O homem que amamos odiar: a tese do fim da história trouxe fama e riqueza — mas também a repulsa dos intelectuais de esquerda mundo afora (Divulgação)
Da Redação
Publicado em 22 de janeiro de 2016 às 15h48.
São Paulo - Ele ficou mundialmente conhecido em 1992. Ao publicar o livro "O Fim da História e o Último Homem", promovido quase instantaneamente a hit global, o sociólogo americano Francis Fukuyama conseguiu algo raríssimo no mundo acadêmico.
Tornou-se autor best-seller na área da ciência política e o mais próximo possível de uma personalidade pop no soporífero meio da sociologia.
O legado do famoso livro inclui ainda uma fortuna em dinheiro. Ao mudar-se para Palo Alto, na Califórnia, onde dá aulas de estudos internacionais na prestigiosa Universidade Stanford, comprou uma mansão mais ao estilo dos bilionários inovadores da internet do que ao de um professor universitário. A fama, convenhamos, tem lá suas vantagens.
E também seu preço. Com a obra, Fukuyama encomendou o ódio eterno da esquerda mundial, que o vê como o mais ilustrado representante das bestas-feras capitalistas, o mentor intelectual de figuras como Ronald Reagan e Margaret Thatcher.
Sua tese do fim da história é frequentemente ridicularizada nos meios intelectuais, ainda mais após a eclosão da crise financeira que quase nocauteou as principais economias do mundo e a emergência de países da antiga periferia. Nos últimos anos, Fukuyama vem sofrendo também um ataque à direita.
Seu distanciamento de figuras-chave do establishment da era Bush é visto como traição aos falcões da política externa americana. Em entrevista recente à revista Newsweek, ele retrucou com duras críticas ao Partido Republicano, que considera atualmente um deserto de homens e de ideias.
Para ele, o sonho de exportar democracia e economia de mercado pela força do Exército só produziu mais antiamericanismo, um resultado claramente contrário aos próprios interesses americanos. Sua crítica, na verdade, vai além.
Fukuyama acha que, diferentemente da China, com sua capacidade invejável de adaptação, os Estados Unidos estão presos em um ambiente político polarizado e extremamente rígido.
Um problema fabuloso para um país famoso pelos pesos e contrapesos dos diferentes polos de poder que normalmente são associados à capacidade da sociedade de responder aos novos desafios.
A vitória do ocidente
Para alguém tão citado, Fukuyama é paradoxalmente pouco lido. Pelo menos é o que salta aos olhos ante as muitas críticas que recebe. Quase 20 anos depois, a tese central de O Fim da História parece incrivelmente atual. Dizia Fukuyama que, com o colapso do comunismo, a procura por um modelo moderno de sociedade havia chegado ao fim.
Democracia e economia de mercado seria a melhor combinação ao alcance das mãos — e só nesse sentido é que a história havia terminado. Ele nunca afirmou que esse modelo de economia e política seria necessariamente abraçado por todos.
Cada país é senhor de seu destino, e é provável que formas alternativas de organização ainda estejam entre nós por muito tempo. O ponto é que nem mesmo a China, com sua incrível escalada material e de poder, consegue galvanizar o mundo na luta por corações e mentes.
A discussão, hoje, é até quando os chineses vão aceitar viver sob uma ditadura — e não quando americanos, franceses, alemães, indianos ou brasileiros abraçarão o totalitarismo. Até onde a vista alcança, o modelo ocidental reina sozinho.
Por isso mesmo, diz Fukuyama, a pergunta mais interessante agora não diz respeito ao futuro. Falta entender nossa caminhada até aqui. Em seu novo livro, The Origins of Political Order (“As origens da ordem política”, numa tradução livre), ele tenta explicar como os homens evoluíram das tribos aos complexos arranjos políticos de hoje.
Numa era de extrema especialização dos acadêmicos, são cada vez mais raras as chamadas metanarrativas, explicações mais amplas dos fenômenos sociais.
É exatamente o que propõe Fukuyama — o subtítulo do livro, “Dos tempos pré-humanos à Revolução Francesa”, dá bem noção do fôlego da empreitada (os dois últimos séculos serão analisados num segundo tomo, ainda a ser lançado). Trata-se de um tributo à história humana, curiosamente empreendido pelo homem que ficou conhecido ao propor seu fim.
O primeiro passo rumo aos governos como conhecemos atualmente se deu na passagem dos bandos às tribos, quando os primórdios de uma estrutura política de autoridade começam a se delinear. O salto, porém, viria com a China. Mais precisamente com a dinastia Chin, iniciada em 221 a.C., quando cerca de 10 000 indivíduos passaram a viver sob um mesmo Estado.
Foi o primeiro experimento, diz Fukuyama, no longo caminho até chegarmos ao modelo atual. A força motriz nessa empreitada foi a necessidade de financiar guerras. Com uma erudição à altura de sua fama, ele disseca o funcionamento de sociedades em tempos e espaços diversos, da Índia ao Islã, do Império Otomano à Europa.
O sucesso virá, acredita Fukuyama, na combinação exata de três elementos: a criação do império da lei que se estenda a todos os cidadãos, o surgimento de um Estado forte e um equilíbrio tal que o governante seja submetido a alguma prestação de contas de seus atos (embora não necessariamente pela via eleitoral).
Parece uma fórmula até óbvia nos dias de hoje, mas Fukuyama nos relembra que foram necessários alguns milênios para que o homem chegasse lá, primeiro na Inglaterra, depois na Dinamarca e, aos poucos, nos demais países da Europa.
A dificuldade é que os três elementos se entrelaçam, nem sempre de forma virtuosa. Por exemplo, a formação de um Estado forte, uma peça vital na ordem política, frequentemente gerou governantes poderosos demais, uma violação dos dois outros elementos necessários para um governo moderno.
Uma constante da história, aliás, é o surgimento de grupos de interesse que, aos poucos, conseguem submeter o restante da sociedade e muitas vezes aniquilam as chances futuras de prosperidade.
Por tudo isso, é um livro de história imensamente atual. Um dos males de tantos países do mundo não é exatamente a fabulosa dificuldade de enquadrar governantes na lei? Grupos de interesse não são frequentemente mais poderosos que o próprio Estado? Criar instituições que favoreçam o crescimento, abrindo espaço para a inventividade humana, não é talvez o maior desafio das sociedades?
São temas recorrentes na história, e vitais nos dias de hoje. Fukuyama discorre ao longo de muitas páginas sobre o problema do “mau imperador”, um dilema sempre presente em sociedades autoritárias. Como garantir que um governante que não está submetido ao escrutínio popular tome medidas corretas?
Talvez seja exatamente o desafio atual dos chineses, que durante muito tempo viveram sob um “mau imperador”, Mao Tsé-tung. (Em entrevista recente, Fukuyama mostrou-se relativamente otimista quanto à China por julgar que os governantes são muito mais sujeitos aos humores de seu povo do que acreditam os ocidentais.)
Curiosamente, o olhar privilegiado sobre um período tão longo nos lembra que momentos de auge no passado sempre se seguiram de declínio, e nesse sentido claramente a história dificilmente terá um fim.