Revista Exame

Por que funcionários em todo mundo estão pedindo demissão em ritmo recorde

Em todo o mundo, milhões de pessoas estão repensando a maneira como trabalham e vivem — e de que forma melhor equilibrar as duas coisas

O americano Nate Mann largou um emprego de bartender na pandemia: “As pessoas não terão mais vergonha de dizer: ‘Não vou fazer isso’”  (Dee Dwyer/Bloomberg)

O americano Nate Mann largou um emprego de bartender na pandemia: “As pessoas não terão mais vergonha de dizer: ‘Não vou fazer isso’” (Dee Dwyer/Bloomberg)

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Bloomberg

Publicado em 20 de janeiro de 2022 às 05h30.

Última atualização em 26 de janeiro de 2022 às 16h51.

Um abandono do emprego em massa levou mais de 24 milhões de trabalhadores americanos a deixar o emprego entre abril e setembro de 2021. Alemanha, Japão e outras nações ricas estão vendo sinais da mesma tendência. Por trás dela está a pandemia, responsável pelo aumento nos processos de exaustão e por uma deterioração da saúde mental de pessoas em muitos países.

A pressão, contudo, cresce nos países desenvolvidos há décadas. A renda estagnou, a segurança no emprego ficou precária e os custos de moradia e educação dispararam, reduzindo assim as chances de os jovens construírem vidas financeiramente estáveis. O fenômeno está forçando um diálogo mais amplo sobre o trabalho, mesmo em economias em desenvolvimento, como a China. A geração Y (nascidos nos anos 1980 e 1990) e a geração Z (o grupo depois deles) tendem a casar, comprar casa e ter filhos mais tarde do que seus antecessores — se é que o fazem.

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A “imobilidade espontânea” dessas gerações provocou uma reação contrária da China, onde é comum os trabalhadores adotarem uma exaustiva agenda de trabalho apelidada de “996” — das 9 às 21 horas, seis dias por semana. Isso sem falar na implacável pressão da família, da sociedade e do governo para perseguir uma carreira bem-sucedida. A economia do país dobrou de tamanho na última década, mas nem todo mundo está colhendo os benefícios. Em muitas cidades, o aumento do custo de vida ultrapassa o crescimento dos salários.

Como resultado, alguns veem o fenômeno da imobilidade espontânea como um aviso da iminente estagnação. Outros argumentam ser um movimento de contracultura no estilo dos anos 1960 nos Estados Unidos e em partes da Europa Ocidental, quando pessoas comuns buscavam uma sociedade de menor pressão e focada no desenvolvimento pessoal. “A economia se tornou superaquecida e insustentável, no sentido ambiental e no mental”, diz Biao Xiang, diretor do Instituto Max Planck de Antropologia Social, na Alemanha.

Quase metade dos trabalhadores do mundo está pensando em pedir demissão, segundo pesquisa da Microsoft. Quatro em cada dez entrevistados da geração Y e da geração Z deixariam o emprego na hipótese de voltarem ao trabalho presencial, diz a consultoria Qualtrics International, percentual acima de outras gerações. Os mais velhos criticaram essas atitudes como privilegiadas e preguiçosas. Mas a realidade é que o tamanho da jornada de trabalho cai há décadas nos países ricos, em todas as faixas etárias.

Em meio a ameaças existenciais, como a pandemia, e às mudanças climáticas, o abandono do emprego em massa tem o potencial de desencadear uma discussão mais profunda sobre a incessante busca de riqueza, em nível individual e para os países como um todo. “Quando confrontadas com a perspectiva de morrer, as pessoas definitivamente se comportam de maneira diferente”, diz Benjamin Granger, chefe do aconselhamento a empregados da Qualtrics. “As pessoas estão olhando para o trabalho por meio de lentes muito diferentes e adotando critérios como ‘Eu não trabalho pelo dinheiro’ ou ‘Quero me sentir realizado’.”

Imobilidade espontânea

O que começou como uma expressão da rebelião da juventude chinesa tornou-se um movimento reconhecido pelo presidente chinês Xi Jinping. “Há dois anos que não trabalho e não vejo nada de errado nisso”, dizia uma postagem de abril, na plataforma Baidu Tieba, que causou o movimento viral da imobilidade espontânea. “A pressão vem principalmente de comparações com seus colegas e os valores das gerações anteriores. Mas não precisamos segui-los.” O autor da postagem, que atendia pelo nome de “viajante bondoso”, fazia uma comparação com o antigo filósofo grego Diógenes, um asceta morador de um barril. “Ficar parado é meu movimento filosófico.” 

