Revista Exame

Hora da verdade: empresas contam as conquistas e os desafios da implementação da IA

Empresas começam a ter a real dimensão do potencial da IA em seus negócios

IA preditiva: para Daniel Hoe, da Salesforce, a tecnologia usada pela Netflix para indicar séries ou filmes já foi incorporada por praticamente todas as empresas (Joan Cros/NurPhoto/Getty Images)

IA preditiva: para Daniel Hoe, da Salesforce, a tecnologia usada pela Netflix para indicar séries ou filmes já foi incorporada por praticamente todas as empresas (Joan Cros/NurPhoto/Getty Images)

Daniel Salles
Daniel Salles

Repórter

Publicado em 29 de abril de 2024 às 06h00.

Última atualização em 2 de maio de 2024 às 15h38.

Passado o frisson inicial da Inteligência Artificial (IA), ela continua na ordem do dia das grandes empresas. A diferença, agora, é que muitas delas podem falar sobre o assunto com propriedade — e resultados concretos. De acordo com um relatório da ­McKinsey, 55% das companhias utilizavam a IA (incluindo a IA generativa) em pelo menos uma unidade ou função de negócio em 2023 — no ano anterior eram 50% e, em 2017, 20%.

Que a adoção dessas inovações está se traduzindo em ganhos de eficiência e, consequentemente, em faturamentos maiores, não há dúvida. Um dos mais completos estudos a respeito desse tema, o Artificial Intelligence Index Report 2024, elaborado pela Universidade Stanford, constatou que, no ano passado, a inteligência artificial foi mencionada nos Estados Unidos em 394 teleconferências de apresentação de resultados financeiros. Em 2022, ela havia sido citada em 266 reuniões do tipo (o universo esmiuçado corresponde a quase 80% das empresas listadas no ranking Fortune 500).

“Chegamos a um ponto em que a IA preditiva, aquela que a Netflix utiliza, por exemplo, para indicar séries ou filmes levando em conta os padrões de uso de cada usuário, já foi incorporada por praticamente todas as empresas”, acredita Daniel Hoe, vice-presidente de field marketing da Salesforce na América Latina. “Agora, muitas estão tentando encontrar formas de incorporar a inteligência artificial generativa, que traz uma série de outras vantagens, mas impõe novos desafios.”

PicPay: a automação responsável pelo atendimento já resolve mais de 50% das demandas (Rogério Cassimiro/Divulgação)

Einstein 1

A IA, todo mundo sabe, está vinculada a grandes modelos de linguagem (LLM, na sigla em inglês). É o caso do badalado ChatGPT e da plataforma de IA integrada ao CRM criada pela Salesforce, o ­Einstein 1. “O potencial da IA generativa para alavancar os negócios é tremendo”, Hoe acrescenta. “Só haverá risco se ela retiver os dados disponibilizados pelas companhias.” Daí a vantagem do ­Salesforce Data Cloud, que impede exatamente isso.

Ao rememorar a adoção da IA generativa pelo PicPay, Anderson Chamon, um dos fundadores, diz o seguinte: “Nunca tivemos medo de encarar novas tecnologias, mas quando a companhia era menor era mais fácil”.

A empresa está com 35 milhões de usuários ativos e registrou E$ 37 milhões  de lucro líquido em 2023, o primeiro ano em que não ficou no vermelho. Quando a OpenAI apresentou ao mundo a primeira versão do ChatGPT, em novembro de 2022, a plataforma de pagamentos ficou em polvorosa. “Logo nos primeiros minutos, todo mundo na empresa dizia: ‘precisamos adotar essa tecnologia quanto antes’”, recorda Chamon.

Oito meses depois, o PicPay deu adeus ao antigo chatbot de atendimento que se valia de uma árvore de decisões, algo tão moderno hoje em dia quanto o fax. No lugar, a companhia colocou uma automação dotada da mesma tecnologia do ChatGPT.

Em março deste ano, a ferramenta foi atualizada para dar conta de 100% dos casos — optou-se por uma liberação gradual, para garantir a efetividade dos atendimentos. Mais de 50% das demandas, atualmente, são resolvidas sem que nenhum funcionário de carne e osso entre em cena.

“Até o atendimento humano foi aprimorado pela IA, pois as solicitações agora chegam aos atendentes bem mais refinadas”, informa o cofundador. “De maneira geral, ela turbina a resolutividade do setor de atendimento de maneira contínua, a cada nova solicitação que se vê obrigada a resolver; afinal, a automação é aprimorada.”

