Revista Exame

A hora da economia azul: empresários se reúnem em Lisboa para debater sobre oceanos

Pandemia, guerra, inflação — e poluição nos oceanos. Por que reverter os danos e potencializar a economia dos mares virou uma prioridade global

Mergulhador na Turquia: plástico ameaça o potencial econômico dos oceanos (Sebnem Coskun/Anadolu Agency//Getty Images)

Mergulhador na Turquia: plástico ameaça o potencial econômico dos oceanos (Sebnem Coskun/Anadolu Agency//Getty Images)

Marina Filippe

Marina Filippe

Publicado em 22 de julho de 2022 às 06h00.

Entre os dias 27 de junho e 1o de julho, especialistas e empresários do mundo inteiro se reuniram em Lisboa, Portugal, para debater um tema tão urgente quanto guerras ou inflação: os canudinhos. O acessório de plástico se tornou um dos grandes vilões dos oceanos nos últimos anos.

Fotos de tartarugas e outros animais marinhos engasgados ou enroscados brotam nas redes sociais, fazendo com que gigantes como a rede de fast-food McDonald’s, por marketing ou sustentabilidade, passem a usar canudos e tampas de papel, por exemplo. O que está por trás disso é um problema complexo e sistêmico que, claro, vai muito além dos canudinhos.

De acordo com um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), o plástico representa 85% dos resíduos que chegam aos oceanos, e até 2040 os volumes que seguirão para o mar praticamente triplicarão. Isto é, uma quantidade anual entre 23 milhões e 37 milhões de toneladas. Já outros estudos estimam que, se tudo continuar como está, até 2050 haverá mais plástico do que peixes nos mares. 

A realização de ações efetivas para evitar tal cenário catastrófico, incluindo outros resíduos da poluição marinha e seus impactos no meio ambiente e na vida das pessoas, foi o grande tema de debate na Conferência dos Oceanos, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em Lisboa.

A reportagem da EXAME­ estava lá. “Hoje enfrentamos o que eu chamaria de emergência nos oceanos”, disse o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, na primeira conferência da chamada década dos oceanos, que busca soluções concretas até 2030.

O desafio dos líderes de governos ao redor do mundo é dedicar esforços para o combate à poluição no mar, assim como acontece com outros temas como a pandemia de covid-19, a descarbonização do meio ambiente, e a guerra entre Rússia e Ucrânia. “As ações russas na Ucrânia são repreensíveis; porém, não podem ficar no caminho do trabalho que precisamos fazer. O meio ambiente e o clima não param por causa de uma invasão. Vidas estão em jogo, e os oceanos tocam em todos os aspectos delas”, disse John Kerry, enviado especial para o clima da Casa Branca, durante o evento.

Uma forma de pensar no problema é encarar o oceano como um país. Afinal, ele fornece alimento e condições de vida para mais de 3 bilhões de pessoas, sendo responsável por 30 milhões de empregos diretos e gerando uma riqueza de 3 trilhões de dólares ao ano. Isso significa que o oceano poderia ser classificado, em termos econômicos, como a quinta maior economia do mundo, segundo a Unesco.

É por isso também que é preciso haver mais entendimento sobre a importância da economia azul, ou seja, o valor econômico das atividades relacionadas aos oceanos, mares e regiões costeiras que abrangem muitos setores e têm forte conexão entre os países. “Os oceanos devem ser vistos como um ativo social e econômico, que tem poder de frear as mudanças climáticas, promover energia e garantir a biodiversidade”, afirma Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente e Ação Climática de Portugal. “Este é o ano mais quente desde 1931, o que implica ter menos água na agricultura, na produção de eletricidade e mais. Cuidar do saneamento, lixo e praias é fundamental para garantir a sustentabilidade dos países.”

Para os especialistas e autoridades presentes em Lisboa, é preciso, ainda, que a temática dos oceanos seja trabalhada com o restante das ações para frear as mudanças do clima, como a descarbonização e outros temas que dominaram a Conferência das Partes, a COP26, em Glasgow, em novembro de 2021, e devem seguir na edição deste ano. “É cada vez mais conhecido que, se o transporte marítimo fosse um país, seria o oitavo maior emissor de gases de efeito estufa.

