sugestões incluídas no documento. Mas talvez uma das propostas mais ousadas seja rebaixar o status do Mercosul de união aduaneira para uma simples área de livre-comércio.
No modelo atual do Mercosul, os países do bloco têm uma tarifa única comum, e qualquer alteração tem de ser negociada em conjunto. A assinatura de acordos comerciais também. A mudança de status daria liberdade ao Brasil para negociar acordos bilaterais sem perder a vantagem de usufruir da isenção de tarifas dentro do bloco. Qualquer tipo de mudança, no entanto, precisa ser aprovada pelos demais membros do Mercosul, o que pode levar anos. “Se for para avançar de fato, é preciso que o governo tenha clareza sobre qual é a proposta, qual é o cronograma, em quanto tempo vai ser implementado. Mas minha impressão é que existe um consenso cada vez maior de que alguma coisa precisa ser feita, que a política comercial precisa ser atualizada”, diz Sandra Rios.
Depois de ter sido nomeado para o Ministério das Relações Exteriores, o diplomata Ernesto Araújo publicou um texto nas redes sociais que parece caminhar na direção de uma política mais alinhada com a abertura. Disse que vai negociar “bons” acordos comerciais e “manter os pés no chão”. É o que se espera de um chanceler: mesmo que tenha sido alçado ao cargo por suas opiniões, que aja de acordo com a postura institucional do órgão que vai comandar. Se assim for, o país sairá ganhando.
Guénon, Spengler, Evola: entenda as origens do pensamento da nova direita mundial | David Cohen
É possível, até muito provável, que as ideias que o diplomata Ernesto Araújo tem divulgado desde o ano passado não alterem o rumo da política externa brasileira — ditada muito mais pelos interesses pragmáticos do país. Mas foi sua exposição que o levou a ser indicado para o cargo de chanceler. Elas representam, portanto, uma das correntes que permitem analisar o presidente eleito, Jair Bolsonaro. Convém entendê-las.
O primeiro aspecto das crenças que Araújo demonstrou em seus escritos é a oposição ao “globalismo”, termo usado por uma corrente de pensadores de direita. Não se trata exatamente de ser contra a globalização. A diferença entre os dois termos é sutil para os leigos, mas crucial para os iniciados nessa escola. O globalismo, para eles, é a tentativa de criar valores universais, globais, abstratos. Isso é considerado uma heresia. O ponto de Araújo, que ele atribui também ao presidente americano, Donald Trump, é que não existem valores construídos com base em instâncias abstratas. Nossa identidade surge das experiências locais, da cultura vivida no dia a dia. “Os valores só existem dentro de uma nação, dentro de uma cultura, enraizados em uma nação, e não em uma espécie de éter multicultural abstrato”, escreveu.
O problema é que os antiglobalistas não ficam só nisso. Enxergam e combatem alguns fantasmas, especialmente o que veem como uma conspiração mundial, que chamam de marxismo cultural. Esse movimento teria sido iniciado por intelectuais da Escola de Frankfurt, seguindo uma tese do comunista italiano Antonio Gramsci de promover uma revolução cultural para estabelecer a ditadura do proletariado sem nem precisar pegar em armas. Seria a união das teses de Marx e Freud para dominar as mentes do Ocidente.
Ideias parecidas têm o pensador Olavo de Carvalho, uma das principais influências do clã Bolsonaro, e Steve Bannon, ex-estrategista-chefe da Casa Branca que se alinhou à campanha do capitão. Essa crença no complô cultural da esquerda alimenta as batalhas pela escola sem partido e os ataques à mídia e às artes. Bannon costuma dizer que a verdadeira oposição nos Estados Unidos não é o Partido Democrata, e sim a mídia. Daí os ataques constantes de Trump à imprensa, um caminho seguido pelos apoiadores de Bolsonaro.
Essa corrente que promove a guerra antiglobalista tem a aderência de vários movimentos de uma nova direita, a tal direita alternativa, ou alt-right. Sua origem vem de René Guénon, um pensador francês que se interessou por inúmeras escolas místicas, como maçonaria, teosofia, hinduísmo, taoísmo, espiritismo, sociedades gnósticas, druidas e simbolismo cristão. Nos anos 1920, rejeitou quase todas, considerando que eram um falso tradicionalismo. Converteu-se a uma corrente mística do islamismo e passou a viver no Egito. Antes, porém, em 1927, escreveu A Crise do Mundo Moderno, em que estabelece que a desgraça da modernidade é o afastamento do reino metafísico. Ele e seus seguidores sustentam que uma “verdade primordial” se manifesta de diversas formas, em variadas culturas. Estas podem, cada uma por seu caminho, chegar à verdade perene, mas misturá-las seria destruí-las. (Olavo de Carvalho tem em seu currículo algo do mestre. Ele iniciou sua jornada intelectual com estudos de astrologia e chegou a se filiar à ordem mística muçulmana Tariqa.)
Outra matriz do pensamento dessa nova direita é o alemão Oswald Spengler, que lançou em 1917 o livro O Declínio do Ocidente. Para Spengler, a história tem um destino (como para os marxistas), mas não é contada em épocas, e sim por culturas. Uma cultura se desenvolve como um organismo, e seu estágio final é aquele em que se torna uma “civilização”. Para ele, o Ocidente estava à beira “do inverno”, o seu ocaso.
Um terceiro formador dessa turma é o italiano Giulio Cesare Evola, ou Julius Evola, que levou o tradicionalismo a extremos. Em 1925, escreveu um artigo antifascista… porque enxergava no movimento muitos traços esquerdistas. Definiu-se, após a Segunda Guerra Mundial, como um “superfascista”. Mussolini se tornou seu fã em 1941. Entre suas ideias estavam o renascimento da grandeza romana e uma extrema misoginia — as mulheres só encontrariam sua verdadeira identidade na total subjugação ao homem, e o estupro é uma expressão natural do desejo masculino. Evola também combinava essa visão de decadência ocidental com uma propensão ao misticismo (acreditava em telepatia, fantasmas, alquimia).
O fervor dessa nova direita é religioso. Em seu cerne está a ideia de Deus, especialmente a tradição cristã. E no campo oposto, do “marxismo cultural”, está um movimento que eles consideram abortista e gayzista, outras formas de solapar os valores tradicionais. Esse marxismo cultural não nasce com Marx. Vem de antes, da Revolução Francesa, com seus ideais universalistas. O Iluminismo, para eles, inaugura uma idade de trevas (o escuro da ausência de Deus).
Uma das teses que circulam entre esse pessoal é que o Partido Nazista era de esquerda, não de extrema direita, e a prova disso estaria no próprio nome: o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães invoca não apenas o socialismo mas também o trabalhismo. Ora, acreditar nisso equivale a crer que a Coreia do Norte seja democrática, pois seu nome oficial é República Democrática Popular da Coreia, ou que a nação africana de Burkina Faso esteja isenta de corrupção, já que seu nome significa “terra das pessoas honestas”. Na verdade, os nazistas incluíram o termo “socialista” para combater a atração que ele exercia sobre a juventude na época. Assim que tomou o poder, Hitler perseguiu comunistas, socialistas e social-democratas, e incentivou oligarquias empresariais (às quais forneceu inclusive mão de obra escrava).
Ideias como essas não florescem na academia, não por ideologia, e sim por aversão a misticismos. Nas redes sociais, porém, têm encontrado terreno fértil para crescer.