Revista Exame

A família à frente na Bauducco

Com faturamento de 3 bilhões de reais, a Bauducco se mantém 100% familiar. A estratégia traz limitações, preserva a essência e ajuda a passar por crises

Casa Bauducco na Avenida Paulista, em São Paulo: aproximação com o consumidor | Leandro Fonseca /  (Leandro Fonseca/Exame)

Casa Bauducco na Avenida Paulista, em São Paulo: aproximação com o consumidor | Leandro Fonseca / (Leandro Fonseca/Exame)

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Da Redação

Publicado em 26 de março de 2020 às 05h30.

Última atualização em 26 de março de 2020 às 05h30.

O panetone Bauducco leva mais de 50 horas para ficar pronto. A produção anual supera 75 milhões de unidades, e todos têm um pouco da massa madre, a mistura viva com micro-organismos de fermento natural. A massa é a mesma que foi trazida da Itália para o Brasil há 72 anos pelo fundador, Carlo Bauducco, e até hoje é alimentada nas fábricas da companhia para continuar servindo de base para o pão doce típico do Natal.

Para estar nas prateleiras no final do ano, os panetones começam a ser produzidos em agosto. A paciência empregada no processo de fabricação é tida pela empresa como um de seus trunfos. E vai além do panetone. Com 3 bilhões de reais de faturamento anual e o título de maior fabricante de panetones do mundo, a companhia brasileira se manteve familiar até agora, enquanto concorrentes do setor de alimentos foram adquiridas por multinacionais ou abriram o capital na bolsa. Em parte, a escolha por manter a empresa na família se explica pela liberdade de tomar decisões sem afobação, como a fabricação de um panetone deve ser.

“A gente planta, planta, e uma hora a coisa vai. Pode levar dez ou 20 anos. Se forem dez será melhor, mas se forem 20 está tudo bem. Queremos fazer um negócio de longo prazo, não é pá-pum”, afirma o presidente, Massimo Bauducco, neto do fundador, em uma rara entrevista na sede da companhia.

A Bauducco começou como uma doceria no bairro do Brás, centro de São Paulo, em 1952. Na época, os panetones eram embalados em papel de seda. Logo o produto foi ficando conhecido, e a família montou uma fábrica em Guarulhos, na região metropolitana. Pouco depois passou a fabricar torradas e biscoitos champanhe.

O critério para a introdução de um novo produto era que fosse inédito no Brasil. Com a chegada das gerações seguintes, a ampliação do portfólio e a expansão da empresa se aceleraram. Mas a Bauducco continuou na família e manteve sua essência. Muitos funcionários estão na companhia há décadas, e os produtos, apesar de feitos em escala industrial, ainda carregam um estilo artesanal, cuja principal expressão é a massa madre do panetone.

Como toda empresa brasileira, a Bauducco deve sofrer as consequências da crise do coronavírus — mas, como só as empresas familiares podem fazer, tem um dono à frente, pronto para tomar as decisões com agilidade. Hoje com 61 anos, Massimo circula pelas fábricas da companhia desde criança. (Se a Bauducco vai sair mais forte desta crise, as próximas semanas vão dizer.)

Torradas da Bauducco: o produto foi um dos primeiros lançados depois do panetone | Mario Rodrigues

A Bauducco é até hoje 100% da família fundadora, mas isso não significa que ficou parada no tempo. Em 2001, já com Massimo no comando, comprou a Visconti, sua principal concorrente no mercado de panetones. Nos últimos 12 anos, profissionalizou a gestão. Hoje, Massimo e seu irmão Carlo Andrea Bauducco são os únicos membros da família a atuar no dia a dia do negócio.

A empresa investiu mais forte em novos segmentos, como os cookies e a linha Cereale, de apelo saudável. Atua agora em mais de dez categorias, com 130 produtos. As vendas cresceram 11% de 2018 para 2019. Um terço do faturamento vem de itens lançados nos últimos dez anos; os panetones respondem por 25% das receitas.

A companhia tem cinco fábricas (uma delas em Miami, nos Estados Unidos) e exporta para mais de 50 países. Os investimentos na ampliação foram feitos com capital próprio e empréstimos bancários. A dívida é atualmente de cerca de 1,3 vez a geração de caixa, não revelada.