Em maio, os Estados Unidos e a Noruega anunciaram um desafio para a COP27 para ajudar a colocar o setor no caminho desta década em direção à descarbonização total até 2050”, afirmou John Kerry. Assim, a indústria marítima deve ser mais sustentável, bem como os oceanos precisam ser protegidos para que as emissões sejam evitadas. “As atividades humanas têm gerado consequências drásticas.

O oceano está ganhando ‘comorbidades’ que fazem com que a capacidade dele de lidar com problemas como as mudanças do clima se torne reduzida”, diz Alexander ­Turra, professor no Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo e coordenador da Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano. De acordo com ele, é preciso o entendimento de que a piora do oceano está diretamente ligada à pobreza, saneamento básico e geração de resíduos. “Esse é um problema sistêmico, ambiental, social e econômico urgente.”

(Arte/Exame)

Num país como o Brasil, onde quase 35 milhões de pessoas vivem sem água tratada e cerca de 100 milhões não têm acesso à coleta de esgoto, dejetos e resíduos acabam contaminando as águas, chegando aos rios e aos oceanos. É uma questão de política pública promover mudanças como o Novo Marco Legal do Saneamento, de 2020, que pretende levar água potável e tratamento de esgoto para 99% e 90% da população, respectivamente, até o fim de 2023, podendo assim ajudar também no combate à poluição dos oceanos.

Desde a sanção, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) realizou nove leilões do setor de saneamento que resultaram em 30 bilhões de reais em outorgas para os cofres de estados e municípios e 42 bilhões de reais em investimentos comprometidos como parte do atingimento da meta.

Para compreender as boas práticas e incentivar as aplicações, órgãos governamentais de diferentes regiões do país marcaram presença na Conferência. Um exemplo foi o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, que comanda o Comitê Gestor da Década Oceânica no Brasil e teve o secretário Marcelo Morales como mediador de um painel com representantes de países lusófonos. “O Brasil precisa ter consciência da importância da preservação dos oceanos assim como tem da Amazônia.”

Recentemente, o ministério lançou o Instituto do Mar para a gestão da pesquisa oceânica. Em julho, foi anunciado o aporte de 148 milhões de reais em projetos de oceano, Antártida e difusão científica. Entre eles há um sistema para monitorar o derramamento de óleo no mar e uma chamada pública para combater a poluição nas águas.

Oceano Pacífico: empresa holandesa The Ocean Cleanup analisa o lixo em mares poluídos. Plástico representa maior parte dos resíduos (The Ocean Cleanup/Divulgação)

Apesar da urgência no combate à poluição do mar, ainda faltam dados temporais para análises profundas. “No Brasil temos apenas estudos pontuais, e análises temporais são uma raridade. No mundo há estudos de mares regionais. Parece um absurdo dizer que não há dados precisos sobre o todo, mas, infelizmente, não há”, diz Turra, da USP. Apesar disso, é possível perceber que as instituições, em busca de avanços, estão começando de algum modo. Para entender mais a dimensão do problema no Brasil, um estudo encomendado pelo Blue Keepers, projeto ligado à Plataforma de Ação pela Água e Oceano do Pacto Global da ONU no Brasil, aponta que cada brasileiro pode ser responsável por poluir os mares com 16 quilos de plástico por ano. Isto é, 3,44 milhões de toneladas do material, ou ainda um terço do plástico produzido no país. Nesse caso, a questão é a destinação adequada para o lixo, mas também a redução do consumo desenfrea­do e a necessidade de alternativas sustentáveis por parte das empresas para os produtos e embalagens.

Análises identificam também que é preciso maior conscientização da população sobre como suas atitudes estão relacionadas aos oceanos. Como pelo menos 20 milhões de brasileiros não conhecem o mar, é grande o desafio de mostrar para onde vai o lixo gerado por cada um. De acordo com uma pesquisa promovida pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza em parceria com a Unesco e a Universidade Federal de São Paulo, apenas 34% dos brasileiros compreendem que suas ações impactam diretamente os mares. “O setor privado tem um desafio no engajamento da sociedade para que as pessoas percebam sua relação com os oceanos. E há particularidades por região, porque quem está mais afastado do mar tem uma percepção diferente de quem está próximo. Sabemos que as pessoas têm interesse em mudar a atitude, mas ainda possuem pouca informação sobre o bioma marinho”, diz Janaína Bumbeer, especialista em conservação da biodiversidade da Fundação Grupo Boticário.

