Revista Exame

A freada brusca da Tesla na China: é o fim da lua de mel?

A montadora de Elon Musk conseguiu um feito inédito: ser 100% dona da subsidiária no maior país asiático. Nos últimos meses, sofre com críticas de todos os lados

Protesto contra carro da Tesla na China: críticas sobre freios dos veículos circulam abertamente no país (Costfoto/Barcroft Media/Getty Images)

Protesto contra carro da Tesla na China: críticas sobre freios dos veículos circulam abertamente no país (Costfoto/Barcroft Media/Getty Images)

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Bloomberg

Publicado em 19 de agosto de 2021 às 05h58.

Huang Jiaxue, empresário de Wenzhou, no leste da China, ficou emocionado quando pegou seu Tesla Modelo 3 no ano passado. O carro era bonito, ecologicamente correto e até mesmo montado no país, tendo saído da linha de montagem na Califórnia para a enorme fábrica da Tesla sediada em Xangai. Mas em maio ele o vendeu, recuperando apenas cerca de 75% dos 249.900 iuanes (38.600 dólares) que havia pago pelo veículo. “É uma questão de segurança”, disse Huang, citando reportagens nas redes sociais chinesas, vigorosamente contestadas pela Tesla, sobre a falha dos freios de seus veículos. “Lendo sobre isso todos os dias, tenho medo de dirigir.”

Há pouca ou nenhuma evidência concreta de que haja algo errado com os freios dos veículos elétricos (VEs) da Tesla construídos na China. O que está claro, no entanto, é que a notável lua de mel que Elon Musk desfrutou na nação mais populosa do mundo acabou. Depois de receber tratamento de tapete vermelho de funcionários do governo, que concederam à Tesla a concessão sem precedentes de permitir que ela controlasse totalmente sua subsidiária local, a montadora agora está sendo forçada a repensar sua estratégia, do atendimento ao cliente às relações públicas, em um mercado que é fundamental para as ambições de longo prazo de Musk.

Elon Musk, fundador da Tesla: poder estelar do bilionário pode não ser mais suficiente na China (Britta Pedersen/Pool/AFP/Getty Images)

A reformulação é uma resposta a um grau incomum de atenção por parte dos reguladores, bem como a uma onda de cobertura negativa da imprensa e de críticas online. Em junho, o governo chinês ordenou um recall de quase todos os carros que a Tesla vendeu no país — mais de 285.000 no total — para corrigir uma falha de software. Ao mesmo tempo, os veículos estão sendo banidos de algumas instalações do governo devido a preocupações de que possam enviar dados para os Estados Unidos, e montadoras locais como a Nio e a Xpeng estão lançando um grande desafio ao domínio da Tesla, conquistando consumidores com estilos cada vez mais elegantes de design.

Nenhum desses problemas, por certo, é desconhecido para a maioria das empresas estrangeiras na China, onde uma queda na percepção do consumidor costuma estar a apenas uma tempestade de mídia social de distância. Mas, até certo ponto, este é o problema: a aura de alta tecnologia da Tesla e o poder estelar de Musk podem não ser mais suficientes para protegê-la dos riscos que outros enfrentam por lá. A empresa parece ter julgado mal a força de seus laços com a liderança do país, um erro que pode ameaçar as perspectivas de crescimento da Tesla em seu segundo maior mercado. Também fornece evidências convincentes de como pode ser difícil operar na China, mesmo para aqueles que parecem desfrutar todas as vantagens possíveis.

A experiência da Tesla é “um aviso de que eles precisam ficar nas entrelinhas e não ser tão extravagantes em seu sucesso”, disse Bill Russo, um antigo executivo da Chrysler agora CEO da Automobility, uma consultoria com sede em Xangai. “Não é possível ser tão franco a ponto de se tornar arrogante na maneira como se comporta.”

