Revista Exame

Unicórnios brasileiros: a geração do bilhão

A onda de startups brasileiras que chegam a um valor de mercado de US$ 1 bilhão está ganhando corpo. Elas inserem o Brasil num mercado global em ebulição

Arthur Lazarte e Victor Lazarte, da Wildlife: a produtora de jogos foi avaliada em 1,3 bilhão de dólares (Germano Lüders/Exame)

Arthur Lazarte e Victor Lazarte, da Wildlife: a produtora de jogos foi avaliada em 1,3 bilhão de dólares (Germano Lüders/Exame)

DR

Da Redação

Publicado em 5 de dezembro de 2019 às 05h50.

Última atualização em 5 de dezembro de 2019 às 10h44.

Quando se formaram na escola politécnica da Universidade de São Paulo, os irmãos paulistanos Victor e Arthur Lazarte seguiram rumos comuns a jovens engenheiros brasileiros no fim dos anos 2000. Foram trabalhar, respectivamente, em um banco de investimento e em uma consultoria. Mas, pouco tempo depois, eles deixaram o emprego e voltaram para a casa dos pais em São Paulo decididos a abrir uma empresa de jogos para celular. Na casa dos 25 anos, os dois não sabiam sequer programar jogos — e precisaram aprender com vídeos online. Oito anos e quase 2 bilhões de downloads depois, os irmãos Lazarte assinaram em novembro uma rodada de investimentos que avaliou a empresa fundada por eles em 2011, o estúdio de games Wildlife, em 1,3 bilhão de dólares.

O aporte de 60 milhões de dólares, liderado pelo fundo de investimento americano Benchmark, coloca a Wildlife como o mais novo membro de um clube seleto: o de startups “unicórnios”, companhias de capital fechado avaliadas em mais de 1 bilhão de dólares. No Brasil, há pelo menos nove delas. Enquanto viviam longe dos holofotes, os Lazarte colocaram a Wildlife — que até agosto se chamava TFG, sigla para Top Free Games — entre as dez maiores empresas de games móveis do mundo, chegando a um quadro de 500 funcionários e escritórios em quatro países. “Queremos criar os jogos que vão marcar esta geração”, diz Victor Lazarte, o caçula da dupla e que hoje, aos 33 anos, mora na Califórnia para tocar a expansão global da empresa. Seu irmão Arthur, de 35 anos, fica em São Paulo.

Pergunte aos principais investidores, empreendedores e consultores brasileiros e pouquíssimos já ouviram falar da companhia dos irmãos Lazarte. Até o aporte mais recente, a empresa tinha apenas um sócio, Brian Feinstein, do fundo Bessemer Venture Partners, com investimento secundário nos fundadores. Mas o sucesso dos games foi chamando a atenção. E dando origem a histórias curiosas. Lucas Lima, diretor de operações, trabalhava na tradicional consultoria Bain&Co quando foi sondado pela Wildlife. Como ele resistia, Victor pediu que batesse um papo com um “amigo”. No outro lado da linha estava o investidor Jorge Paulo Lemann, do fundo 3G Capital e maior bilionário brasileiro. Lima aceitou, claro.

Carlos Saldanha, diretor de animações famosas, como A Era do Gelo, é mentor da dupla. O vice-presidente de realidade virtual do Facebook e ex-Xiaomi e Google, Hugo Barra, também entrou como investidor na rodada de novembro. Para os próximos anos, a meta é usar o novo aporte para continuar crescendo no ritmo de 80% ao ano, criar um braço para distribuir jogos de outros estúdios menores e, sobretudo, contratar talentos globais para brigar com uma concorrência que fica cada vez mais pesada.

