Revista Exame

A febre do ouro

A combinação de incerteza econômica com juros baixos nos países ricos impulsionou os investimentos no ouro e fez sua cotação subir 30% em 2019

Fundição de ouro: o estoque é de 34.300 toneladas no mundo, segundo dados do FMI  (Karl Schoemaker/Getty Images)

Fundição de ouro: o estoque é de 34.300 toneladas no mundo, segundo dados do FMI (Karl Schoemaker/Getty Images)

TL

Tais Laporta

Publicado em 24 de outubro de 2019 às 05h28.

Última atualização em 24 de outubro de 2019 às 14h35.

Na era do dinheiro digital, o metal mais cobiçado da história vive uma grande fase. Em alta de quase 30% desde o começo do ano, o preço do ouro no mercado internacional está perto do pico histórico alcançado em outubro de 2012, acima dos 1.500 dólares por onça-troy (medida equivalente a 30 gramas).

Desta vez, o motivo da valorização foi diferente de seis anos atrás, quando disparou a procura por joias, barras e moedas, puxada pela euforia de consumo pós-crise de 2008. Agora, o metal está lotando cofres e bancos como medida de segurança. No primeiro semestre, a demanda global por ouro foi a maior em três anos, puxada sobretudo pelas reservas em mercados emergentes, como China, Índia, Rússia e Polônia.

Os bancos centrais desses países compraram 374 toneladas no período — um volume 57% maior ante o dos seis primeiros meses de 2018 e o maior aumento em 19 anos, segundo o World Gold Council, organização de fomento à indústria do ouro no mundo. O valor do ouro está escondido em características únicas de durabilidade e escassez, impossíveis de copiar. “O dinheiro tecnológico é muito bom, mas todo mundo quer valor, e essa é a essência do ouro”, diz Paz Ambrosy, investidora especializada em fortunas de family offices e professora na espanhola IE Business School.

O hábito de comprar e guardar ouro era mais comum até a Primeira Guerra Mundial. Conhecida como padrão-ouro, a regra que regia a economia dos países no período consistia em emitir moedas para a circulação no mesmo volume do metal que ficava armazenado. Hoje, o estoque total em ouro no mundo — de 34.300 toneladas, segundo o Fundo Monetário Internacional — não é mais suficiente para lastrear todo o dinheiro que circula na economia.

Ainda assim a commodity não perdeu a vocação de “porto seguro” quando o futuro fica incerto. É o que está acontecendo. Temores de uma recessão provocada por conflitos geopolíticos e pelo embate entre a China e os Estados Unidos reforçaram a corrida por proteção. Soma-se a isso um fenômeno inédito na economia global: os juros negativos, que desafiam a lógica dos investimentos ao obrigar o aplicador a pagar uma taxa para deixar o dinheiro guardado.

As reservas com retorno abaixo de zero já somam 17 trilhões de dólares no mundo, o equivalente a um quarto de todos os recursos aplicados em títulos soberanos. Isso vem forçando os fundos bilionários a buscar alternativas para não perder recursos. “O ouro é o único ativo que não carrega risco político ou de crédito nem pode ser depreciado pela impressão de dinheiro ou por políticas monetárias incomuns”, diz Alistair Hewitt, diretor de inteligência do World Gold Council.

O metal também ganha destaque à medida que o dólar perde espaço como um ativo de segurança. A moeda passou a ter um comportamento volátil, subindo com a tensão comercial e recuando com a perspectiva de novos cortes de juros pelo Federal Reserve (o Banco Central americano). “O mercado começou a procurar outro porto seguro”, afirma Fernando Fridman, responsável pela área de produtos da corretora Ourinvest DTVM.

O metal ganhou espaço também na carteira dos investidores. Os juros historicamente baixos empurraram os conservadores para aplicações mais arriscadas, como as ações. Mas os precavidos preferiram a proteção que o ouro tem entre os ativos mais visados. “Hoje é mais seguro do que o dólar”, diz Mauriciano Cavalcante, gerente da casa de câmbio Ourominas.

