Castanha-do-pará: um dos produtos florestais que mais valorizaram na última década | André Dib/Pulsar Imagens /
Renata Vieira
Publicado em 28 de março de 2019 às 05h36.
Última atualização em 25 de julho de 2019 às 15h54.
Até 2014, o negócio da família Martins estava restrito a gastronomia. Donos do restaurante Lá em Casa, em Belém, no Pará, os Martins, ainda nos anos 70, criaram um empreendimento com base em ingredientes tradicionais da cozinha amazônica. Açaí, taperebá, jambu e um sem-número de pratos feitos com mandioca, como o tucupi, a farinha-d’água e a maniçoba, compõem o cardápio, tudo fornecido por agricultores familiares e cooperativas da Grande Belém. De lá para cá, a combinação de técnicas da alta gastronomia com matérias-primas locais projetou a marca dos Martins Brasil afora — e o restaurante passou a vender ingredientes nativos para chefs e hotéis de outros estados, interessados na especificidade desses sabores.
O crescimento da demanda abriu espaço para um segundo negócio: a Manioca. Há cinco anos, a nova marca estampa 17 tipos de doces, geleias e temperos naturais, todos feitos com insumos amazônicos, sem adição de conservantes e corantes. Hoje, os produtos da Manioca estão em 240 pontos de venda em 17 estados brasileiros, entre eles as lojas das redes de supermercados Pão de Açúcar e St. Marche, em São Paulo. “São sabores com aceitação comprovada pelo grande público, dentro e fora do país, mas falta desenvolver melhor esse mercado”, afirma a empresária paraense Joanna Martins, à frente da Manioca.
O exemplo da Manioca, porém, ainda foge à regra. O caminho entre os produtos florestais amazônicos e as grandes redes de varejo do Sudeste, maior mercado consumidor do país, é estreito. Isso porque a produção extrativista é pouco estruturada e composta, majoritariamente, de pequenos agricultores e cooperativas de base comunitária. A isso se soma a característica sazonal de diversos produtos, o que afeta diretamente o volume e a regularidade do fornecimento.
De acordo com o Sebrae, a taxa de mortalidade dos pequenos negócios no Brasil ultrapassou 70% nos últimos dois anos. Longe das cidades o cenário não é diferente. “Pequenos negócios têm dificuldades em qualquer lugar, mas, se a isso se adicionam 30 horas de distância até áreas urbanas e a inexistência de serviços simples de apoio ao empreendedor, como um contador, tudo fica pior”, afirma Valmir Ortega, diretor executivo da Conexsus, uma rede que se dedica a ma-pear e apoiar negócios de base comunitária e sustentável em todo o país.
Ainda assim, nos últimos dez anos, os preços de alguns produtos oriundos da Floresta Amazônica vêm sendo impulsionados pelo crescimento da demanda. Na lista dos mais valorizados estão a polpa de açaí, o buriti, o cupuaçu, a pupunha, a castanha-do-pará, o mel de abelha e os óleos de andiroba e de copaíba (a extração de madeira não entra nessa conta). A receita bruta desses itens quase triplicou de 2009 para cá: de 57 milhões de reais para 154 milhões no ano passado, principalmente por causa do açaí e da castanha.
O levantamento, feito pelo Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), entidade nacionalmente reconhecida pelo trabalho de monitoramento, pesquisa e fomento ao desenvolvimento sustentável que promove na região, considerou quatro dos principais polos de comercialização desses produtos para o cálculo: as cidades de Belém, Breves e Gurupá, no Pará — estado que concentra boa parte desse comércio no país —, e Santana, no Amapá.
