Museu Nacional, no Rio de Janeiro: incêndio em 2018 motivou a regulamentação dos fundos patrimoniais filantrópicos | Francisco Proner Ramos/AGIF /
Rodrigo Caetano
Publicado em 13 de fevereiro de 2020 às 05h35.
Última atualização em 4 de março de 2020 às 18h31.
Em junho deste ano, um grupo de alunos de engenharia da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo participará da Spaceport America Cup, competição universitária internacional de lançamento de foguetes, realizada anualmente no deserto de Utah, nos Estados Unidos. A SA Cup reúne as principais universidades de engenharia do mundo. A USP será representada pelo Projeto Júpiter, grupo multidisciplinar criado em 2015 com o objetivo de incentivar os estudantes a entrar na área de engenharia espacial. Em sua sexta participação no torneio, a universidade paulista almeja superar sua melhor marca, um quarto lugar obtido em 2017. Além da USP, o Instituto Tecnológico da Aeronáutica e a Universidade Estadual do Rio de Janeiro também costumam enviar equipes — o ITA já conquistou um honroso segundo lugar, em 2016.
O Projeto Júpiter é uma experiência bem-sucedida no meio acadêmico, que resulta de outra prática de sucesso no meio filantrópico. A equipe de lançadores de foguetes da USP é quase inteiramente bancada pelo Amigos da Poli, um fundo patrimonial criado em 2012 por ex-alunos da universidade. Hoje com um patrimônio de cerca de 30 milhões de reais, o Amigos da Poli adota um conceito muito difundido nos Estados Unidos e na Europa: o de endowments — fundos criados com doações privadas e uma finalidade específica, como investir em projetos educacionais ou culturais. O lucro obtido com os investimentos do fundo é usado para financiar os projetos, garantindo um fluxo constante de recursos. “Nosso objetivo é retribuir à universidade o que ela nos proporcionou”, diz Lucas Sancassani, presidente do Amigos da Poli. Desde que foi criado, o fundo já apoiou mais de 100 projetos da universidade, com recursos doados por 4.500 ex-alunos.
Apesar do sucesso da iniciativa dos alunos da USP, a cultura do endowment ainda não se desenvolveu no Brasil. Uma legislação criada no governo Michel Temer em 2018, e sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em janeiro de 2019, prometia mudar essa realidade. A Lei no 13.800 regulamenta os fundos patrimoniais filantrópicos, que passam a contar com uma personalidade jurídica distinta do projeto apoiado. “A expectativa era que tivéssemos hoje cerca de 30 fundos desse tipo em funcionamento”, diz Paula Fabiani, presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social, organização que apoia a criação de entidades filantrópicas. Um ano depois, porém, pouca coisa mudou.
Desde janeiro de 2019, quando passou a valer a nova lei, apenas dois endowments saíram do papel. Um é o da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, que tem entre seus conselheiros o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga e o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, ambos formados na universidade. Lançado em novembro do ano passado, o endowment da PUC-Rio tem a meta de alcançar um patrimônio de 10 milhões de reais em 12 meses, e de 160 milhões de reais em cinco anos. Outro fundo patrimonial enquadrado na nova legislação é o da Fundação Rogério Jonas Zylbersztajn, criado pela família do fundador da construtora RJZ Cyrela, morto em 2018, aos 58 anos. O endowment da família Zylbersztajn parte de um patrimônio superior a 100 milhões de reais e será voltado para ações sociais e culturais, como a Residência Assistida Israelita, que atende pessoas com transtornos mentais.
Os primeiros projetos de lei para regulamentar os endowments no Brasil surgiram em 2012, mas o tema só ganhou notoriedade com o incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em setembro de 2018. Numa tentativa de angariar fundos para a reconstrução do museu, o presidente Michel Temer editou uma medida provisória que deu origem à Lei no 13.800.
A MP atendia a uma demanda de grandes grupos filantrópicos, que pediam maior proteção aos recursos destinados a causas sociais. Até então, o patrimônio obtido por meio de doações era atribuído ao CNPJ da universidade ou de qualquer outra instituição para a qual os recursos se destinassem. Dessa forma, os doadores tinham pouca convicção de que o dinheiro aportado seria, de fato, utilizado para a causa apoiada ou de que ficaria seguro em caso de má gestão do projeto (os recursos poderiam acabar sendo utilizados para pagar dívidas trabalhistas, por exemplo).