A história dos irmãos Lazarte coroa um ano especial no capitalismo brasileiro. Desde junho, quando a empresa de entregas Loggi recebeu um aporte de 150 milhões de dólares liderado pelo grupo japonês SoftBank e tornou-se o primeiro unicórnio de 2019, não se passaram dois meses sem que o Brasil visse uma nova startup atingir o patamar bilionário. Também chegaram lá neste ano a Gympass, que vende planos de academias, a QuintoAndar, de aluguéis, e o Ebanx, de pagamentos.

Por trás desse movimento está o financiamento de fundos de capital de risco, como FTV, SoftBank, Kaszek, Valor Capital, Monashees, Redpoint e Benchmark. Até o banco Credit Suisse criou, neste ano, um fundo de venture capital para empresas promissoras. “Passou a ser uma demanda de nossos clientes”, diz Camila Detomi, responsável pela área de investimentos alternativos do Credit Suisse. Sinal de novos tempos. Os fundos escrutinam o mundo em busca de startups com potencial de virar gigantes. A esperança é encontrar as sementes de um novo Google, Amazon ou Facebook, capazes de fazer o valor de mercado de 1 bilhão de dólares chegar a 100 bilhões ou mesmo 1 trilhão de dólares, compensando os fracassos que podem ocorrer com o restante do portfólio. “As maiores empresas da China e dos Estados Unidos não existiam no século passado. O Brasil também terá gigantes de tecnologia. Estamos todos à caça”, diz o gestor de um fundo de investimento.

Toque para ampliar | Foto: Germano Lüders

A competição é impulsionada por um momento de liquidez abundante, com taxas de juro historicamente baixas. No Brasil, o dólar em mais de 4 reais também é um atrativo que faz o país ficar “barato” para os investidores. “O Brasil está deixando de ser um país em que era mais vantajoso manter o dinheiro em alguma aplicação financeira do que investir no capital produtivo”, diz Michael Nicklas, sócio da gestora de investimento Valor Capital Group. Criado em 2010, o fundo investe em negócios brasileiros inovadores com potencial de crescimento nos Estados Unidos, e vice-versa. Cerca de 65% de seu portfólio está alocado em startups brasileiras, como a Gympass e a Stone, de meios de pagamento.

Toque para ampliar.

O Brasil deverá fechar o ano com 2,5 bilhões de dólares em rodadas de investimento, quase o dobro de 2018 e mais de 60% do capital de risco da América Latina, segundo cálculos da empresa de inteligência de startups Distrito com base em dados da Lavca, associação latino-americana de venture capital. Em 2016, a região inteira havia recebido 500 milhões de dólares. Dois anos depois, em 2018, a foodtech iFood captou sozinha a mesma quantia em um único aporte. Neste ano, a colombiana Rappi levou o dobro, 1 bilhão de dólares, em uma rodada liderada pelo SoftBank. Os investimentos de fundos de capital de risco passaram de 36 bilhões de dólares, em 2009, para 287 bilhões no ano passado, período em que o capital foi se espalhando pelo mundo — o domínio dos Estados Unidos no dinheiro investido caiu de 75% para 48% em uma década, segundo dados da empresa de inteligência PitchBook.

Toque para ampliar | Foto: Germano Lüders

Com tanto dinheiro disponível, o número de unicórnios mundo afora também dobrou em dois anos. Já são mais de 420 dessas startups estreladas, a maioria nos Estados Unidos e na China, segundo levantamento da CB Insights. A primeira bilionária brasileira veio só em janeiro de 2018, quando a empresa de transporte por aplicativo 99 foi comprada pela chinesa Didi, concorrente da Uber. No ano passado, chegaram também ao valor de 1 bilhão de dólares o banco digital Nubank e o iFood e sua companhia-mãe, a Movile, que tem uma dezena de empresas de tecnologia. Muitas das histórias dessas startups mostram engenheiros, administradores e desenvolvedores que, em outras épocas, talvez tivessem decidido ficar no exterior ou trabalhar em grandes bancos. “Para muito além de uma avaliação de 1 bilhão, o importante é que hoje os melhores talentos das universidades brasileiras conseguem colocar sua ideia para rodar”, diz Diego Barreto, diretor financeiro do iFood. Sob vários aspectos, é apenas o começo de uma revolução. Os fundos de capital de risco já representam 0,5% da economia chinesa, onde investiram 100 bilhões de dólares em 2018, mas apenas 0,04% da economia da América Latina. Se a proporção do investimento por aqui alcançar a chinesa, em tese, o número de unicórnios no Brasil — hoje são nove — poderá se multiplicar por 10 ou mais nos próximos anos.