Uma mulher estende roupa em Shenzhen, na China: jovens da metrópole estão abandonando empregos em big techs em busca de um sentido na vida (Qilai Shen/Bloomberg/Getty Images)

O berço espiritual do movimento pode ser a próspera cidade de Shenzhen, no sudeste da China, lar de 18 milhões de pessoas, muitas delas imigrantes de outras partes da China em busca de trabalho nas gigantescas fábricas de eletrônicos da cidade, de empresas como Huawei e Tencent. Agora, com a desaceleração da economia, alguns se perguntam se esses sonhos valem o esforço. Jack, operário técnico de 32 anos, tinha muita ambição quando uma empresa de telecomunicações o contratou há cinco anos. Uma abusiva carga de trabalho não trouxe o sucesso esperado e, com o tempo, o entusiasmo se perdeu. Hoje, ele já não se esforça tanto. “Muitos setores da internet chegaram a um estágio em que não há crescimento significativo”, diz Jack. “Mas o trabalho pesado continua aqui. Todo o estresse continua aqui. A pessoa perde as esperanças.”

O fato de Shenzhen estar entre as cidades mais caras do mundo piora as mazelas. “Mesmo para profissionais bem pagos como eu e minha namorada, ainda é uma loucura”, diz ele. Em outubro, milhares de funcionários de empresas como Alibaba e ByteDance, proprietária do TikTok, participaram de uma campanha online chamada “As Vidas dos Trabalhadores São Importantes”, com informações sobre a duração das jornadas de trabalho numa planilha pública. De lá para cá, a ByteDance reduziu a jornada de trabalho.

Na bolsa de empregos Sanhe, no norte de Shenzhen, dezenas de recém-chegados de outras partes da China se reúnem para ver as ofertas de emprego. Embora os trabalhadores migrantes do país já tenham sido homenageados por sua diligência, esses homens e mulheres agora têm a reputação de passar o tempo jogando online ou assistindo a streamings de TV, selecionando empregos diurnos apenas quando precisam de dinheiro para pagar a conta do telefone ou do aluguel. Evitando o trabalho de longa duração e empregos de fábrica em favor de funções menos exigentes, eles resumem seu estilo de vida em um mantra simples: “Trabalhe um dia, divirta-se três”.

Em uma manhã recente, Li, um homem de 32 anos da província de Shaanxi, pesquisou o quadro de avisos no mercado com pouco entusiasmo. Quando um recrutador ofertou trabalho numa fábrica, Li rejeitou o emprego ao perceber que envolvia operar máquinas pesadas. A atitude de Li sugere que o movimento da imobilidade espontânea pode ser um sintoma de um novo estágio no desenvolvimento econômico da China: conforme uma nação fica mais rica, seus trabalhadores ficam mais exigentes.

Nos Estados Unidos e na Europa, a formação de uma grande classe média foi fundamental para a contracultura dos anos 1960 e, posteriormente, da chamada geração “mais preguiçosa” dos anos 1990. Em uma repercussão desses movimentos ocidentais, os jovens chineses de classe média — com ambições além de qualquer coisa que seus pais pudessem ter esperado — dizem que sua sociedade é muito conformista e materialista. “Há uma perspectiva bastante limitada de sucesso”, diz Chen Ziyang, de 25 anos, que mora em Shenzhen enquanto estuda online para cursar mestrado na Universidade de Chicago. “Todos nós conhecemos Jack Ma e todos aqueles CEOs. Mas, se todos seguirem esse tipo de carreira, é claro que haverá mais concorrência e depressão”, diz ela enquanto desfruta o tempo em uma sofisticada casa de chá. “Algumas pessoas desistem e não fazem mais nada.”

Nos Estados Unidos, a ansiedade financeira dos millennials é anterior à covid-19. A combinação de dívidas estudantis com a árdua recuperação da Grande Recessão deve fazer dessa geração a primeira na história dos Estados Unidos a ser menos rica do que a de seus pais. A pandemia agravou a ansiedade desse grupo. Dois terços dos millennials que deixaram empregos em 2021 citaram a saúde mental como motivo, segundo uma pesquisa da Mind Share Partners. A proporção para a geração Z foi ainda maior: 81%. A perda de vidas causada pelo vírus fez muitos jovens questionar as próprias prioridades.

Esgotamento global 

Em julho de 2020, a agência federal em Washington, onde Ben Anderson trabalhava, convocou sua equipe de volta ao escritório sem fornecer equipamentos de segurança ou manter o distanciamento social. Depois de um colega transmitir covid aos demais, Anderson começou a se perguntar se um emprego estável daria, de fato, segurança e uma vida boa. “Enquanto o mundo desabava, acho que eles não deram a mínima importância para mim”, diz o jovem de 29 anos. Pedir demissão já estava em sua mente.

Havia tirado notas altas na faculdade, mudou-se para uma cidade grande para trabalhar e passou sete anos em um emprego de colarinho-branco em tempo integral. Mesmo assim, não conseguiu economizar o suficiente para comprar uma casa. “O trabalho era extremamente estressante e eu estava longe de minha família”, diz ele. “Estava trabalhando em uma gigantesca máquina da burocracia na qual o indivíduo em si não afeta a mudança. Cansei.” Ele agora está morando em Los Angeles e faz pontas em programas de televisão e comerciais. 