A expectativa era que muitas instituições que mantêm fundos patrimoniais migrassem para o novo modelo. “Isso não aconteceu porque muitos não enxergaram as vantagens desse enquadramento”, diz Paula. Ela se refere a instituições como as fundações Bradesco, que tem o maior fundo patrimonial do país, com mais de 50 bilhões de reais, e Maria Cecília Souto Vidigal, cujo patrimônio ultrapassa 500 milhões de reais. Instituições desse porte têm pouco incentivo para adotar o novo modelo por causa de indefinições tributárias, que geram insegurança jurídica. “Recebemos muitas consultas sobre a Lei no 13.800, mas ainda não vemos ações concretas”, afirma Flavia Regina de Souza Oliveira, sócia do escritório de advocacia Mattos Filho e responsável pelas áreas de negócios sociais e direitos humanos.
O maior entrave é uma indefinição sobre a imunidade tributária de organizações sem fins lucrativos que atuam nas áreas de educação, saúde e assistência social. Esse é um direito garantido pela Constituição e, na prática, significa que entidades desse tipo não pagam nenhum imposto, até mesmo sobre lucros com investimentos no mercado financeiro. Como os endowments, pela nova lei, constituem uma figura jurídica distinta da entidade apoiada, não está claro se recebem o mesmo tratamento fiscal. “Temos argumentos jurídicos indicando que sim, mas não podemos garantir qual será a decisão da Receita Federal”, afirma Alessandro Amadeu da Fonseca, sócio do Mattos Filho, que cuida da área de gestão patrimonial, família e sucessões. Até o momento, a Receita não se manifestou a respeito. “Como de costume, os primeiros a testarem esse novo ordenamento jurídico serão cobaias”, diz Fonseca.
O maior potencial dos endowments, no entanto, é o de propiciar doações menores. O Amigos da Poli, por exemplo, recebeu doações que chegaram perto de 1 milhão de reais, mas também conta com ex-alunos dispostos a doar pequenas quantias, de 20 reais por mês. “Ninguém aportou mais do que 3% do fundo”, afirma Sancassani. Entre os maiores beneméritos estão nomes como o empresário Antônio Ermírio de Moraes e o banqueiro Olavo Egydio Setúbal, ambos falecidos, Henrique Meirelles (ex-presidente do BC) e Rubens Ometto (fundador da Cosan). Sancassani considera a lei positiva pela segurança que ela proporciona a fundos desse tipo, mas aponta uma falha importante: “Não há benefício fiscal para quem doa, o que dificulta a captação de recursos”.
Essa era uma das principais demandas das entidades filantrópicas, mas que ficou de fora da regulamentação. Na época da promulgação da lei, o Idis coordenou a formação da Coalizão pelos Fundos Filantrópicos, grupo que reúne mais de 60 entidades, entre elas a Fundação José Luiz Egydio Setúbal e o Instituto Ayrton Senna. A coalizão produziu uma série de documentos tratando da questão dos incentivos em outros países. Na França, uma lei aprovada em 2008 reconheceu a figura dos endowments como instituto jurídico autônomo e concedeu incentivos fiscais aos doadores.
No primeiro ano, 230 fundos foram criados. Mas o caso mais emblemático é o dos Estados Unidos, onde a legislação permite a dedução de doações feitas por pessoas físicas no limite de até 50% do imposto de renda devido. No ano passado, os americanos doaram mais de 400 bilhões de dólares para entidades filantrópicas, igrejas e outras instituições. Somados, os endowments das universidades americanas ultrapassam 500 bilhões de dólares em patrimônio. Só o fundo da Universidade Harvard, o maior do país, conta com mais de 30 bilhões de dólares em ativos.
Com a eleição de Donald Trump, no entanto, os incentivos fiscais diminuíram. Segundo um relatório da Universidade Johns Hopkins, o programa de corte fiscal elaborado por Trump e aprovado em dezembro de 2017 deve retirar das entidades filantrópicas 13 bilhões de dólares por ano em doações, em virtude de uma série de itens que expandem outras deduções disponíveis aos contribuintes. Por aqui, além da falta de incentivos fiscais, a necessidade de profissionalização das organizações é um obstáculo adicional à criação de endowments. A lei determina um padrão de governança para a gestão do fundo, o que acarreta custos e requer a atuação, remunerada ou não, de profissionais do mercado financeiro. “Muitas entidades não estão preparadas”, afirma Aline Viotto, coordenadora de relações institucionais do Grupo de Institutos Fundações e Empresas (Gife), organização que representa 160 entidades filantrópicas.
Para Paula Fabiani, do Idis, o cenário atual é parecido com o que sucedeu a aprovação, em 1999, da lei que regulamentou a atuação das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. “No primeiro ano da lei, praticamente nenhuma Oscip foi criada, mas hoje temos quase 10.000 organizações desse tipo”, diz Paula, que tem mapeado ao menos cinco novos endowments em formação e que devem sair do papel neste ano — os mais avançados são o da Unicamp, de Campinas, e o do Museu de Arte do Rio. Uma hora a lei deve pegar. n