O executivo em seu momento de dor: Carlos Ghosn sai do “Affaire Renault” menor do que entrou. Aliás, bem menor (Boris Horvat /AFP Photo)
Da Redação
Publicado em 12 de maio de 2011 às 06h00.
Ninguém pode dizer que é feliz até o último de seus dias, escreveu o filósofo francês Montaigne em seus Ensaios. Montaigne, apoiado numa máxima de um sábio da Antiguidade, citava, especificamente, Príamo, o rei de Troia que viveu em esplêndida e pacata prosperidade até quase o final da vida.
Vieram os gregos e destruíram tudo — depois de matar seu filho favorito, Heitor, diante de seus olhos envelhecidos, obrigados a ver o cadáver ser arrastado cruelmente pelos inimigos.
Não estamos exatamente diante de uma tragédia grega corporativa, mas a reflexão de Montaigne é apropriada à vida executiva. Nenhum executivo, por maiores que sejam suas conquistas, pode dizer que só conheceu glórias até o último de seus dias na ativa.
O chamado “L’Affaire Renault” é mais uma demonstração de quanto isso é verdadeiro. Carlos Ghosn, o executivo de origem brasileira, libanesa e francesa que até os 57 anos acumulara apenas triunfos notáveis, louvados retumbantemente pela mídia internacional de negócios, está no centro de um episódio constrangedor.
Provavelmente ele não perderá o cargo de presidente da Renault-Nissan, uma parceria improvável mas extremamente bem-sucedida que é responsável por um em cada dez carros que circulam pelo mundo. Mas sua reputação sofreu um golpe rude. A biografia invicta de Ghosn, um poliglota cujas proezas nos negócios o fizeram herói de histórias em quadrinhos no Japão, foi enfim manchada por uma derrota.
A capacidade de julgamento de Ghosn é vista sob olhares bem menos admirados desde que ficou provado que, afinal, não houvera a espionagem em torno do carro elétrico da Renault que custou a demissão sob holofotes de três respeitados e veteranos executivos da montadora.
As acusações, enviadas em carta anônima, eram inteiramente falsas, conforme mostrou uma investigação em torno delas. Só que, talvez para demonstrar mais uma vez seu legendário sentido de urgência, Ghosn tomou providências sumárias contra os acusados antes que a inocência deles fosse comprovada.
Ele, que fora à televisão anunciar os crimes e as punições, teve de voltar a ela para se desdizer. Não foi apenas Ghosn que se movimentou bisonhamente antes da hora. No fragor dos acontecimentos, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, conseguiu criar uma — mais uma, aliás — crise diplomática internacional ao anunciar publicamente que seria investigada a participação da China na alegada espionagem.
Uma reunião de acionistas da Renault no início de maio era aguardada com ansiedade. Como ficaria Ghosn? Como bem definiu uma publicação americana de negócios, os donos de ações costumam ser extraordinariamente condescendentes com executivos que, como Ghosn, são uma garantia de dividendos.
A virtualmente quebrada Nissan passou a dar resultados — um quase milagre — menos de um ano após a chegada de Ghosn ao comando da empresa. “Ele é o melhor executivo do mundo”, disse um acionista depois do encontro. Na versão oficial chancelada pelos acionistas, e apoiada por ele mesmo, Ghosn foi vítima de más informações que chegaram à cúpula da empresa.
Não terminou tudo em champanhe. O braço direito de Ghosn e aparentemente seu sucessor, Patrick Pélata, preferiu deixar a Renault, abalado com o caso. Como é comum em situações de crise, começaram subitamente a circular rumores sobre o estilo de comando de Ghosn — até então acima do bem e do mal.
Ele seria um “autocrata”, e o único homem capaz de enfrentá-lo em discussões seria exatamente Pélata. A sucessão de Pélata está sendo encaminhada, avisou Ghosn — bem como a indenização milionária dos injustamente demitidos. Num gesto em que parece ter havido um forte teor de marketing, Ghosn avisou ter renunciado aos bônus que receberia da Renault neste ano.
A suspeita de alguma coisa teatral no gesto é que esse dinheiro é apenas uma fração do que ele recebe como presidente ao mesmo tempo da Renault e da Nissan. Segundo a mídia francesa, Ghosn ganha em torno de 11 milhões de euros por ano.