A alemã Milena Kula ficou “aliviada” ao fim do contrato de um emprego: “Odiava trabalhar em escritório” (Jacobia Dahm/Bloomberg)

Embora o abandono do emprego em massa seja visto como um movimento jovem, funcionários de 30 a 45 anos também estão pedindo demissão em grande número. Nate Mann, de 40 anos, passou quase metade da vida como bartender em Washington. Lá, enfrentava turnos até tarde da noite em troca de cerca de 80.000 dólares por ano. Em março de 2020, na pandemia, Mann decidiu focar um projeto de algum tempo: pintar. “De repente, tinha muito tempo disponível. Aproveitei com arte”, diz. Amigos dele também saíram de empregos mal pagos. “As pessoas sentiram seu poder e não terão mais vergonha de dizer: ‘Não vou fazer isso’ ou ‘Isso não é justo ou certo’.”

No Japão, o debate de empregados da China e dos Estados Unidos sobre como equilibrar trabalho e outras atividades é familiar. Nos anos 1990, a mídia local pintava um retrato nada lisonjeiro dos jovens freeters que rejeitaram a cultura de escritório do Japão, com suas rígidas hierarquias e jornadas de trabalho de 15 horas, em favor de empregos temporários. Para os jovens, o estilo de vida havia sido imposto numa economia estagnada e sob efeito de uma desregulamentação do mercado de trabalho, que resultou em menos empregos assalariados.

Por volta de 2010, os freeters haviam adquirido um rótulo menos depreciativo — a “geração do satori” — em homenagem a um estado de iluminação no budismo japonês alcançado pela renúncia aos desejos materiais. Kairu Taira, de 22 anos, trabalha para uma empresa de bens de consumo em Kobe e mantém um blog sobre a geração do satori. Embora não seja um freeter­, ele se considera um minimalista, com um guarda-roupa com somente quatro camisetas e quatro camisas de manga comprida. Para ele, a geração do satori “não contribui o suficiente para a economia”, porque gasta muito pouco. “Mas cada um de nós é mais capaz de ver o que é realmente importante na vida”, diz ele. “Gosto do termo.”

Por trás da boa vontade com a geração do satori está o fato de que a população japonesa parou de crescer. O número de recém-nascidos no país, em declínio há décadas, chegou à mínima histórica em 2020. “Contra os freeters havia vergonha, medo e raiva”, diz Robin O’Day, professor na Universidade do Norte da Georgia, especialista em cultura japonesa. “Agora parece não haver nada a fazer.”

As perspectivas dos jovens sofreram impacto semelhante na desaceleração econômica de Taiwan dos anos 2000. Na época, A-Gui era editor de vídeo em Taipei. Esgotado num trabalho com jornadas de até três dias seguidos, ele pediu demissão em 2006 e virou freelancer. “Enquanto eu tinha o suficiente para sobreviver, estava bom”, diz ele. “Em alguns momentos meu dinheiro quase acabou, mas sempre pintou alguma coisa.” A-Gui casou e voltou a trabalhar em tempo integral em 2016. Hoje, vê jovens frustrados seguindo o caminho dele. “Não importa quanto você trabalhe, você nunca conseguirá comprar uma casa”, diz. 

Mudança de longo prazo

Mesmo na Europa, onde os programas de retenção de empregos evitaram demissões na pandemia na escala vista nos Estados Unidos, muitos estão repensando suas carreiras. Na zona do euro, desde o início da crise sanitária, há menos 2 milhões de pessoas empregadas. Milena Kula, de 26 anos, ficou “aliviada” ao fim de um contrato com uma ONG de Berlim, em abril de 2020. “Odiava trabalhar em escritório”, diz. “A melhor parte do meu dia era a ida de bicicleta ao trabalho.” Atualmente, ela mora em Brandemburgo, onde planeja criar um espaço comum para pessoas dispostas a viver de forma mais sustentável. “A ideia não é sair da sociedade, mas criar uma em que elas acreditem”, diz. 

Frequentemente, o que é retratado como uma mudança nas atitudes dos jovens são tendências de longo prazo, diz Bobby Duffy, diretor do Instituto de Políticas do King’s College de Londres, cujo livro The Generation Myth (“A geração mito”) desafia os estereótipos geracionais. Muitas pessoas de 20 e 30 anos buscam mudanças em relação a colegas mais velhos, como priorizar o aprendizado de habilidades em vez da estabilidade, diz Duffy, mas colegas mais velhos também tinham essas visões quando jovens. “A enorme quantidade de pessoas abandonando o emprego é sinal de uma mudança estrutural e psicológica”, diz Granger, da Qualtrics. Ele afirma que as pessoas estão sendo levadas a “trabalhar em algo que tenha significado, que tenha um propósito maior”. Se essas preocupações com o valor do trabalho persistirem, elas poderão com o tempo influenciar o curso da economia.   

Tradução de Anna Maria Dalle Luche

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