Furgão em frente à Doceria Bauducco, no Brás: o imigrante italiano abriu o negócio em 1952 | Divulgação

O momento, na Bauducco, é de colher os frutos dos investimentos. “Mesmo na crise econômica brasileira, mantivemos uma expansão acelerada. A marca se consolidou e começa a ganhar novos filhos”, diz André Britto, diretor de marketing. Nos últimos anos, a Bauducco entrou em dois mercados importantes do setor de alimentos: pães e chocolates. Há três anos, lançou a linha de pães da Visconti.

Em 2019 veio o Choco Biscuit, um chocolate sobre uma base de biscoito.  A empresa também tem criado variações dos segmentos já existentes. Um deles é o cookie, agora em versão recheada. Lançado em 2009 para aproximar a marca dos jovens, o cookie tem um dos melhores desempenhos da marca. A empresa também espera crescer fora do país. Há dez anos, montou a fábrica americana, que produz cerca de 5 milhões de panetones por ano. Opera em três turnos e deve ter a capacidade ampliada.

Produtos que já faziam parte do catálogo estão sendo renovados. Prima do panetone, a colomba pascal é uma das principais apostas da Bauducco para alavancar as vendas no Brasil em 2020. A colomba já é produzida pela Bauducco há décadas. Mas só nos últimos dois anos a companhia deu ao produto a atenção de que ele precisava. Antes, a colomba era mais seca, o formato do bolo (que representa uma pomba) não favorecia a textura, e a concorrência dos ovos de Páscoa era mais forte.  Nos últimos anos, a empresa se dedicou a melhorar a receita, criou variedades e agora acredita que seja hora de fazer a categoria crescer.

“Estamos otimistas e agressivos na proposta, ampliamos o volume produzido e o investimento em marketing”, diz Britto. Segundo a empresa, o consumo de colombas no Brasil é de aproximadamente 10% do de panetones. Na Itália, é de 30%. A meta da companhia é chegar pelo menos a 20% — algo como 15 milhões de colombas por ano. Entre as novidades para este ano está a Chocolomba.

O objetivo é conseguir um pouco do sucesso que o Chocottone tem sido no Natal. O pão de final de ano que substitui as frutas por chocolate foi criado por Massimo em 1978, quando ainda estava na faculdade, e virou sucesso de vendas.

Enquanto diversificava a produção como indústria, a Bauducco também se aventurou pelo universo do varejo. Em 2012, lançou a Casa Bauducco, rede de franquias de cafeterias com mais de 80 unidades no país atualmente. Na loja, que remete à doceria no Brás onde a companhia começou, a Bauducco serve guloseimas como a fatia de panetone na chapa e biscoitos e chocolates exclusivos. O panetone com damasco e o brioche integral vendidos nas cafeterias não são encontrados nos supermercados.

A Bauducco investiu 10 milhões de reais para iniciar o negócio, incluindo a fábrica para os produtos da loja, a operação logística e as primeiras unidades. O faturamento da rede é de 90 milhões de reais por ano. Assim como nas outras frentes da companhia, a meta para 2020 é acelerar o crescimento. A marca vai abrir mais 30 lojas da Casa Bauducco ainda neste ano e quer chegar a 2025 com 400 unidades (esse era, pelo menos, o plano antes da crise do coronavírus).

A estratégia é uma forma de aproximar a marca de um consumidor que tem pouco contato com a Bauducco na gôndola do supermercado, como executivos e jovens. Além disso, possibilita que a Bauducco tenha acesso direto ao consumidor, precioso na era da ciência de dados. “Se a marca fica só como indústria, depende do intermediário para ter acesso a informações do consumidor e perde velocidade e inteligência”, diz Ana Paula Tozzi, presidente da AGR Consultores, especializada em varejo.

Checagem de temperatura na bolsa de Xangai por causa da covid-19: as empresas abertas sofrem mais | Yifan Ding/Getty Images

As cafeterias ajudam a reforçar uma marca que já é forte. No final dos anos 1990, a Bauducco optou por acabar as submarcas que possuía na época. Todos os produtos do portfólio foram incluídos no guarda-chuva da Bauducco, que recebeu a identidade visual usada até hoje: fundo amarelo e logotipo vermelho.

É um caminho diferente do trilhado, por exemplo, pela M. Dias Branco, concorrente forte no Nordeste do país, dona de marcas como Pelaggio, Adria e Piraquê. A M. Dias abriu o capital em 2006 e hoje vale 9 bilhões de ­reais na bolsa de valores brasileira B3. De lá para cá, tem comprado concorrentes para crescer. Na Bauducco, as aquisições são uma opção, mas a preferência é pelo crescimento de dentro para fora.