Isso pode ser especialmente verdadeiro, já que as relações Estados Unidos-China continuam a se deteriorar, com as duas superpotências em desacordo a respeito de tudo, desde o status de Taiwan até as cadeias de suprimentos de semicondutores. A generosidade anterior de Pequim com a Tesla, que incluiu assistência substancial na construção de suas instalações em Xangai até ajudando-a a reabrir rapidamente após o bloqueio do coronavírus em todo o país, veio em um momento em que os legisladores chineses estavam ansiosos para demonstrar que ainda estavam abertos aos negócios internacionais. Com as fronteiras da China agora praticamente fechadas e o governo do presidente Joe Biden deixando claro que vê o país como um rival estratégico de longo prazo, esse imperativo pode não ser mais tão poderoso.

Sinais de uma postura mais dura em relação à Tesla chegaram já em fevereiro, quando agências, incluindo a Administração Estatal de Regulamentação do Mercado, o órgão fiscalizador de mercado mais importante da China, convocaram executivos para discutir o que eles disseram ser problemas de qualidade e segurança nos veículos Tesla, incluindo relatos de aceleração anormal e de incêndio de bateria. Após a reunião, a Tesla emitiu uma declaração tão apologética que quase se rebaixou, declarando que havia “aceitado sinceramente a orientação dos departamentos do governo” e “refletido profundamente sobre as deficiências”.

Xi Jinping, autoridade máxima do Partido Comunista Chinês: mão firme contra empresas americanas com atuação no país (Qilai Shen/Bloomberg/Getty Images)

Se alguém na Tesla acreditou que essa resposta impediria que as reclamações dos consumidores se tornassem uma grande história, todos logo se decepcionaram. No Salão do Automóvel de Xangai em abril, uma mulher, alegando que uma falha de freio em seu Modelo 3 causou um acidente e quase matou quatro de seus familiares, encenou um protesto solitário no estande da Tesla. Depois de subir no topo de um veículo vestindo uma camiseta que dizia “freios sem controle” em chinês, ela foi rapidamente arrastada pelos guardas. Mas a presença da mulher no evento pago e de alta segurança e o fato de que as imagens dela circularam sem censura nas redes sociais levaram os observadores da indústria a se perguntarem se os oficiais apoiaram silenciosamente essas ações.

A resposta inicial da Tesla foi exaltada, com a chefe de relações externas Grace Tao sugerindo que a mulher estava sendo manipulada por outras pessoas. A empresa disse que os dados do veículo mostraram que seu carro estava operando normalmente no momento do acidente. Mas, na medida em que as críticas cresceram online e as agências de notícias estatais exigiram que a montadora reconsiderasse sua resposta, a Tesla foi forçada a recalibrar, emitindo um pedido formal de desculpas e fornecendo dados detalhados à manifestante.

Também deu início a uma ação para melhor gerenciar como isso é percebido pelos consumidores. 

Anteriormente focada na mídia estatal, a Tesla agora está tentando construir relacionamentos com publicações da indústria automobilística e influenciadores em plataformas como Weibo e WeChat, por exemplo, convidando-os para visitas às fábricas e conduzindo “sessões de discussão” em grupo com legisladores e consumidores, além de meios de comunicação. De acordo com pessoas familiarizadas com o assunto, também reclamou com o governo sobre o que considera ataques injustificados às redes sociais e pediu a Pequim que usasse seus poderes de censura para bloquear algumas das postagens.

Ao mesmo tempo, essa reformulação está trazendo o principal executivo chinês da Tesla, Tom Zhu, para mais perto de suas negociações com o mundo exterior, disseram outras pessoas familiarizadas com a mudança de estratégia. Especialista técnico que originalmente veio para a Tesla para construir a rede de pontos de recarga de veículo elétrico no continente, Zhu tem relativamente pouca experiência em relações públicas ou governamentais e se concentrou durante a maior parte de sua gestão na produção e nas vendas. Agora, dizem as pessoas, ele se tornou o principal tomador de decisões em questões de comunicação, pedindo para revisar declarações sobre importantes tópicos de interesse público antes de serem divulgadas.

Um representante da Tesla na China se recusou a comentar essa história.