Na B3, o volume negociado subiu 44% nos primeiros oito meses do ano em comparação ao registrado no mesmo período de 2018. Somente em agosto os contratos de 250 gramas superaram 123 milhões de reais, mais do que o triplo da média mensal. As pessoas físicas buscaram o ativo por meio de fundos, de olho na cotação em reais, que disparou por acompanhar os preços internacionais e o dólar.

“Quando o ouro e o dólar sobem juntos, é o melhor cenário para o investidor”, diz Sandra Blanco, consultora de investimentos da Órama. O fundo da corretora que aplica exclusivamente no metal da B3 triplicou o patrimônio para 147 milhões de reais. Outros fundos aumentaram a exposição em ouro para elevar a proteção dos cotistas. O gestor da Novus Capital, Ricardo Kazan, passou a comprar mais ouro da Comex (a bolsa de commodities de Nova York) ao perceber que o cenário global representava um risco elevado. “Quando tudo vai mal, é o ouro que vai bem”, define George Wachsmann, gestor da Vitreo.

Em setembro, a gestora lançou um fundo lastreado apenas em ouro, com uma captação de 5 milhões de reais nos dois primeiros dias. Para investir diretamente na B3, é preciso um lote mínimo de 52 mil reais. Pelos fundos, o investimento é muito mais acessível — com cerca de 1.000 reais disponíveis já é possível comprar ouro.

PROJETOS DE MINERAÇÃO

A procura crescente tem repercussões importantes no Brasil. Hoje o país não possui reservas expressivas quando comparado a Estados Unidos, Alemanha e Itália, que, juntos, somam 13.952 toneladas em estoque, mais de 60% de seus colchões de emergência. Em outubro, o Brasil somava 67 toneladas de ouro, apenas 0,9% das reservas internacionais do Banco Central, de 376 bilhões de dólares em setembro.

Mas a valorização pode abrir caminho para grandes projetos de mineração. Hoje o 11o produtor mundial de ouro, o Brasil já foi o líder no período colonial, com a exploração em Minas Gerais. Agora, poucos grupos são responsáveis pela produção voltada para a exportação, para bancos, joalherias e empresas de tecnologia. Entre eles estão a companhia sul-africana AngloGold Ashanti, a canadense Yamana Gold e a brasileira Vale, segundo a Agência Nacional de Mineração.

Com a alta do ouro, novos competidores podem chegar ao Brasil, dinamizando um mercado local que ainda depende muito dos garimpos, legalizados ou não. É uma zona obscura, que voltou às manchetes recentemente, quando o presidente Jair Bolsonaro declarou que pretende legalizar a atividade dos garimpeiros. 

Feira de ouro em Hong Kong: os muito ricos usam joias como adorno, mas também como reserva de valor | Divulgação

A escalada no preço do ouro tem seus efeitos na ponta final do varejo. Praticamente metade das 3 mil toneladas produzidas por ano mundialmente vai para a indústria, que, além de joias, aproveita as propriedades do metal para fabricar desde peças de celulares até motores de avião.

A cotação mais elevada encarece o consumo final dos produtos, mas a queda nas vendas é amenizada pelo fato de os itens de luxo serem vistos como reserva de valor. As joalherias faturam 20 bilhões de reais por ano no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Gemas e Metais Preciosos. “É um número que se manteve nos últimos anos”, diz Ecio Morais, diretor executivo do instituto. O mercado é pulverizado, com cerca de 1.200 unidades industriais, principalmente artesanais e familiares.

A maior joalheria do país é a Vivara, que acabou de captar 2,3 bilhões de reais ao abrir o capital na B3. Parte dos recursos levantados deve ir para a expansão de lojas, que somavam 237 no primeiro semestre — uma fatia dos 8 mil pontos de venda de o uro espalhados pelo país. Além do fascínio por itens de luxo, as joias são boas reservas de valor para os super-ricos. “Se você tem ouro em casa, no pior dos cenários vai a um banco e pega o dinheiro”, diz Paz Ambrosy, da IE Business School.

É impossível, claro, ter certeza se a cotação do ouro vai continuar subindo ainda mais ou se já alcançou o auge neste ciclo. Mas, a cada nova notícia sobre incertezas no Brexit, sobre o pedido de impeachment de Donald Trump ou sobre novas barreiras comerciais, países, investidores e consumidores tendem a seguir correndo para o mais valioso dos metais. 

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