Em breve, a do PicPay poderá ser acionada por comando de voz, o que deverá ampliar seu alcance. “Uma coisa é o cliente pedir, digitando, para a IA calcular quanto ele gastou no último mês, o que já é possível”, diz Chamon. “Outra coisa é fazer isso só com a voz.”

No PicPay, a IA também revolucionou o dia a dia dos desenvolvedores de códigos, que registraram um salto de produtividade. Na visão do cofundador, no entanto, ela ainda mal começou a dizer a que veio. “Acredito que chegaremos a um ponto no qual as automações farão até sugestões de aplicações financeiras, ampliando o acesso das camadas mais baixas ao mundo dos investimentos”, diz o executivo. “E imagino um futuro no qual as IAs vão conversar entre si. É o que possibilitará, por exemplo, que a automação do meu banco cancele a assinatura de um streaming que não estou usando e que está prejudicando minhas finanças.”

Empréstimos mais justos

Fundado por Carlos Benitez, o BMP atua no segmento de banking as a service (BaaS). Em resumo, a companhia permite que empresas de diferentes segmentos, como lojas de roupas e supermercados, ofereçam serviços financeiros aos próprios clientes.

A história do BMP com a inteligência artificial começou há cerca de um ano para agilizar as reuniões internas. “Sou avesso a modinhas”, afirma Benitez, ao resumir o pé atrás com o qual encarou o advento da IA generativa.

Hoje ela é considerada uma ferramenta crucial para o BMP, principalmente quando o assunto é análise de crédito. “No passado, a liberação estava vinculada ao histórico bancário dos clientes e ao perfil deles”, recorda o CEO da companhia.

“Privilegiava-se quem não morava em áreas de risco, por exemplo, e recorria-se ao score de crédito, que um ­bureau como o Serasa calcula de forma muito genérica.” O problema dessa abordagem? “Como não tínhamos como enxergar a real capacidade de pagamento dos clientes, muitos deles acabavam recebendo negativas”, explica o executivo.

Para encurtar: a análise de crédito passou para as mãos da IA. Ao analisar 1,5 milhão de estabelecimentos comerciais de pequeno e médio porte, por exemplo, ela constatou que a maioria tem dificuldades para pagar parcelas de empréstimos cobrados mensalmente.

Daí a solução encontrada: debitar um pequeno percentual todo dia. “Nenhum banco gosta de inadimplência”, registra Benitez. “Às vezes, é melhor emprestar menos dinheiro para evitar que os bens dos clientes sejam tomados no futuro.”

Para Carlos Morais, da Globant, a IA é uma grande aliada para motivar os colaboradores (Globant/Divulgação)

Se antes a instituição se debruçava humanamente a cada seis meses sobre sua base de dados para criar regras de concessão mais efetivas, hoje a IA faz tudo isso por conta própria — e diariamente. No caso de micro e pequenas empresas, o índice de liberação de crédito subiu de 42% para 53%.

“Nosso custo com análise de crédito despencou, o que tornou o BMP mais competitivo”, comemora o CEO. Ele continua com o pé atrás com a IA generativa, mas só em relação à segurança dos dados sensíveis. “Ela é muito propícia para ataques hackers”, acredita. “Daí o tanto que investimos em cibersegurança.”

Um salto em produtividade

Vários estudos sobre o impacto da IA no trabalho publicados no ano passado sugerem que ela permite que os funcionários concluam­ tarefas mais rapidamente e melhorem a qualidade da produção. Uma pesquisa da Harvard Business School constatou que consultores com acesso ao GPT-4 aumentaram a produtividade em 12,2% — a velocidade de execução subiu 25,1%, e a qualidade, 40%.

Já um estudo do National Bureau of Economic Research concluiu que agentes de call center que utilizaram IA atenderam 14,2% mais chamadas por hora do que aqueles que não fizeram uso dela. Algumas pesquisas também demonstraram o potencial da IA para diminuir a lacuna de habilidades entre trabalhadores de baixa e alta qualificação. E outras alertaram para o risco de que o uso da IA sem supervisão adequada pode levar a uma diminuição no desempenho.

Colaborador desmotivado?

Uma das primeiras ferramentas de IA implantadas pela Globant, especializada em reinventar negócios por meio de soluções tecnológicas inovadoras, leva o nome de ­StarMeUp. Utilizada há cerca de dez anos, ajuda a disseminar a cultura corporativa entre os funcionários e a contornar o desengajamento por meio da gamificação.