Conferência dos Oceanos: evento da ONU aconteceu no fim de junho em Portugal (Leandro Fonseca/Exame)

Educar a população não basta. É preciso investir em pesquisa e ciência para enfrentar algo ainda pouco explorado. Isso porque, segundo relatório da Unesco, em 2019 apenas 1% dos orçamentos nacionais para pesquisas foi direcionado para a ciência oceânica, e apenas 20% dos oceanos já foram mapea­dos. Para dar visibilidade, a organização investe na popularização do tema ao dar títulos para pessoas influentes, como a surfista brasileira Maya Gabeira, nomeada Campeã para o Ocea­no e Juventude e Embaixadora da Boa Vontade da Unesco. “Acabo conhecendo as costas e tendo essa relação íntima com o mar. E há 15 anos vejo o aumento dos plásticos de forma impressionante. É importante comunicar as ações para as mudanças e envolver quem toma as decisões, com base na ciência”, diz. Sabendo que o lixo dos oceanos chega pelos rios após o despejo em zonas terrestres, a empresa holandesa ­Ocean ­Cleanup desenvolveu uma solução que, ao mapear 1.000 rios em todo o mundo, visa impedir que 80% do plástico ribeirinho entre nos oceanos em cinco anos. Um exemplo de prática da companhia é uma barreira flutuante ancorada em forma de U ao redor da foz, que intercepta o lixo e o separa até que seja removido da água. “Interceptar os rios é uma forma pragmática de colocar foco numa parte do desafio. Já conseguimos separar milhões de quilos de plástico ao redor do mundo”, diz Boyan Slat, CEO da The Ocean Cleanup.

No Brasil há iniciativas pontuais que recolhem o lixo que já chegou aos mares. Um exemplo é a Fundação Florestal, ligada à Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do estado de São Paulo, que lançou o projeto Pagamento por Serviços Ambientais Mar Sem Lixo. Nele os pescadores de camarão recebem até 600 reais em vale-alimentação pela coleta do lixo que, posteriormente, é destinado a cooperativas de reciclagem. Para a iniciativa evoluir é estimada a necessidade de empresas parceiras. “Começamos o projeto com verba pública, mas estamos prospectando empresas para patrocinar a iniciativa e alcançar mais regiões”, afirma Rodrigo Levkovicz, diretor executivo da Fundação Florestal-SP. E, de fato, é fundamental que o setor privado esteja altamente envolvido nas discussões sobre os oceanos. Não basta retirar o que já está contaminando as águas; é preciso uma produção mais consciente. Há também quem olhe para os resíduos gerados pelo trabalho no próprio mar, como a empresa brasileira OceanPact, que tem contratos de embarcações com empresas como, por exemplo, a Petrobras. “Sabemos que nossos navios não podem poluir, mas isso é mínimo. É preciso que o setor privado pressione a viabilização de boas leis de preservação”, diz Flávio Andrade, CEO da OceanPact.

Maya Gabeira: a surfista é a nova embaixadora da Unesco em defesa dos oceanos (Leandro Fonseca/Exame)

 Ao redor do mundo há iniciativas bem-sucedidas de empresas como a fabricante de itens esportivos Adidas, cuja coleção Parley Ocean Plastic tem cada produto feito com no mínimo 75% de plástico retirado dos oceanos. Outro exemplo é da fabricante de bebidas Ambev, que com a marca Corona tem neutralidade plástica em todos os países em que é comercializada. “A marca apoia iniciativas para substituir o plástico, além de retirar o resíduo dos oceanos para fazer o descarte ou o reúso adequado”, diz Rodrigo Figueiredo, vice-presidente de sustentabilidade e suprimentos da Ambev. “Para cada garrafa que vendemos de Corona recolhemos uma de plástico, porque o desafio não é somente produzir, mas reciclar. Além disso, não usamos mais a embalagem plástica para os fardos.” Assim, enquanto algumas iniciativas surgem, os paí­ses correm para atingir os 700 compromissos firmados na Conferência dos Oceanos, como o do Banco Europeu de Investimento, que destinará mais 150 milhões de euros para a região do Caribe para melhorar a resiliência climática, a gestão da água e a gestão de resíduos sólidos. Ou ainda o do Banco de Desenvolvimento da América Latina, que anunciou um compromisso de 1,2 bilhão de dólares para apoiar projetos oceânicos na região. Mais do que o dinheiro destinado, ações práticas precisam ser tomadas antes que os mares sejam dominados por resíduos, afetem a fauna marinha e toda a humanidade.  

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