Rio de Janeiro no começo do século 20: a capital educada vivia longe do Brasil profundo (Getty Images)
Da Redação
Publicado em 8 de novembro de 2013 às 15h31.
São Paulo - A República Velha foi um período de crescimento pífio e muita confusão. Mas a principal característica do Brasil que deixava para trás o Império e a escravidão era o desconforto com o moderno e com a mudança — um tema pra lá de recorrente ao longo da história brasileira.
Sobre essa época, o jornalista Euclides da Cunha diria que o país vivia “num ambiente completamente fictício de uma civilização de empréstimo”. Mais ao final da primeira fase da República, uma resenha diria tratar-se da “história de uma longa e persistente desilusão”.
Essas observações descrevem com precisão o que se passou com a economia nesses anos e fornecem pistas sobre o Brasil de hoje. Não conseguimos ter crescimento econômico — no período, a média anual foi inferior a 1%. Pior: em quatro décadas, aprofundamos a distância que nos separava de outras nações.
Em 1890, a Argentina era 2,7 vezes mais rica do que o Brasil. Em 1930, era 3,8 vezes mais próspera. Na comparação com os Estados Unidos, o número saiu de 4,2 para 5,9. “Nosso mal tem sido este: quisemos ter estátuas, academias, ciência e arte, antes de ter cidades, esgotos, higiene, conforto”, disse o poeta Olavo Bilac em 1903.
Exemplos extraordinários da desconexão entre o Brasil profundo e a minoria educada que conduzia os destinos do país não faltaram. O desafio da modernidade se transformou em conflito com Antônio Conselheiro e a Guerra de Canudos no final do século 19.
Logo em seguida, veríamos a Revolta da Vacina, detonada por uma campanha de erradicação da varíola e pela remoção de casas no centro do Rio de Janeiro. O Brasil era um país de excluídos inclusive na política. De uma população que atingiu 33 milhões em 1930, menos de 100 000 votavam — e os pleitos eram quase totalmente dominados por fraudes.
Na economia, o tema recorrente era o padrão ouro, ou a conversibilidade da moeda a uma sempre polêmica taxa de paridade. Como o sistema métrico decimal, a eletricidade e as largas alamedas próprias das grandes cidades, o padrão ouro era a credencial para que um país participasse de uma economia internacional em grande expansão, processo semelhante ao que hoje denominamos globalização.
O acalorado debate sobre o assunto nada mais era do que uma discussão sobre as políticas cambial e monetária, sobre a organização e o mandato da autoridade monetária — o que pode haver de mais atual? O que pode haver de mais familiar do que a queixa contra o câmbio valorizado?
Em vários sentidos, a primeira década republicana foi um espantoso prenúncio para todo o século que viria logo a seguir. Antes de completar dois anos de idade, a República foi atingida por uma dessas crises financeiras do mundo globalizado. Sua origem estava na Argentina, mas as dificuldades que criava em Londres paralisavam os influxos de capital para o Brasil.
O que se vê em seguida no país é uma crise cambial, logo transformada em crise bancária de dimensões sistêmicas. Surge, então, uma longa discussão sobre o salvamento de vários bancos, entre os quais o que depois se tornaria o Banco do Brasil. Por fim, a década termina com uma dolorosa renegociação da dívida externa, bem no contexto de um programa como os patrocinados pelo FMI em nossos dias.
Ao fim da primeira fase republicana, já era claro que os grandiosos sonhos de modernização e progresso eram somente isto: sonhos. Em 1926, as autoridades brasileiras usaram a criatividade e combinaram o padrão ouro (portanto, câmbio fixo) com operações de compra de estoques excedentes de café, numa espécie de reprise de 1906. Tudo com o objetivo de manter os preços e alcançar percentuais de crescimento mais altos. No total, no entanto, esses mecanismos não duraram muito.
Nos anos posteriores a 1930, as taxas de crescimento do país foram bem maiores, e já se pode falar em industrialização por substituição de importações. Esse bom desempenho ocorrido enquanto a economia internacional se desagregava após a crise de 1929 resultou num enigma: como pudemos crescer tão pouco durante a época mais próspera da economia internacional, quando mais se acentuou a globalização, e acelerar substancialmente o crescimento no momento em que essa ordem internacional entrou em colapso?
Esse enigma acabou resultando na formulação de várias teorias sobre o caráter perverso da ordem econômica internacional. A “dependência” e as “assimetrias” do mundo anterior a 1930 rapidamente se tornaram maldições e, tacitamente, estabeleceu-se uma relação causal entre crescimento e nacionalismo, cuja expressão mais completa foi a substituição de importações e a busca da autossuficiência, ideias ainda hoje muito caras a certos economistas e políticos brasileiros.
O mal-estar com a modernidade e, sobretudo, com uma de suas mais diletas criaturas, a globalização, encontrou apoio nesses conceitos. Mais adiante, porém, quando o mundo retomou e aprofundou a globalização, ficou claro que o grau de abertura de um país era um componente crucial para seu crescimento — não o contrário.
Um encontro com o passado
O pífio crescimento econômico registrado nesses anos foi consequência direta de conhecidos fatores internos nossos. Claramente faltou investimento em capital humano. No Brasil, os níveis de analfabetismo e mortalidade infantil foram altos do começo ao fim da Velha República.
Isso num período em que vários outros países registraram “milagres” em matéria de crescimento econômico justamente por terem investido nessa área, além, claro, de terem aplicado em infraestrutura e construído instituições próprias de uma economia de mercado. O estudo da história na Primeira República parece confirmar a sabedoria de uma observação do economista Roberto Campos, morto em 2001, segundo a qual, no Brasil, “é menos importante ter explicações do que bodes expiatórios”.
Durante muitos anos, a culpa pelo nosso atraso foi creditada ao mundo exterior, que supostamente havia roubado nossos tesouros e nos condenado a uma condição subordinada numa ordem internacional de caráter perverso. O professor Mario Henrique Simonsen, ministro da Fazenda nos anos 70, morto em 1997, tinha uma sábia observação sobre a natureza das perversidades econômicas.
Quando se discutia se a inflação brasileira tinha caráter financeiro ou inercial, ele sempre lembrava: “Inflação não tem caráter”. O mesmo pode ser dito a respeito da história econômica da Primeira República. Quem procurar assimetrias e injustiças ensejadas pela ordem internacional da época da Pax Britanica ou da Belle Époque não encontrará coisa alguma. Essa parte de nossa história, tal como a inflação, não teve nenhum caráter.