“Quando a automação percebe que determinado colaborador está desmotivado ou inclinado a mudar de empresa, ela aciona o gestor dele para que este proponha um café ou tome outro tipo de providência”, explica Carlos Morais, diretor-executivo da Globant no Brasil.

Escritório do BMP: a inteligência artificial tornou a concessão de crédito mais justa (BMP/Divulgação)

Outra ferramenta do gênero se encarrega de apontar os funcionários mais capacitados — e com perfil mais recomendado — para assumir eventuais novas vagas. “Ela faz um balanço entre o histórico de entregas e skills variados”, resume Morais. Um dos departamentos­ da Globant que mais se beneficiaram da inteligência artificial foi o dos programadores.“Muitos deles se comportam, hoje em dia, mais como pensadores do que como codificadores”, diz o diretor-executivo. “Isso porque eles não precisam mais gastar tempo com a chamada programação prévia.” Resultado: a Globant passou a desenvolver projetos em velocidade seis vezes maior.

IA contra a depressão infantil

A automação também virou o diferencial de muitos dos projetos elaborados para os clientes. “De cada quatro que entregamos, três têm algum componente de IA”, registra o mandachuva da operação brasileira. Para a ­Janssen, ela desenvolveu um aplicativo que consegue detectar a depressão infantil com uma taxa de precisão de 97% — um dos segredos, também nesse caso, é a gamificação, que ajuda a reter o público-alvo.

Para os parques da Disney, a Globant criou uma solução para impulsionar as vendas dos retratos dos visitantes tirados por fotógrafos profissionais e câmeras fixas, posicionadas em pontos estratégicos. O público, muitas vezes, é clicado sem perceber. Graças ao reconhecimento facial e à inteligência artificial, as imagens são oferecidas aos visitantes por meio do aplicativo oficial dos parques.

Daniela Manique, do grupo Solvay: a manutenção preditiva passou para as mãos da IA (Gladstone Csmpos/Divulgação)

Mais produtividade

Referência de indústria química e têxtil, a Rhodia, uma empresa do grupo Solvay, é outra que soube direcionar a inteligência artificial para o desenvolvimento de produtos. Agora, novas soluções de solubilização só começam a ser testadas em laboratório depois que a companhia, por meio de machine learning, define quais são as três opções com maior potencial de êxito.

“Com isso, diminuí­mos o tempo em laboratório e a quantidade de reagentes utilizados no processo de desenvolvimento, o que é benéfico também para o meio ambiente”, diz Daniela Manique, CEO do grupo na América Latina. A meta da empresa, por sinal, é diminuir o uso de matéria-prima em 10% até 2025.

Onde a IA tem feito enorme diferença é no processo de manutenção preventiva da fábrica. Antigamente, isso significava 45 dias seguidos de interrupções das atividades por completo a cada cinco anos. A demora se devia à hercúlea tarefa de inspecionar reatores que equivalem a prédios de dez andares. “Precisávamos abri-los só para descobrir que estava tudo em ordem”, recorda Manique.

E cada interrupção dessas, que depois passou a ser feita de três em três anos, se traduzia em um prejuízo entre 2 milhões e 3 milhões de euros. Atualmente, a manutenção preditiva está a cargo de uma IA que se vale de sensores instalados na fábrica de cima a baixo — as interrupções ficaram no passado. Resultado: de dois anos para cá, os custos com manutenção diminuíram 20%.

Fundada em 1863, a Solvay decidiu, no ano passado, se dividir em duas. A que herdou o nome do grupo está encarregada da maioria dos produtos tradicionais, como solventes e sílica. A outra metade, que ganhou o nome de Syensqo, vai atuar nos segmentos de hidrogênio verde, compostos termoplásticos e baterias para veículos elétricos.

Com a divisão, o braço verde-amarelo da Solvay passou a representar 21% do faturamento da companhia — a divisão americana, para efeito de comparação, responde por 18%. “Acredito que a inteligência artificial vai ajudar a tornar nossa produção cada vez mais eficiente e segura”, conclui Manique.


Números globais comprovam: a IA veio para ficar

25,2 bilhões de dólares foram gastos pela iniciativa privada com IA generativa em 2023. Trata-se de um volume quase nove vezes maior que o de 2022

95,9 bilhões de dólares foram investidos em IA pela iniciativa privada em 2023, o que representa uma queda de 7,2% em relação a 2022

99 novas startups de IA generativa surgiram no ano passado. Foram 56 em 2022 e 31 em 2019

191 milhões de dólares foram gastos pelo Google com o desenvolvimento do Gemini Ultra. O GPT-4, da OpenAI, demandou 78 milhões de dólares


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