Revista Exame

A ferrovia que está a cem anos no gargalo

Passado um século da inauguração da fracassada ferrovia Madeira-Mamoré, Rondônia — e parte de Mato Grosso — ainda sofre para escoar suas riquezas

A Madeira-Mamoré em operação: o sonho de explorar  a borracha acabou em pesadelo (Wikimedia Commons)

A Madeira-Mamoré em operação: o sonho de explorar a borracha acabou em pesadelo (Wikimedia Commons)

DR

Da Redação

Publicado em 12 de junho de 2012 às 12h19.

Porto Velho - Em 1907, a borracha dos seringais da região Norte era uma das grandes riquezas do Brasil, um país que, para os olhos do americano Percival Farquhar, era tão gigante quanto desconhecido. A despeito dos desafios assustadores de fazer negócios em um território inóspito mesmo para os brasileiros, Farquhar lançou-se na aventura de construir uma ferrovia na floresta Amazônica para exportar a borracha do Norte.

Faz exatamente 100 anos que essa ferrovia, a Madeira-Mamoré — entre Guajará-Mirim e Porto Velho, no atual estado de Rondônia —, foi concluída. Com seus vários projetos, o empreendedor serial Farquhar — responsável pelo nascimento da Acesita, da companhia energética Light e do sistema de bondes do Rio de Janeiro — acreditava que acordaria o Brasil para o desenvolvimento.

Mas, passado um século da fracassada construção da Madeira-Mamoré, a mais emblemática de suas iniciativas, o americano, se vivo estivesse, poderia atestar: em certos aspectos, a infraestrutura logística ainda desespera quem se dispõe a empreender na Região Norte.

Segundo a Confederação Nacional dos Transportes, mais de 55% das rodovias da região estão em estado de conservação ruim ou péssimo — o pior resultado do país. 

O nó logístico do Norte afeta diretamente Mato Grosso, maior produtor de soja do país.­ Hoje, apenas 15% da soja colhida no estado sai pelo Norte, volume que poderia chegar a 60% se a infraestrutura estivesse em bom estado. O que motivaria o aumento seriam os custos menores e a viagem mais curta até os mercados da Ásia.

Os gastos com transporte para exportar a partir do porto de Itacoatiara, no Amazonas, são metade dos cobrados para escoar a produção pelo porto de Paranaguá, no Paraná. Isso sem contar que a saída pelo Amazonas permite chegar aos portos chineses cinco dias antes.

Além de fazer sentido do ponto de vista econômico, a exploração do corredor Norte para a exportação tiraria um número maior de caminhões das já esgotadas estradas das regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Na Região Norte, pródiga em rios navegáveis, as hidrovias têm potencial para absorver um grande fluxo de balsas.


O que trava essa saída é uma estrutura de transporte lamentável. Por causa do péssimo estado de conservação, os 730 quilômetros da BR-364 entre Vilhena e Porto Velho — por onde passam os carregamentos que saem de Mato Grosso — são percorridos pelas carretas em dois dias, o dobro do tempo considerado aceitável.

A travessia desses 730 quilômetros desemboca no porto de Porto Velho, terminal que foi revitalizado pela última vez em 1986. Quem visita o terminal não diria que ali é embarcado um dos principais responsáveis pelo superávit comercial brasileiro. Do lado de fora, barracas capengas de comércio informal se aglomeram nas calçadas.

Há apenas uma entrada para os caminhões — o que é garantia de filas quando o volume de embarques cresce um pouco. Do lado de dentro do porto, o quadro não é melhor. Além de o pátio para os caminhões estar esburacado e mal sinalizado, o terminal não tem sequer um guindaste próprio capaz de erguer um contêiner vazio. 

De Porto Velho, a carga segue de balsa pelo rio Madeira rumo ao porto de Itacoatiara, no Amazonas. Por falta de dragagem regular, um mesmo trecho do rio pode ter, em diferentes épocas do ano, 2 ou 19 metros de profundidade — o que deixa a hidrovia à mercê do regime de chuvas. Isso muitas vezes aumenta o número de desvios e obstáculos no caminho, elevando o tempo e o custo para o deslocamento. “Nossa logística está totalmente no limite”, diz Denis Baú, presidente da Federação das Indústrias de Rondônia.

Segundo estudo da consultoria paulista Macrologística, se nenhum investimento em infraestrutura for feito até 2020, os custos para transportar os volumes atuais de mercadorias nos nove estados da Amazônia Legal (área que inclui os estados do Norte mais Mato Grosso e parte do Maranhão) chegarão a 33,5 bilhões de reais.

É praticamente o dobro dos 17 bilhões de reais que eram gastos em 2008. O governo, que deveria oferecer as soluções, não faz e não deixa fazer. Dos 14 bilhões de reais necessários para obras consideradas essenciais para a logística do Norte — e incluídas no PAC 2, lançado em 2010 —, apenas 700 milhões foram liberados até agora.

“A iniciativa privada já demonstrou interesse em investir 5 bilhões. É só o governo permitir”, diz Renato Pavan, presidente da Macrologística. “Há empresas interessadas em obter a concessão para explorar todos os portos da região, mas o governo não deu nenhum sinal de que esse será o caminho a ser seguido.”


Essa imobilidade acontece justamente quando Rondônia tem aumentado sua produção de grãos e de carnes. Embora incipiente, a área plantada de soja tem avançado em ritmo forte. Em 2012, estima-se que a colheita, já encerrada, tenha chegado a 400 000 toneladas, menos de 1% da produção nacional, mas um volume 45% maior que o de cinco anos atrás.

A produção de carne também aumenta acima da média brasileira e já responde por quase 40% das exportações do estado. A ironia é que o porto de Porto Velho não tem armazéns refrigerados — o que inviabiliza os embarques de carne bovina pela Região Norte. Por isso, os frigoríficos locais são obrigados a mandar suas cargas por caminhão — são 3 000 quilômetros até Paranaguá.

"Sem investimento, as hidrovias não valem a pena”, diz Elias José da Silva, diretor comercial do frigorífico Frigon, um dos principais exportadores de carne do estado. “Os prazos de entrega são muito inconstantes.”

Há 100 anos, no dia 30 de abril de 1912, a Madeira-Mamoré recebeu seu último dormente, ato que marcou a conclusão das obras da ferrovia. A estrada de ferro foi um fracasso.

Além das 6 000 mortes de operários nos cinco anos de construção (abatidos pela malária, pela febre amarela ou por flechas de índios arredios), ela pouco teve serventia: a superprodução de látex no Sudeste Asiático derrubou o preço da borracha no mundo — e matou a atividade no Brasil.

Composições inteiras dos antigos trens da Madeira-Mamoré ainda hoje descansam no meio da mata, na periferia de Porto Velho. São monumentos do ímpeto empreendedor de Farquhar. São também uma prova do quanto a infraestrutura de transporte da Região Norte continua sendo negligenciada.

Acompanhe tudo sobre:América LatinaDados de BrasilEdição 1016FerroviasInfraestruturaLogísticaSetor de transporteTransportes

Mais de Revista Exame

Invasão chinesa: os carros asiáticos que chegarão ao Brasil nos próximos meses

Maiores bancos do Brasil apostam na expansão do crédito para crescer

MM 24: Operadoras de planos de saúde reduzem lucro líquido em 191%

MM 2024: As maiores empresas do Brasil