O mágico na berlinda
“Ele tem um problema de credibilidade”, diz o acadêmico Joseph Porac, da Stern School of Business, de Nova York. “Quem vai querer ser leal a esse cara? Com base em rumores você queima empregados? Outros executivos vão pensar o seguinte: ‘Se ele faz isso com os outros, por que não vai fazer comigo?’ ” Porac é uma espécie de autoridade em Ghosn. Ele ministrou na Stern um curso sobre a aliança entre a Renault e a Nissan.
É esperado que agora Ghosn comece a ser questionado por coisas que passaram batidas enquanto ele só colecionou êxitos. Por exemplo: dá mesmo para comandar uma empresa gigante quando você divide seu expediente, como é o caso de Ghosn, entre França e Japão?
A rigor, a divisão é maior. Ghosn diz que fica 40% de seu tempo na França, 40% no Japão e os demais 20% entre países importantes para a companhia. Sua milhagem é formidável, é verdade. Mas e sua capacidade de administrar entre tantas viagens? Se estivesse mais focado, não teria tratado melhor do fiasco da espionagem? São perguntas que começam a cercar um homem até aqui pouco questionado.
Se faltaram críticas, reverências e admirações sempre o acompanharam desde que, saído da legendária École Polytechnique, começou sua rápida escalada profissional na Michelin, da qual saiu porque os limites para suas ambições eram desanimadores por se tratar de uma empresa familiar.
Se na Renault ele mostrou do que era capaz, na Nissan pareceu fazer mágica. Ghosn mudou a cultura da empresa de uma forma espantosa quando se leva em consideração o tradicionalíssimo estilo oriental de ser. Aboliu a curvatura cerimoniosa quando as pessoas se encontram.
Colocou o inglês como a língua oficial da companhia. Mandou embora muita gente, fiel a seu apelido de “Destruidor de custos”, mas o tempo mostraria que assim ele acabaria salvando o emprego de milhares de outras pessoas. Ghosn acabou ganhando uma dimensão de popstar no Japão, um movimento facilitado pela rapidez com que ele dominou o idioma local.
Não chegou a ser surpresa quando, algum tempo atrás, seu nome começou a ser sussurrado como alguém capaz do que parece ser impossível: tirar a GM americana do buraco em que se meteu já há muitos anos. Ghosn chegou a entabular conversas, sob o incentivo de um acionista que tinha um pedaço considerável da empresa, o bilionário armênio-americano Kirk Kerkorian.
Kerkorian defendeu abertamente a contratação de Ghosn, mas enfrentou resistências épicas da administração da GM, uma das empresas mais resistentes a mudanças na história do capitalismo moderno.
O projeto não foi adiante, e Kerkorian acabou se desfazendo de seus papéis do colosso encrencado de Detroit. A fama de Midas é tão grande que o nome de Ghosn já foi lembrado como um potencial presidente para o Líbano. Sabiamente, ele tem se esquivado de alimentar essas especulações. Diz não ter ambições políticas.
O que faz de Ghosn um executivo único é sua capacidade de unir coisas quase sempre separadas nos outros. Ele é um extraordinário cortador de despesas. Mas muita gente também é. Entre os destruidores de gastos você conta nos dedos de uma mão aqueles que são capazes de criar futuro com inovações. Ghosn é um desses casos.
Ele pôs um foco forte, na Renault-Nissan, em automóveis que não poluam por entender que está aí o amanhã da indústria automobilística. A menina de seus olhos é o Leaf, um carro elétrico no qual estão sendo investidos 5 bilhões de dólares. Foi exatamente em torno do Leaf que surgiram as denúncias de espionagem.
Entre os apelidos conquistados por Ghosn está o de “Mr. Fix It”. Numa tradução livre, “o homem capaz de consertar tudo”. Ele fez jus a esse apelido ao cuidar brilhantemente de problemas nas empresas em que trabalhou.
Agora ele tem o desafio inédito de consertar a própria reputação. O mundo dos negócios vai observar com interesse o desdobramento dessa tarefa que desabou sobre ele quando parecia que sua carreira só conheceria triunfos.