O Imazon também criou um índice de inflação dedicado a essa cesta de produtos, já que o IPCA — que mede preços ao consumidor de maneira ampla no Brasil — só considera o açaí entre os produtos desse tipo. De 2009 a 2018, a variação de preço desses itens nativos foi de 128%, ante um acumulado de 67% da inflação no mesmo período. “Boa parte das transações envolvendo esses produtos não é captada pela economia formal, tornando esse mercado invisível”, afirma Paulo Amaral, pesquisador do Imazon responsável pelo levantamento. “Ao listar os preços e suas variações, geramos informação relevante sobre essa economia florestal.” Formalmente, os produtos florestais não madeireiros representam apenas 0,02% do produto interno bruto. Em 2017, a renda registrada pelo comércio de cerca de 40 itens florestais foi de 1,5 bilhão de reais.
Desde 2002, o Grupo Pão de Açúcar conhece bem as peculiaridades desse mercado. Naquele ano, a rede varejista criou um programa de valorização de produtos regionais. De lá para cá, gôndolas destinadas a produtos desse tipo começaram a aparecer nos supermercados da rede e, nos últimos anos, itens de artesanato deram lugar a produtos alimentícios. Entre eles o mel produzido por indígenas da região do Rio Xingu e o óleo de pequi, característico do Centro-Oeste do Brasil. O requisito é que essas compras gerem impacto socioambiental positivo e impulsionem o ganho de renda por meio de relações comerciais justas — sem pôr o pequeno fornecedor local em desvantagem perante o grande varejista. A tarefa, no entanto, não é das mais fáceis. Esses produtos, não raramente desconhecidos fora de suas regiões de origem, precisam ter algum potencial de apelo junto ao consumidor — e o custo dessa transação precisa ser viável também para o varejista.
Hoje, o Pão de Açúcar vende 115 produtos de 30 fornecedores desse tipo. O número de parceiros já foi o dobro no passado, mas a falta de fornecimento em volume regular, de capacidade de definição de preço e de obtenção de certificações impediu a parceria com muitos deles. Também por isso, a rede varejista criou uma área comercial dedicada à categoria de produtos regionais, que envolvem premissas de impacto positivo, mas que também demandam condições específicas de diálogo e negociação. “Não podemos negociar com eles do mesmo jeito que fazemos com multinacionais”, afirma Susy Yoshimura, diretora de sustentabilidade do Grupo Pão de Açúcar. “Precisamos nos adequar aos pequenos e microfornecedores se quisermos continuar a trazer para nossas lojas o valor desse tipo de mercadoria.” As vendas nessa seara ainda representam uma parte ínfima do faturamento do Pão de Açúcar, mas, de 2017 para 2018, a receita desse gênero de produtos no grupo aumentou 55%.
Para tornar viável que pequenos empreendedores tenham condições mínimas de acesso a mercados — e a linhas específicas de crédito —, uma série de iniciativas vem tomando corpo. Uma delas é a plataforma Parceiros pela Amazônia, que reúne o Idesam, ONG que se dedica ao desenvolvimento sustentável da região, e outras entidades e empresas que atuam no Norte do país, como a fabricante de cosméticos Natura, as fabricantes de bebidas Ambev e Coca-Cola, a química Dow e o grupo varejista Bemol. O objetivo é direcionar capital ao ecossistema de startups que começa a ganhar corpo na região, valorizando ideias que, na contramão da lógica predatória do desmatamento, promovem a manutenção da floresta em pé.
Até agora, 15 negócios foram escolhidos para integrar um programa de aceleração — entre eles a paraense Manioca. A marca já angariou 200.000 reais para investir na capacitação de 14 agricultores familiares. O objetivo é estruturar o modelo de gestão deles e garantir o fornecimento à medida que as projeções de vendas da marca aumentarem. A Manioca, hoje faturando cerca de 1 milhão de reais anuais, estima um crescimento de 50% ao ano até 2022. “Nossa visão de longo prazo é que, após o impulso inicial, os negócios consigam se tornar atraentes para o investimento 100% privado, com expectativa clara de retorno”, diz Mariano Cenamo, diretor do Idesam. Se isso ocorrer, será um estímulo e tanto para o fortalecimento da economia da Região Norte — e com preservação da floresta.