“A Bauducco desenvolveu um produto muito bom e diversificou a partir dele. A grande vantagem desse caminho é aproveitar a credibilidade construída com o panetone. O consumidor pensa: se vem dessa marca, eu confio”, diz Cristina Souza, diretora de alimentos da consultoria de varejo Gouvêa de Souza. A estratégia tem dado certo. A marca é líder nos segmentos de bolos (com 49,5% do mercado), biscoito wafer (com 15,3%) e cookies (20,7%),  de acordo com a consultoria de mercado Euromonitor.

Irmãos Walton, donos do Walmart: o gigante grupo varejista americano ganhou o mundo | Gilles Mingasson/Getty Images

Em 2013, a Bauducco chegou a procurar fundos interessados em investir no negócio. Mas as conversas não foram para a frente. Um dos temores era que o investidor de fora não tivesse paciência para esperar os projetos amadurecerem. “Não encontramos um fundo de investimento que nos desse tranquilidade na época”, afirma Massimo. Essa é uma questão frequente entre empresas familiares. “A grande preocupação da família é perder os valores da empresa e o zelo pela sua história”, afirma Luiz Marcatti, presidente da consultoria Mesa Corporate.

Atrair investidores sem perder a essência do negócio é um dilema comum a empresas familiares brasileiras — e o mercado de alimentos está quarado delas. Foi uma questão que se impôs à Forno de Minas, fabricante de pão de queijo criada por Helder Mendonça e sua mãe, Dalva. Dalva tinha inventado uma receita de pão de queijo que deixava amigos e parentes com água na boca.

O filho viu na iguaria uma oportunidade de negócio, e a empresa surgiu daí. Em 1999, a Forno de Minas estava numa situa­ção difícil. Faltavam recursos para capital de giro e expansão, e havia ainda queda no faturamento. A companhia foi então vendida para a americana General Mills, que resolveu mexer na receita do pão de queijo. Não deu muito certo, e os consumidores começaram a ra­rear. Com o passar do tempo, o foco da multinacional mudou para a China. Sem novos investimentos e sem um plano de negócios sustentável, a Forno de Minas empacou. O atendimento aos pontos de venda não era mais o mesmo, assim como a agilidade na entrega. Mais de 3.500 clientes do pequeno varejo, que respondiam por mais da metade da receita, desapareceram.

Numa reviravolta surpreendente, mãe e filho resolveram recomprar a empresa dez anos depois muito mais barato, por 15 milhões de dólares. O primeiro passo para colocar a empresa de pé novamente foi recuperar a receita de dona Dalva e retomar o contato com os pontos de venda. Também era preciso aumentar a produção. Em 2018, Mendonça resolveu fechar negócio com a canadense McCain, fabricante de batata-frita congelada, que ficou com 49% da empresa. Mas dessa vez os fundadores permaneceram no negócio.

“Até hoje, aos 77 anos, minha mãe faz questão de estar presente na fábrica, em Contagem, diariamente. Ela transmite uma cultura de perseverança”, diz Mendonça. Com mais musculatura, o negócio cresceu. Hoje, de volta às origens, o faturamento chega a 380 milhões de reais por ano, incluindo exportações para mais de dez países, como os Estados Unidos e Portugal.    

São raras as empresas que conseguem manter a tradição ao longo do tempo, seja nas mãos dos fundadores, seja nas de novos donos. Com 150 anos de história, a fabricante de produtos de higiene Granado é uma delas. Fundada no Rio de Janeiro por José Antônio Coxito Granado, um imigrante português apaixonado por ervas e botânica, a empresa conquistou o raro feito de sobreviver à transição da monarquia para a República em 1889, a ditaduras e a sucessivos planos econômicos que derrubaram muitas empresas.

No entanto, nunca abandonou suas características mais marcantes. Os sabonetes, talcos, loções e perfumes da marca, responsáveis por boa parte do faturamento de quase 600 milhões reais conquistado em 2019, mudaram muito pouco em um século e meio. “As formulações basicamente são as mesmas criadas pelo fundador. Ele foi um grande especialista no estudo das plantas para formulações de produtos de higiene que faziam bem à pele”, diz Sissi Freeman, diretora de vendas e marketing.