O impacto do problema de frenagem e de outras dores de cabeça chinesas sobre as vendas da Tesla não está claro. A decisão do mês passado de recall de seus carros — para uma atualização de software no sentido de evitar que os motoristas liguem acidentalmente o controle de passeio e seu veículo acelere de repente — também pode deixar os consumidores desconfiados. Na sequência do protesto do salão do automóvel, a empresa de pesquisa JL Warren Capital estimou que a controvérsia resultou em uma queda de 50% nos novos pedidos em um período de semanas, com base em observações de movimento nas concessionárias — totalizando um “significativo e óbvio” declínio na demanda. Se isso for verdade, é muito cedo para aparecer nos números oficiais. Embora as remessas chinesas da Tesla tenham subido quase 30% em maio, devido em grande parte à forte demanda pelo veículo utilitário esportivo Modelo Y, essas estatísticas refletem os pedidos feitos nos meses anteriores.

A questão mais ampla, considerando-se a realidade da operação na China, é se o governo do presidente Xi Jinping mudou fundamentalmente sua abordagem com relação à Tesla. Até recentemente, a tácita barganha entre Musk e Pequim parecia relativamente clara: em troca de apoio estatal, a empresa usaria sua marca e experiência em alta tecnologia para atrair consumidores chineses para veículos elétricos, enquanto empurraria os fabricantes locais de VEs e componentes para melhorar sua atuação.

Isso foi verdade, apesar dos laços de Musk com o governo dos Estados Unidos por meio da SpaceX, que é uma grande contratada do Pentágono, bem como de seus planos para o Starlink, um sistema de banda larga via satélite que, hipoteticamente, permitiria que os usuários na China contornassem o firewall em torno da internet doméstica. Um ex-executivo da Tesla, que pediu para não ser identificado discutindo assuntos internos, disse acreditar que a generosidade da ajuda do governo chinês pode ter dado a seus ex-colegas uma inflacionada noção de seu valor para Pequim, em vez de um entendimento que poderia se dissipar logo que as prioridades do Estado mudassem.

Não obstante, embora a crescente competência técnica da Nio, Xpeng e outras empresas automotivas chinesas signifique que o papel da Tesla provavelmente não é mais tão essencial quanto antes, “ainda é uma relação simbiótica”, disse Tu Le, um ex-executivo da Ford e diretor da Sino Auto Insights, uma consultoria de Pequim. Para atingir suas metas ambiciosas de transporte eletrificado, “o governo chinês precisa da Tesla para trazer entusiasmo ao setor”, disse ele. 

Uma possibilidade é que as opiniões em diferentes níveis do Estado chinês tenham divergido, com as autoridades voltadas para o comércio e o desenvolvimento ainda ansiosas para acomodar Musk. No final de maio, de acordo com duas pessoas familiarizadas com a situa­ção, o Ministério do Comércio da China e o governo de Xangai, onde a Tesla é uma fonte significativa de emprego e prestígio, realizaram reuniões com a empresa para enfatizar seu apoio contínuo à sua expansão. As autoridades enfatizaram, no entanto, que esperam que a Tesla cumpra as leis que exigem que os dados dos clientes sejam armazenados internamente, algo que a empresa imediatamente comprometeu-se a fazer.

Levará mais alguns meses para a coleta de dados de vendas determinar se a Tesla está realmente se encaminhando para uma queda no maior mercado de automóveis do mundo ou simplesmente encontrou uma série de obstáculos no caminho. Se for este último, será em parte graças aos leais seguidores que a Tesla construiu no país — o tipo de comunidade de superfãs que ajudou a impulsionar sua popularidade nos Estados Unidos e na Europa.

Yang Fan, um fotógrafo de 40 anos de Pequim e chefe de um clube municipal para proprietários do Modelo 3 e do Modelo Y, é um deles. A crítica atual “pode ter lembrado à empresa que ela deveria melhorar em coisas como atendimento ao cliente, o que é algo bom”, disse Yang em uma entrevista. Mas, no longo prazo, ele ainda acredita na empresa.

“A Tesla”, disse Yang, “transformará a indústria automotiva em dez anos. Vai se transformar num gigante.”  

