Revista Exame

Sem tradição na filantropia, Brasil vive na gangorra das doações

Nossas empresas contribuem em demandas pontuais. O empreendedor social precisa ter o aporte garantido para enxergar mais longe

Avenida Faria Lima, em São Paulo: “Investidores só terão a ganhar quando entenderem que filantropia é também investimento” (Leandro Fonseca/Exame)

Avenida Faria Lima, em São Paulo: “Investidores só terão a ganhar quando entenderem que filantropia é também investimento” (Leandro Fonseca/Exame)

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Da Redação

Publicado em 29 de abril de 2021 às 05h02.

Última atualização em 29 de abril de 2021 às 08h43.

O empreendedor social no Brasil está acostumado a apagar incêndios. Quem atua no terceiro setor passa boa parte do tempo atrás de recursos, falando com investidores, pedindo doações. A cada nova emergência, uma nova rodada de e-mails, telefonemas e reuniões. O fato é que o Brasil não tem uma tradição consolidada de filantropia no longo prazo.

Nossas empresas atendem a demandas pontuais. Vimos isso acontecer na pandemia: em 2020, a iniciativa privada levantou quantidades impressionantes de doações para mitigar a crise social. Em 2021, no entanto, essa rede se desarticulou e as doações despencaram.

Agora, quando a pandemia está em sua fase mais aguda, ensaiam voltar. É uma gangorra. A inconstância dos doadores resulta na imprevisibilidade da receita das organizações, o que faz o empreendedor social agir como o cão que corre atrás do próprio rabo.

Ação social efetiva requer investimento de longo prazo. Na Gerando Falcões, contamos com um time de 12 investidores que se comprometeram a nos apoiar por quatro anos. São eles Jorge Paulo Lemann (Ambev), Elie Horn (Cyrella), Ana Maria Diniz (Instituto Península), Rubens Menin (MRV), André Gerdau (Gerdau), Guilherme Benchimol (XP Inc.), Daniel Castanho (Ânima Educação), Eugênio Mattar (Localiza), Flávio Augusto da Silva (Wise Up), Thiago Oliveira (Oliveira Foundation), José Luiz Egydio Setúbal (Instituto Pensi), Charles Wizard (Grupo Sforza), Marcus Sanchez (EMS) e Pedro Bueno (Dasa).

Todos abraçaram uma agenda de transformações que precisará de anos para amadurecer. São parceiros que nos ajudam a gerir cada projeto. Com o aporte garantido, o empreendedor social consegue enxergar mais longe. Hoje atuamos em 400 favelas. Até o fim deste ano, serão 1.000. Em três anos, projetamos marcar presença em 3.000. Mesmo com esse crescimento, porém, o universo de favelas atendidas pela Gerando Falcões ainda seria relativamente pequeno. Há 14.000 espalhadas pelo Brasil. Se a tarefa é gigante, aí é que o desânimo não pode ter lugar.

A filantropia tem várias faces. As empresas podem se engajar de diversas maneiras. A Havaianas e a Nestlé estão desenvolvendo ações de co-branding com a Gerando Falcões, que receberá parte da receita oriunda da venda de itens com estampas escolhidas em concurso entre grafiteiros promovido por nós. Empresas de tecnologia, vestuário e telefonia também planejam explorar essa vereda.

Outro exemplo é o nosso Bazar, uma iniciativa que está dando tão certo que passei a chamá-lo de “Magazine Luiza das favelas”, uma brincadeira que revela um pouco do sonho, tão grande quanto viável, de interrupção do ciclo de pobreza e desigualdade social no Brasil. No Bazar fazemos a logística, precificamos os itens doados, disponibilizamos os produtos, atraímos o consumidor. Atuamos, enfim, como uma empresa, cujo resultado é medido não pelo lucro, mas pela transformação social.

O rico brasileiro precisa entender que filantropia não ajuda só o favelado. A iniciativa privada só tem a ganhar com uma cultura solidária mais madura. Hoje se fala muito em ESG, sigla em inglês para ambiental, social e governança. É um conceito que resume as responsabilidades da empresa do século 21. Uma coisa eu garanto: sem um relacionamento de longo prazo com lideranças comunitárias, o “S” da sigla não tem como funcionar.

Quem cria mudança lá na ponta não é o doador, mas o empreendedor social, que vive o dia a dia da periferia. Ele precisa de dinheiro, que o banco e a empresa podem fornecer, mas esse recurso só é bem aplicado se houver um intermediário próximo da realidade dos mais pobres entre os pobres. Nos Estados Unidos, quase 1,5% do PIB é destinado a doações. No Brasil, a porcentagem é irrisória: 0,03%. Por que a sociedade mais capitalista do mundo age assim? Para além do aspecto filantrópico, os americanos sabem que uma população com renda vai ao supermercado, gasta com lazer, viaja, faz a roda da economia girar. Sem consumidor, não há mercado; sem mercado, não há capitalismo.

A Faria Lima só terá a ganhar quando entender que filantropia não é apenas solidariedade. É também investimento.

(Arte/Exame)

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