Revista Exame

A doutrina de Trump

Se você compra petróleo diretamente da Rússia e se posiciona como garoto-propaganda oficial da moeda do BRICs e da desdolarização, você ataca o pilar fundamental do Império

Donald Trump persegue instável equilíbrio, talvez impossível: quer enfraquecer o dólar para reindustrializar os EUA, ao mesmo tempo que mantém sua moeda como referência de reserva de valor global (Adaask/Getty Images)

Donald Trump persegue instável equilíbrio, talvez impossível: quer enfraquecer o dólar para reindustrializar os EUA, ao mesmo tempo que mantém sua moeda como referência de reserva de valor global (Adaask/Getty Images)

Publicado em 28 de agosto de 2025 às 06h00.

Em fevereiro de 1945, Franklin D. Roosevelt recebeu no Canal de Suez o rei Ibn Saud, da Arábia Saudita, a bordo do cruzador USS Quincy. Ali, firmou-se um acordo tácito entre os dois países. Os Estados Unidos garantiriam a segurança da monarquia saudita em troca de fornecimento de petróleo aos americanos. Além disso, qualquer venda da commodity, mesmo para outras nações, precisaria ser feita em dólares. Transações em outras moedas ficavam vetadas.

O encontro não somente estabeleceu a parceria entre os dois aliados, permitiu alguma estabilidade política à região e firmou bases para interesses econômicos estratégicos de ambos no Oriente Médio. Foi além: marcou a posição do dólar como grande reserva de moeda. A moeda virava o meio de pagamento oficial de qualquer transação envolvendo o petróleo. Então, se você quisesse ter acesso a energia barata, precisaria ter dólares. O Império americano ganhava contornos mundiais.

Para acumular dólares de modo a trocá-los por petróleo, os países passaram a perseguir saldos comerciais com os EUA, que passavam a viver além de seus meios, consumindo muito, enquanto contavam com a poupança externa. O excesso de dólar era transformado em compras estrangeiras de Treasuries, financiando a dívida pública dos EUA a juros baixos. Assim, o déficit comercial americano seria uma decorrência natural e pouco preocupante. A contrapartida seria a natural desindustrialização dos EUA.

Alternativamente às vendas de bens, países estrangeiros poderiam, claro, obter dólares a partir de empréstimos diretos do governo dos EUA, de linhas de swap no Fed ou por suplícios ao FMI, com as consequências associadas a cada uma das possibilidades.

Antes de 1945, as pretensões imperialistas dos EUA restringiam-se mais à própria vizinhança. A elas se associavam as prescrições da Doutrina Monroe — qualquer tentativa de colonização europeia na América seria vista como um ato de hostilidade; em troca, os EUA não influenciariam assuntos europeus em curso. Para chegarmos ao Corolário Roosevelt, foi um pulo: diante de eventual hostilidade europeia na América, os EUA estariam autorizados a efetuar interferência militar.

A recente implicação ou cisma dos EUA com o Brasil talvez encontre sustentação na tal doutrina secular. Estaríamos sob a zona histórica, constitutiva, da influência americana. Para um mundo multipolar, com vários impérios locais, a importância estratégica do Brasil iria muito além de suas exportações diretas aos EUA, cujo impacto material de primeiro nível em ambos os PIBs é pouco expressivo, sobretudo após a bíblia de isenções.

Muito mais impactante e combativo, porém, é o alinhamento retórico e, por vezes, de política econômica do governo brasileiro, contrário aos interesses e à essência do Império americano. Se você compra petróleo diretamente da Rússia e se posiciona como garoto-propaganda oficial da moeda do Brics e da desdolarização, você ataca o pilar fundamental do Império. Contra as invasões bárbaras, usam-se todas as armas.

Pausa para ressalva que deveria ser desnecessária: nada justifica a absurda interferência estrangeira em assunto doméstico, tampouco a atuação de brasileiros contra os interesses econômicos e financeiros de seu próprio país em nome de projeto familiar. Retomo.

Donald Trump persegue instável equilíbrio, talvez impossível: quer enfraquecer o dólar para reindustrializar os Estados Unidos, ao mesmo tempo que mantém sua moeda como grande referência de reserva de valor global. A recente aprovação do Genius Act em favor das stablecoins, com exigência de lastro em títulos de dívida dos Estados Unidos, é representação emblemática da estratégia. Enquanto fomenta as criptos, Trump garante demanda compulsória por Treasuries e por dólar.

Até aqui, nesse objetivo específico, tem obtido êxito. A moeda americana perde valor contra as principais divisas do mundo. Depois de ter se valorizado em julho, o dólar voltou a cair com vigor, empurrado por duas forças principais. A primeira delas associada a indicadores econômicos mais fracos. Como consequência, o mercado antecipou para setembro a projeção de cortes do juro básico pelo Fed, com potenciais três reduções ainda neste ano. Com o prognóstico de juros mais baixos, a moeda se enfraquece.

O outro elemento decorre do aumento da incerteza jurisdicional nos EUA, naquilo que John Authers, colunista da Bloomberg, chamou de processo de Bananification dos EUA, sua transformação numa república de bananas. Ou, para usar a expressão de Larry Summers, de “Argentinização dos EUA”, depois de Trump demitir a responsável pelos dados de emprego, imitando decisão anterior de Cristina Kirchner. Ou, ainda, como expressou Marcos Lisboa no -Estadão: “Os EUA imitam o Brasil” ao fechar sua economia e proteger a indústria local com tarifas, cujo resultado envolverá queda da produtividade americana.

Quando Trump adota medidas como essas, pressiona farmacêuticas por preços mais baixos, critica o presidente do Banco Central, ataca universidades americanas, se mostra um parceiro comercial errático e interfere em questões de soberania internacional alheias, ele irrompe contra instituições clássicas, formais ou informais, estruturantes dos EUA. Acaba machucando o dólar. Quem manterá a integralidade de suas reservas internacionais diante de tantas incertezas e de falta de previsibilidade?

Historicamente, um dólar fraco sempre foi uma força poderosa correlacionada com ciclos positivos, duradouros e profundos de mercados emergentes. Aos fatores exógenos se soma elemento doméstico importante para reforçar o prognóstico construtivo: a antecipação para o final de 2025 do ciclo de afrouxamento monetário, num processo que penetraria o ano de 2026, quando, potencialmente, o Copom poderia cortar a taxa Selic em todas as suas reuniões.

No momento da escrita destas linhas, as expectativas de inflação recuam pela 11a semana consecutiva. O IPCA de julho veio notadamente abaixo das projeções, com dinâmica interna favorável. A economia emite os primeiros sinais de uma desaceleração mais intensa. O prognóstico anterior sugeria o início do ciclo de queda da Selic só em 2026, com uma taxa terminal em torno de 13%. Agora, já não seria surpresa vê-la abaixo de 12% no final do próximo ano. Se a Selic em alta foi fator determinante para o grande bear market (tendência de baixa) dos ativos de risco locais desde julho de 2021, o que deveríamos esperar num cenário de juros em queda? Este corolário é um tanto mais animador…

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