Tradução de Anna Maria Dalle Luche


Marcha lenta

Mesmo em alta, a venda de veículos elétricos no brasil segue aquém do padrão mundial | Gabriel Aguiar

E-JS1, da JAC: tentativa de popularizar elétricos no Brasil (Divulgação/Divulgação)

As vendas de veículos eletrificados — também chamados EVs, sigla em inglês para electrified vehicles — nunca estiveram tão na moda no Brasil como agora. No primeiro semestre foram 13.899 emplacamentos, de acordo com a Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE). O volume supera o total vendido ao longo de 2019 (11.861 unidades) e representa 70% do comercializado no ano passado. Tanto fôlego fez o órgão rever as expectativas, que, inicialmente, eram de 28.000 emplacamentos. Agora os números mostram que o mercado brasileiro deverá vender 30.000 veículos eletrificados até dezembro.

Só que as boas notícias terminam aí. Apesar do crescimento, o mercado brasileiro de EVs segue uma fração do visto em outros países — para nosso azar. Considerados peças-chave no combate ao aquecimento global ao substituírem os motores movidos a combustão, mais poluentes, os elétricos e híbridos somaram apenas 1,4% dos veículos vendidos no Brasil entre janeiro e junho. No mundo, a fatia de mercado desse tipo de veículo passa dos 5% (e, lá fora, a contagem não costuma considerar os veículos híbridos, comuns no mercado brasileiro, ou mesmo os movidos por células de combustível de hidrogênio, pouco usuais no mundo todo). “Temos de avançar muito mais, sob o risco de ficarmos para trás na corrida pela eletromobilidade”, diz Adalberto Maluf, presidente da ABVE.

O mercado de veículos elétricos no Brasil ainda está acostumado a cifras diminutas. Líder de vendas desse segmento em 2021, o Porsche Taycan teve apenas 215 unidades entre janeiro e junho. Na raiz do problema está o custo alto desse tipo de veículo por aqui. Para ficar no exemplo do Taycan, a versão mais em conta do modelo sai por 615.000 reais; o mais caro passa de 1 milhão de reais. Nos “elétricos de entrada”, o comum é desembolsar mais de 200.000 reais em opções como Fiat 500e, Mini Cooper SE, Renault Zoe e Chevrolet Bolt. Por trás dos preços salgados estão o imposto sobre produtos industrializados (IPI), mais alto do que o usual nos modelos a combustão, e o vaivém do dólar — todos os veículos leves elétricos vendidos aqui são importados.

(Arte/Exame)

No que depender da indústria automobilística, uma nova leva de carros elétricos mais em conta está vindo aí. Em setembro, a JAC Motors deve lançar o E-JS1, propagandeado como o carro elétrico mais barato do Brasil. O compacto será trazido da China e custará 150.000 reais, 10.000 a menos que o IEV20, que hoje em dia ostenta o título por aqui. A meta de Sergio Habib, presidente do Grupo SHC, representante da empresa chinesa no Brasil, é emplacar pelo menos 50 unidades do E-JS1 por mês. Se tudo sair como o planejado, será o dobro da venda do T40, modelo mais vendido da marca e com motor tradicional, a combustão.

A expectativa da marca é lançar três modelos elétricos em 2021 — além do E-JS1, haverá um SUV e um furgão —, com o plano de comercializar quase 1.000 veículos “verdes” neste ano. Com mais opções de veículos elétricos à disposição, outro nó precisará ser destravado para deslanchar esse mercado no Brasil: ampliar a disponibilidade de pontos de recarga. Segundo a ABVE, o país inteiro tinha só 754 instalações públicas e semipúblicas em julho. É o dobro do patamar do início do ano, mas ainda aquém do visto em países desenvolvidos. Nos Estados Unidos, por exemplo, há mais de 82.000 pontos de recarga, diz a IEA, agência internacional de energia. Na China, mais de 498.000. Apesar dos bons números, há ainda muito chão a ser percorrido para os EVs serem, de fato, uma opção viável aos motoristas brasileiros.

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