Se há algo que a lista dos unicórnios de 2019 mostrou é que não existe uma receita óbvia para o sucesso. E isso é um sinal de maturidade do mercado brasileiro. Há startups que trouxeram para o Brasil formatos promissores no exterior (como a 99), as que resolveram problemas especificamente brasileiros ou latino-americanos (como o Nubank e a Loggi) e aquelas que criaram negócios inovadores (como a Gympass).

Nenhuma das novatas é tão global quanto a Wildlife, que tem apenas 3% dos usuários no Brasil. “Da cozinha da nossa mãe, já precisávamos fazer produtos para o exterior”, diz Arthur Lazarte. O último jogo lançado, Tenis Clash, foi o mais baixado em mais de 100 países na semana do lançamento. Alguns dos maiores sucessos do portfólio incluem ainda o Sniper 3D, de 2014 — que, até o lançamento do game Fortnite, em 2017, foi o jogo de tiros mais baixado do mundo. Os jogos da Wildlife são no modelo freemium, gratuitos para jogar, mas com itens pagos dentro do jogo,  algo que permite à startup ser lucrativa desde os primeiros anos.

A Wildlife teve o mérito de entrar no início da ascensão dos smartphones e cresceu com o mercado de games móveis. “Quando começamos, ninguém pensava em jogos para celular”, diz o diretor de tecnologia, o chileno Michael Mac-Vidar, que deixou um emprego no Vale do Silício para apostar na Wildlife, há sete anos. Hoje os jogos para smartphones e tablets faturam quase 70 bilhões de dólares ao ano (ou 45% do mercado de games, ante 18% em 2012), segundo a consultoria especializada em games Newzoo. “Mesmo grandes empresas de console, como EA e Sony, vêm lançando versões para mobile”, diz Candice Mudrick, analista da Newzoo.

Toque para ampliar | Foto: Germano Lüders

A Gympass, fundada em 2012 em São Paulo, é outro unicórnio que mirou o mundo: já está presente em mais de 8.000 cidades de 14 países. A companhia foi fundada pelos empreendedores Cesar Carvalho, João Thayro e Vinicius Ferriani, e começou a expansão internacional em 2015, quando foi aberto um escritório no México. De lá para cá, a empresa estendeu a operação para os Estados Unidos e para diversos países europeus. Agora a Gympass se organiza para entrar no mercado asiático. A Índia e a China são dois países que estão sendo analisados com atenção.

O novo salto de crescimento será possível graças ao aporte de 300 milhões dólares que a startup recebeu em outubro dos fundos americanos Atomico, General Atlantic e Valor Capital Group. Caso saia tudo como o esperado, a Gympass será a primeira startup brasileira com operações nos quatro continentes. Até chegar lá, o modelo de negócios precisou passar por ajustes. Primeiro, a Gympass tentou vender cartões de uso diário em academias para pessoas físicas. O custo para expandir a clientela era alto, já que era preciso investir em marketing e propaganda. Os donos das academias começaram a reclamar porque alunos já matriculados cancelavam o plano para adquirir o cartão com desconto. Alguns usuários sugeriram que os sócios da Gympass apresentassem o negócio às empresas em que eles trabalhavam. O primeiro cliente corporativo foi uma consultoria multinacional, com 4.000 funcionários no Brasil. “Os novos investimentos nos permitem ganhar uma escala global”, diz Leandro Caldeira, presidente da Gympass.

