Revista Exame

A Ditadura Acabada relata fim do regime militar. Leia trecho

Leia trecho de A Ditadura Acabada, último livro da série de 5 volumes do jornalista Elio Gaspari sobre o período militar. O foco, agora, é o governo Figueiredo


	Posse de Sarney: ele não vivera, nem viveria, um único dia na oposição
 (Orlando Brito/Exame)

Posse de Sarney: ele não vivera, nem viveria, um único dia na oposição (Orlando Brito/Exame)

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Da Redação

Publicado em 8 de junho de 2016 às 05h56.

São Paulo — A partir da primeira semana de junho, começa a chegar às livrarias A Ditadura Acabada, quinto livro da série escrita pelo jornalista Elio Gaspari sobre os 21 anos em que os militares mandaram e desmandaram no Brasil. As quatro primeiras obras — A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Derrotada e A Ditadura En­curralada — foram publicadas entre 2002 e 2004.

O livro lançado neste mês coloca um ponto final na aclamada série, que já vendeu 500.000 exemplares. A Ditadura Acabada começa com a queda do então ministro do Exército, Sylvio Frota, em 1977, descreve todo o governo de João Baptista Figueiredo e termina com a eleição de Tancredo Neves e a posse de José Sarney em 1985.

No final do livro, há uma seção com uma pequena biografia de 500 pessoas que tiveram papel de destaque. Além do próprio Sarney, estão lá nomes que ainda têm enorme influência na cena política, como Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e José Serra. EXAME publica com exclusividade a introdução do livro:

Quando a notícia da rebelião do general Olympio Mourão Filho chegou à Vila Militar do Rio de Janeiro, na manhã de 31 de março de 1964, o capitão Heitor Ferreira e o tenente Freddie Perdigão encontravam-se no quartel do 1º Regimento de Reconhecimento Mecanizado, o famoso RecMec.

Tinham cursado juntos a Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman. Perdigão, de 26 anos, era um oficial comum, corpulento, bom atirador, e mantinha-se longe das movimentações políticas daqueles dias. Um ano mais velho, Heitor era um capitão napoleônico.

Primeiro aluno de sua turma na Aman, combatera na guerra de telefonemas da crise da renúncia de Jânio Quadros, em 1961, e gravitava em torno dos coronéis e generais hostis ao governo do presidente João Goulart. Ao meio-dia, a tropa do I Exército foi colocada de prontidão. Ambos seguiram para o Ministério da Guerra. Heitor saiu de jipe.

Alistado na revolta, foi ao encontro do general Golbery do Couto e Silva, seu mentor. Perdigão, cumprindo ordens, saiu de tanque para defender a legalidade, protegendo o quartel-general. À noite, à frente de cinco blindados M-41, ele guarnecia a entrada do Palácio Laranjeiras, onde estava o presidente. Seus tanques simbolizavam a força que defenderia o governo.

A pouco mais de 1  quilômetro, no Palácio Guanabara, sede do governo do estado, estava Carlos Lacerda, o principal adversário de Goulart. Defendendo-o, havia centenas de pessoas mal armadas, com lenços azuis no pescoço, temerosas de um ataque das tropas legalistas.
O governo Goulart e seu dispositivo militar ruíram como um castelo de cartas no início da tarde de 1º de abril.

Perdigão abandonou o posto, pois o I  Exército capitulara. Também nada havia a defender. Goulart fora-se embora para Brasília. Às 4 da tarde, a coluna do tenente parou diante do Palácio Guanabara, simbolizando o triunfo militar da sublevação. Puseram-lhe um lenço azul e fizeram-lhe alguma festa, mas esse personagem discreto sumiu. Nunca mais se ouviu falar em Perdigão.

O episódio só era rememorado numa fotografia emoldurada que ele mantinha em sua sala de trabalho. Heitor rodara pela cidade e vira os festejos pela vitória da revolta, com rojões e papéis picados: ‘Creio que foi a mais nítida sensação de felicidade da minha vida’. Dezessete anos depois, na noite de 30 de abril de 1981, Heitor completaria uma década de poderes palacianos.

O capitão do RecMec fora assistente do general Golbery, que fundara o Serviço Nacional de Informações (SNI). Mais tarde, ele se tornaria o poderoso secretário particular dos presidentes Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo. A extensão de seu prestígio podia ser medida por sua moradia oficial: vivia na granja do Riacho Fundo, que fora a residência predileta dos generais Emílio Médici e Geisel.

O capitão de 1964 saíra do Exército para o poder. Aos 45 anos, mandava mais que a maioria dos ministros e tinha assento na Executiva Nacional do partido do governo. A ditadura produziu poucos quadros que, tirando a farda, tiveram semelhante desempenho na política.
Perdigão não sumiu de todo. Também foi um dos notáveis quadros da geração de tenentes que conheceu o poder em 1964.

Ficou no Exército e chegou a tenente-coronel. Fez a carreira no porão da ditadura e nos desvãos de sua anarquia militar. Pelo nome, era um desconhecido. Evitava fotografias e, passados 50 anos, não se conhecia sua fisionomia. Sua fama era a dos Doutores do Centro de Informações do Exército (CIE), do SNI e do Destacamento de Operações de Informações (DOI).