De cima para baixo: Freeman, da Granado; Francisco Ivens Dias Branco e Mendonça, da Forno de Minas: mantendo a essência | Fotos: Divulgação, Drawlio Joca e Pedro Silveira

Porém, diferentemente da Bauducco, a Granado mudou de dono. Em 1994, a família fundadora chamou o consultor britânico Christopher Freeman, que atuava no Rio de Janeiro, para ajudar a vender o negócio. Free­man se apaixonou pelo cheirinho dos sabonetes de fórmulas centenárias e resolveu comprar a empresa, recuperando o estilo do século 19 que encantava os clientes.

Os produtos mais clássicos e conhecidos do público, como o sabonete Phebo, à base de glicerina, foram relançados em embalagens que remetiam ao passado. A empresa começou a dar saltos de crescimento mais ousados nos últimos três anos. A venda de 35% da Granado em 2016 à espanhola Puig,  de moda e perfumaria, deu um novo gás à expansão. Hoje são 81 pontos de venda no Brasil, em quase todos os estados, e três na França. A Granado pretende investir 25 milhões de euros no mercado europeu nos próximos anos.

“Manter a identidade da marca, focada nas tradições centenárias da empresa, foi o fator principal para o crescimento do negócio, já que os consumidores valorizam marcas tradicionais que não abrem mão da qualidade”, diz Christopher Freeman.

Na Bauducco, mesmo após a tentativa fracassada de alguns anos atrás, os donos não descartam atrair um investidor. A avaliação é que o cenário global mudou, e a mentalidade do investidor financeiro também. Há sete anos, a taxa básica de juro no Brasil, a Selic, era de 10%, o que fazia com que qualquer investimento de maior risco precisasse render mais do que isso para valer a pena.

Hoje, a Selic está no nível mais baixo da história, 3,75%. No exterior, os juros negativos em países como Alemanha e Japão contribuem para aumentar o apetite por risco do investidor internacional. Mas a queda de 36% do Ibovespa — principal índice acionário brasileiro — neste ano por causa da pandemia do novo coronavírus mostra que uma empresa de capital fechado pode passar por momentos de turbulência com mais tranquilidade.

Ainda assim, a Bauducco deixa todas as possibilidades na mesa, principalmente se houver uma oportunidade de crescimento em jogo. Empresas listadas, afinal, podem acelerar mais rapidamente quando uma nova fase de euforia se apresentar. A empresa estuda uma abertura do capital, que pode acontecer em seis meses ou seis anos, segundo seus executivos.       

No Brasil, 80% das empresas são familiares, mas apenas 3% delas resistem até a quarta geração. A consultoria EY e a Universidade de St. Gallen, na Suíça, elaboram periodicamente um ranking global dessas companhias. Um dos critérios para entrar na lista é que a família controle mais de 50% da empresa, no caso das companhias fechadas, e pelo menos 32%, no caso das empresas públicas.

A empresa deve ser gerida pelo menos pela segunda geração dos fundadores, e um ou mais membros da família devem estar na direção do negócio. O ranking considera as companhias de maior faturamento. No topo da lista mais recente, de 2019, estão a varejista americana Walmart, da família Walton, e a montadora alemã Volkswagen, da família Porsche.

A lista inclui 12 brasileiras. São nomes bem conhecidos, como a produtora de alimentos JBS, o banco Itaú e a construtora Odebrecht (veja quadro). Em geral, quanto maior a empresa, menos conta nas decisões de negócio o fato de ser familiar. “Essas empresas podem manter uma conexão forte com a família, mas chega um ponto em que as decisões estratégicas ficam mais racionais”, diz Carolina Queiroz, diretora de empreendimentos familiares da EY para a América Latina.

Na Bauducco, a família segue por perto. A sucessão de Massimo já está definida: a presidência deve ficar com seu irmão mais novo, Carlo Andrea, hoje vice-presidente, responsável principalmente por cuidar da Casa Bauducco e do marketing. “Há 20 anos, a gente fechava uma compra com anotações no guardanapo. Era só sentar junto e combinar. Mudamos muito”, afirma Massimo.

]Hoje, as decisões mais importantes são tomadas pela diretoria. A companhia também passa por auditorias periódicas. As medidas são fundamentais para garantir a longevidade da ­Bauducco. “Para se tornar uma grande corporação, uma empresa familiar precisa passar por ciclos de profissionalização, com melhora da governança. É um processo contínuo de aprendizado”, diz Queiroz. Com isso, a Bauducco busca manter o bônus de ser uma empresa familiar, sem o ônus. A massa madre agradece. 

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