Toque para ampliar | Foto: Germano Lüders

Se ainda não há aqui um unicórnio 100% digital — como já foi, por exemplo, o Facebook —, o Brasil tem se notabilizado por startups que usam a tecnologia para atacar gargalos do mundo real. O QuintoAndar, por exemplo, sobressaiu ao entrar com tecnologia num mercado em que tudo era feito em papel: o aluguel de imóveis. O campineiro Gabriel Braga, um dos fundadores do QuintoAndar, penou para conseguir alugar um apartamento em São Paulo quando recebeu uma oferta de emprego na cidade. “Precisava ter fiador e tudo era feito pessoalmente, de uma forma bem lenta”, diz. Durante um curso de MBA na Universidade Stanford, nos Estados Unidos, ele conheceu o mineiro André Penha, que tinha passado pelo mesmo problema.

O QuintoAndar, fundado em 2013, começou como um site com boas fotos de imóveis para alugar, pesquisados em imobiliárias, e agendamento online das visitas. O atendimento aos proprietários dos imóveis também é feito pela internet. Até os contratos são digitais. O primeiro aporte, de 20 milhões de reais, veio dois anos depois da fundação da startup. Neste ano, fundos como General Atlantic e SoftBank colocaram mais de 1 bilhão de reais no QuintoAndar. Com esses recursos, a empresa passou a oferecer pequenos empréstimos para proprietários que precisam reformar o imóvel antes de alugar. O QuintoAndar também ajuda o cliente a saber quanto cobrar pelo aluguel para o imóvel não ficar fechado durante muito tempo. “Fazemos diversos cruzamentos de dados, usando uma forte base tecnológica, para chegar a essa conta”, afirma Braga. O lucro vem do valor do primeiro aluguel e de 6,9% a 8% cobrados nos meses restantes do contrato. “A meta é chegar a 1 milhão de imóveis alugados nos próximos anos.” Hoje, são mais de 5.000 por mês.

Nubank: empresa de pagamentos tem valor de mercado maior do que gigantes como a Natura | Germano Lüders

Em comum, os unicórnios brasileiros têm mais de cinco anos de estrada até entrar na mira dos fundos bilionários.  A Movile, dona de diversas empresas de tecnologia, nasceu em 1998, época em que se “contava cada centavo”, segundo o cofundador Eduardo Henrique. Os primeiros anos tendem a ser uma fase de aprendizado que obriga os empreendedores a ser mais ciosos com recursos do que os pares do Vale do Silício, por exemplo, habituados a grandes cheques para turbinar mesmo as ideias mais mirabolantes. “Dinheiro aqui nunca foi fácil, e os brasileiros têm noção de que precisam andar com as próprias pernas porque amanhã pode não haver mais dinheiro”, diz Hugo Barra, diretor do Facebook e investidor e mentor da Wildlife.

Por aqui, investidores costumam cobrar não necessariamente um balanço no azul, mas a evolução de indicadores importantes para esse fim, como avanço na margem bruta e redução no custo de aquisição de clientes. Com esses dados em ordem, as startups têm mais segurança para dar passos ousados. É o caso da empresa de logística Loggi. A companhia surgiu como resposta aos complexos problemas de logística no Brasil, e hoje cobre 40% da população brasileira, conectando motofretistas a empresas que desejam fazer uma entrega. O fundador Fabien Mendez é francês, mas fez intercâmbio na Fundação Getulio Vargas de São Paulo quando mais jovem e, mais tarde, voltou à cidade e decidiu empreender.