Na ‘Casa da Morte’ de Petrópolis, no Rio de Janeiro, era o Doutor Roberto. Na agência do SNI do Rio de Janeiro, era o Doutor Flávio. Em 1968 estivera ao volante com oficiais do CIE que punham bombas em teatros e livrarias. Num tiroteio com militantes da Ação Libertadora Nacional, foi baleado numa perna e no peito. Uma bala ficou alojada no seu tórax e ele contava que a extraíra numa sessão espírita.

Mancava, padecendo de dormências. ‘Era a intempestividade em pessoa’, segundo o major Paulo Malhães, seu colega do CIE. Na noite de 30 de abril de 1981, Perdigão era Aloisio Reis e atirou uma bomba na direção da casa de força do centro de convenções Riocentro, no Rio de Janeiro. Lá, uma organização de fachada do Partido Comunista realizava um espetáculo musical para uma plateia de 10.000 pessoas.

A implosão da ditadura

Pouco antes, outra bomba explodira no estacionamento, dentro de um Puma. Detonada acidentalmente, matara Wagner, o sargento Guilherme Pereira do Rosário, que a tinha no colo, e estripara Doutor Marcos, o capitão Wilson Machado, chefe da seção de operações do DOI carioca. Desde 1977, dezenas de bombas já haviam explodido em diversas cidades.

Na maioria dos casos, danificaram bancas de jornal. No único atentado letal, em 1980, uma carta-bomba matou a secretária do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Semanas antes da explosão do Riocentro, colocaram bombas no carro e na casa do deputado oposicionista Marcelo Cerqueira, numa gráfica do Rio de Janeiro e em bancas de jornal de Belém.

Na reunião da tarde da cúpula do governo, no dia 27 de abril, o general Golbery, chefe do Gabinete Civil do presidente Figueiredo, mencionou ‘um atentado contra a filha do marechal Cordeiro de Farias’. Veterano de insurreições militares desde 1924, Cordeiro comandara a artilharia da Força Expedicionária Brasileira, governara Pernambuco e Rio Grande do Sul.

Ministro do Interior na infância da ditadura, tornara-se um defensor da abertura do regime. Na manhã seguinte à explosão no Riocentro, Heitor telefonou para Figueiredo, informando-o do ‘fato gravíssimo’. O presidente disse-lhe: ‘Até que enfim os comunistas fizeram uma bobagem’. Logo soube que se enganara. A bobagem não fora dos comunistas.

Nas explosões do Riocentro comprovou-se materialmente que havia um núcleo terrorista dentro do regime, na estrutura militar da repressão política. Perdigão, símbolo da vitória de 1964, estava na cena final da desmoralização da ditadura e do governo de Figueiredo, um general que chegara ao Planalto convivendo com as duas faces do regime.

A bomba do DOI dividiria as Forças Armadas e provocaria o rompimento de Golbery com Figueiredo. Depois dela, o presidente e o regime não seriam mais os mesmos. Nos quatro volumes anteriores desta série tratei do amanhecer do regime (A Ditadura Envergonhada), da sua radicalização (A Ditadura Escancarada), do início da abertura política (A Ditadura Derrotada) e do seu declínio (A Ditadura Encurralada).

Este volume, o último, trata do seu final. Nele, vão contadas duas histórias. Uma, a dos últimos 14 meses do governo Geisel, do dia seguinte à demissão do ministro do Exército, general Sylvio Frota, em outubro de 1977, a março de 1979, quando a Presidência foi entregue a Figueiredo.

Na outra, trato do governo Figueiredo com suas três explosões: a da bancarrota econômica, que começou em 1979; a do Riocentro, de 1981; e a da rua, com a campanha das Diretas Já, iniciada dois anos depois. Finalmente, com seu grande final, a construção da candidatura de Tancredo Neves e sua eleição para a Presidência.

Distintos, esses episódios se superpuseram e, em março de 1985, a ditadura estava econômica, militar e politicamente acabada. No epílogo, são contadas as vidas de 500 pessoas que nela viveram e viram seu final. Nesse período, Figueiredo é um personagem central. Patético e errático, o último dos generais deixou o poder pedindo que o esquecessem.

Conseguiu, e a narrativa dos seus seis anos de governo acumula fracassos para os quais contribuiu a figura folclórica que ajudou a construir. São raros os casos em que um gesto constrói, ou destrói, a imagem de um político. Na manhã de 24 de agosto de 1954, Getulio Vargas saiu da vida e entrou para a história matando-se.

Noutra manhã, a de 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros destruiu-se renunciando à Presidência. Numa decisão tomada entre a noite de 14 de março de 1985 e a manhã seguinte, Figueiredo faltou à cena final de seu governo. Num gesto infantil, recusou-se a passar a faixa presidencial a José Sarney e deixou o Palácio do Planalto por uma porta lateral.

Embaçou seu melhor momento, a entrega do poder a um civil. O cavalariano estourado mutilou a biografia do presidente. Devem-se a ele a condução da anistia de 1979, a lisura das eleições diretas para os governos estaduais de 1982 e o desfecho de um processo atabalhoado que encerrou o consulado militar. Não foi pouca coisa.

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