Em um país onde uma entrega no comércio eletrônico leva em média 13 dias, a oportunidade de mercado era clara. Mas encontrar o modelo ideal foi duro. “A vida do empreendedor não é linear, há muitos altos e baixos até estabilizar o negócio”, diz Mendez. Com um aporte de 150 milhões de dólares feito em junho por SoftBank, GGV Capital, Fifth Wall e Velt Partners, além da Microsoft, a empresa planeja expandir os serviços de entrega para além das grandes cidades e alcançar os mais de 5.000 municípios do Brasil até o fim do ano que vem, por meio de um braço de parceiros franqueados — projeto chamado de Loggi Leve e no qual a companhia trabalhou secretamente ao longo deste ano. O objetivo é fazer entregas em até 48 horas mesmo em locais remotos. Em outra frente, pretende adquirir até aviões para se consolidar como uma grande operadora logística.

Toque para ampliar.
Escritório do WeWork: o valor de mercado da companhia caiu de 47 bi para 8 bi de dólares | Germano Lüders
Rappi: a empresa colombiana é a única startup latino-americana fora do Brasil avaliada em pelo menos 1 bi de dólares | Germano Lüders

O Brasil é o carro-chefe de um momento de otimismo na América Latina. Além das startups brasileiras e de empresas de capital aberto, como a argentina Mercado Livre (fundada em 1999 e que vale 29 bilhões de dólares na bolsa de Nova York), a América Latina tem somente a colombiana Rappi como unicórnio — e a startup, por sua vez, tem no Brasil seu principal mercado. A PitchBook passou a classificar como unicórnio a fintech de pagamentos argentina Ualá, que recebeu neste mês aporte de 150 milhões de dólares liderado por Tencent e SoftBank, embora a avaliação ainda não seja confirmada. Assim, a região, que tem problemas semelhantes aos do Brasil, pode ser também um celeiro de oportunidades para as empresas nascidas aqui.

O Ebanx, com sua plataforma de gestão de pagamentos “sem fronteiras”, começou em 2012 oferecendo a empresas estrangeiras a possibilidade de vender no Brasil, mesmo para clientes que não tinham cartão internacional. Logo a empresa percebeu que o problema era o mesmo em toda a América Latina, e hoje opera em oito países da região, além de estar entrando também em pagamentos locais, usando a expertise que já possui.

No começo, foi difícil explicar às empresas estrangeiras o que eram especificidades latino-americanas, como um boleto bancário ou pagamento em parcelas — além de convencer gigantes globais a apostar em uma startup sediada na então pouco conhecida cidade de Curitiba. Mas foi, em parte, graças a essa ponte feita pela fintech curitibana que nomes como o AliExpress, do grupo Alibaba, conseguiram fincar a bandeira no Brasil. “Virar unicórnio não muda nosso dia a dia, mas é uma validação importante de um movimento que começamos na região”, diz o cofundador do Ebanx e seu diretor financeiro, Wagner Ruiz.

Ao mesmo tempo que foi um ano animador para o empreendedorismo nacional, 2019 trouxe dúvidas sobre o modelo de crescimento ancorado em capital de risco. Na vida real, há um detalhe conceitual importante: unicórnios são empresas avaliadas em 1 bilhão de dólares que não necessariamente valem essa cifra. Quantas vão conseguir? É uma questão a ser respondida com o tempo. “Daqui a uns cinco anos vamos saber de fato quanto valem as startups brasileiras mais promissoras”, diz Marcos Toledo, sócio do fundo Canary.

Claro que os aportes crescentes são um bom sinal. Em julho, a empresa de pagamentos Nubank levantou 400 milhões de dólares em sua sétima rodada de captação de investimento, junto ao fundo americano TVC. Avaliado em 10,4 bilhões de dólares, o Nubank vale mais do que empresas tradicionais listadas em bolsa, como a fabricante de cosméticos Natura ou a petroquímica Braskem. Seria a 20a empresa mais valiosa da bolsa brasileira caso estivesse listada. Todos os unicórnios, com a desvalorização do real, estariam pelo menos entre as 60 empresas mais valiosas do Ibovespa, principal índice da bolsa. A prova real costuma vir justamente da abertura de capital, que dá saída para os investidores.

É um passo que foi dado pela empresa de pagamentos Stone, que levantou 1,5 bilhão de dólares ao abrir o capital na bolsa americana em 2018. Fundada em 2012, a startup de meios de pagamento investe em ferramentas de gestão, acessadas com as maquininhas, essenciais para a sobrevivência e para a rentabilidade dos milhares de restaurantes por quilo, salões de beleza e mercadinhos que atende. Agora, prepara-se para lançar funcionalidades específicas para as necessidades de cada segmento. “Um restaurante ou um mercado talvez tenham mais necessidade de uma gestão de estoque refinadíssima do que um salão de beleza”, diz Augusto Lins, presidente da Stone. A empresa também  lançou neste ano uma conta digital, sem cobrança de tarifas.

A abertura do capital (IPO, na sigla em inglês) é um momento de vai ou racha que tem feito estragos em algumas das empresas que já foram os unicórnios mais incensados do mundo. Desde o IPO no primeiro semestre, a Uber e a rival americana Lyft já perderam mais de 30% do valor de mercado, assim como a ferramenta de mensagens corporativas Slack. O “sinal vermelho” definitivo veio com o “não IPO” da empresa de aluguel de escritórios compartilhados WeWork, acompanhado como capítulos de uma novela nas últimas semanas. Ao mostrar no prospecto que perdeu 1,9 bilhão de dólares só em 2018 (e que o prejuízo quadruplicou desde 2016), a empresa fez os potenciais acionistas fugir do IPO. O valor de mercado implodiu — de 47 bilhões para 8 bilhões de dólares —, revelando uma faceta pouco conhecida da onda de investimentos bilionários em startups. Quando o valor para de crescer, ou cai, os empreendedores costumam ser as primeiras vítimas. Adam Neumann, fundador do WeWork e acusado de várias ações reprováveis, foi expulso da companhia por seu maior investidor, o fundo SoftBank. O SoftBank, por sua vez, virou o símbolo maior de uma espécie de distorção do capitalismo mundial, com valores fora da realidade aplicados pelos fundos em empresas sem projetos estruturados de como dar retorno. A chegada de novos recursos pode fazer uma companhia dobrar apostas equivocadas. “Não recomendo a nenhum empreendedor buscar o status de unicórnio porque pode cair em armadilhas. Uma rodada de investimentos menor do que a anterior pode deixar os fundadores sem nada”, diz Romero Rodrigues, sócio do fundo de investimento Redpoint Ventures e ex-dono do site Buscapé.

Índia: os fundos de capital de risco já respondem por 0,3% da economia do país | Altaf Qadri/AP Photo

Segundo Rodrigues, as empresas precisam estar preparadas também para uma eventual redução da liquidez global. Riscos não faltam. Entre eles estão os novos capítulos da guerra comercial de Donald Trump não só com a China, mas com países como o Brasil e a França; a possível retomada dos juros brasileiros em 2020 com desvalorização do real; as eleições nos Estados Unidos e no Reino Unido. Uma redução na liquidez pode levar à lona dezenas de startups bilionárias. “Muitas empresas que hoje são unicórnios deixariam de fazer sentido em um cenário de capital caro”, diz Peter Felton, do Benchmark, que esteve no Brasil para fechar o negócio da Wildlife. O maior desafio é saber qual é a hora de parar de crescer e passar a direcionar os esforços para tornar positiva a última linha do balanço.

O primeiro unicórnio brasileiro, a empresa de transportes 99, por exemplo, está aproveitando o bom momento para crescer em novos nichos. A 99 anunciou neste mês o 99Food, que marcará sua entrada no segmento de alimentação — um mercado altamente concorrido, com Rappi, iFood e Uber Eats, e do qual a espanhola Glovo já desistiu no ano passado. “A operação da 99 é sustentável e está muito perto de atingir lucro”, diz o chinês Tony Qiu, presidente da 99. Quanto antes os unicórnios nacionais passarem do discurso do lucro futuro para a prática rentável, melhor para o ecossistema empreendedor. O ideal é que, no futuro, o Brasil seja celeiro não de uma dezena de promessas mas de um punhado de grandes empresas sólidas, lucrativas e entre as maiores do país e do mundo. 


O INVESTIDOR DO ALTO RISCO

Peter Fenton, sócio do fundo Benchmark, caça startups promissoras. E não acha saudável a “obsessão” com unicórnios | Carol Oliveira

Peter Fenton, sócio do fundo Benchmark: “O número de unicórnios no mundo que têm lucro é menor do que dez” | Anthony Harvey/AFP Photo

O investidor americano Peter Fenton, do fundo Benchmark Ventures, ficou neste ano em segundo lugar na “Midas List” da revista americana Forbes. O ranking lista os investidores capazes de transformar o que tocam em ouro. O Benchmark tem no portfólio investimentos como a empresa de transporte por aplicativo Uber e as redes sociais Snap, Twitter e Instagram. Agora procura as estrelas da próxima década. Sua nova aposta é a empresa brasileira de games Wildlife, avaliada em 1,3 bilhão de dólares. Mas Fenton não dá bola para o bilhão. “Não acho essa obsessão com unicórnios particularmente saudável”, diz. Leia trechos da entrevista abaixo.

Por que investir na Wildlife?

Ficamos impressionados com a equipe, é um time que tem o nível dos melhores do mundo. Eles têm a expertise de fazer jogos, monetizá-los e distribuí-los para diversas plataformas. E conseguiram construir tudo isso em um país com uma tradição recente em tecnologia. Por fim, a empresa é lucrativa, o que é extremamente raro — acredito que o número de unicórnios no mundo que têm lucro é menor do que dez.

Os fundos ainda estão dispostos a dar dinheiro a startups que podem nunca ter lucro?

Quando investimos, temos de acreditar — talvez de maneira ingênua — que há uma real possibilidade de a empresa valer 100 vezes o que pagamos dentro de alguns anos. Às vezes é 1 000 vezes, às vezes é zero. E, com taxas baixas de juro como as atuais, a tolerância ao risco ficou alta. Por outro lado, uma alta porcentagem do capital investido foi para tornar possíveis modelos de negócios que não existiriam sem capital barato. Temos essa obsessão com unicórnios que não acho particularmente saudável.

O não IPO da WeWork ou a queda de 30% na ação da Uber desde o IPO acenderam um alerta? São duas empresas em que o Benchmark investiu.

Não sei se estamos perto de uma explosão da bolha, mas bolhas fazem parte da evolução dos mercados financeiros. A Uber foi bem-sucedida em construir uma marca escalável e global. Não dá lucro por causa da decisão — talvez questionável — de ir atrás de carros autônomos, de entrega de comida. Mas o coração do serviço gera um retorno positivo para os investidores.

Como o senhor enxerga o ecossistema de startups no Brasil?

Sempre me perguntam por que não há mais empresas de 1 trilhão de dólares fora dos Estados Unidos. Em muitos mercados, é suficiente construir uma empresa de 1 bilhão ou 10 bilhões de dólares. Não é que no Vale do Silício as empresas sejam melhores necessariamente, mas é porque lá a ambição é ser o Google, a Microsoft, a Apple. Um dos atributos das boas empresas é acreditar que está sempre no começo e ter ambição. Jeff Bezos, da Amazon, sempre diz que sua empresa está no “dia 01”, mesmo que seu valor seja de 1 trilhão de dólares.

Acompanhe tudo sobre:EbanxEmpreendedoresEmpreendedorismoLoggiQuintoAndarUnicórnios

Mais de Revista Exame

Invasão chinesa: os carros asiáticos que chegarão ao Brasil nos próximos meses

Maiores bancos do Brasil apostam na expansão do crédito para crescer

MM 24: Operadoras de planos de saúde reduzem lucro líquido em 191%

MM 2024: As maiores empresas do Brasil