Manifestação pró-Bolsonaro em São Paulo: o conservadorismo deve ser o grande vencedor desta eleição | Bruno Rocha/Fotoarena/Estadão Conteúdo / (Bruno Rocha/Estadão Conteúdo)
Leo Branco
Publicado em 11 de outubro de 2018 às 05h56.
Última atualização em 11 de outubro de 2018 às 06h16.
O resultado do primeiro turno em Santa Catarina é um claro exemplo da guinada radical à direita que a política brasileira está dando nesta eleição. Os 5 milhões de eleitores catarinenses deram a Jair Bolsonaro a maior votação proporcional do Brasil: 66% do total. Das dez maiores cidades catarinenses, que concentram a riqueza e a população mais escolarizada do estado, em apenas quatro o militar reformado teve menos de 70% dos votos.
A onda conservadora aglutinada na campanha de Bolsonaro quebrou todos os padrões eleitorais locais, até então dominado por dois grandes grupos que remontam à divisão política do regime militar — num lado, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB); no outro, partidos derivados da antiga Arena, como Partido Social Democrata (PSD) e Partido Progressista (PP). O Partido Social Liberal (PSL), de Bolsonaro, até 7 de outubro era um nanico. Agora, fez 20% dos 16 deputados federais pelo estado e virou a segunda maior força no legislativo catarinense, com seis eleitos. O candidato a governador pelo PSL, o coronel reformado do Corpo de Bombeiros Carlos Moisés da Silva, o Comandante Moisés, que até pouco tempo era um mero espectador da política, amealhou 1 milhão de votos e agora disputa o segundo turno contra o deputado estadual Gelson Merísio, do PSD, um veterano da política local.
Na esfera nacional, o PSL saiu de apenas um deputado federal eleito em 2014 para 52 agora, formando a segunda maior bancada, após a do PT, com 56 cadeiras. É provável ainda que o PSL atraia parlamentares que, oportunisticamente, venham a trocar de legenda. Se somada à expansão de siglas identificadas com o jargão “liberal na economia e conservador nos costumes”, tão ouvido por apoiadores de Bolsonaro nesta campanha, como Novo, Partido Social Cristão (PSC), Partido Republicano Brasileiro (PRB), Democratas e Patriota, serão 130 deputados nessa nova onda conservadora — o dobro do que essas legendas receberam em 2014.
O que explica a onda conservadora? Em boa medida a resposta está em valores culturais do brasileiro comum — e exacerbados entre os catarinenses. Eles foram explorados com maestria pelas novas caras da direita nas eleições de 2018, numa tentativa de contrapor o discurso petista de intervencionismo na economia e de mão forte do Estado no campo social.
Um deles é o apoio ao mérito da iniciativa individual sobre as conquistas coletivas. Não à toa, Santa Catarina é talvez o estado mais empreendedor do país: estão ali dez das 100 melhores cidades para manter um negócio, mesmo índice de São Paulo, segundo ranking da consultoria Urban Systems publicado em EXAME. O estado é ainda o que menos depende de Bolsa Família. Junto da cultura empreendedora, é forte por ali a religiosidade: só três em 100 catarinenses se declaram ateus, a menor taxa do país.
Em tempos em que o antipetismo ganha força na esteira dos escândalos de corrupção revelados pela Lava-Jato e da frustração com a recessão legada pela ex-presidente Dilma Rousseff, criou-se espaço para o conservadorismo ser o vencedor destas eleições. “Chegamos a um duplo movimento: um voto conservador nos costumes e antissistema na política. A esquerda perde mais, nesse processo, simplesmente porque comandou o jogo nos últimos 20 anos”, diz o cientista político Fernando Schüler, pesquisador da escola de negócios Insper.
Ao longo das eleições até agora, boa parte da opinião pública estampada na imprensa e em redes sociais refletiu o temor de a nova direita ameaçar a democracia brasileira. Em meio à polarização típica da disputa eleitoral, faltou espaço para entender, de fato, quem são e de onde vieram essas novas caras da direita que agora ocupam parte expressiva da política brasileira. Não se trata de um bloco monolítico. Há uma boa parcela que trocou trajetórias bem-sucedidas na iniciativa privada pela missão pública.
É o caso da maioria dos oito deputados eleitos pelo Novo: no grupo, há de microempreendedores, como a paulistana Adriana Ventura, dona de um estúdio de dança, a executivos como Paulo Ganime, com passagens por grandes companhias, entre elas a anglo-holandesa Shell e a francesa Michelin. Nos estados, o partido estreante em eleições conseguiu o feito notável de colocar no segundo turno da disputa ao governo de Minas Gerais o empresário Romeu Zema, presidente do conselho do Grupo Zema, com negócios em setores como lojas de móveis, de eletrodomésticos, concessionárias e postos de gasolina, com receita anual de 4,5 bilhões de reais. “Desde o início, a gente propôs um jeito diferente de fazer política — sem políticos tradicionais e sem usar dinheiro público na campanha — e a população brasileira respondeu a isso, em favor da renovação”, afirma Moisés Jardim, presidente nacional do Novo. “Não estamos em torno de um único nome. Para nós, o importante são as ideias e os valores, o que garantirá a perenidade do partido.”
Há uma importante parcela da nova direita que, como Bolsonaro, é proveniente da caserna: 72 militares ou policiais foram eleitos deputados federais, estaduais e senadores, quatro vezes o número da eleição passada, com a bandeira de um combate mais duro à criminalidade. Ao grupo da ordem unida se soma uma fatia de ex-juízes que usam o discurso da moralidade na política como alavanca. Wilson Witzel, do PSC, agora líder nas pesquisas ao governo do Rio de Janeiro, é o caso mais emblemático dessa corrente. Por fim, há celebridades que ganharam notoriedade no impeachment de Dilma Rousseff, como o ator Alexandre Frota e o ativista Kim Kataguiri, fundador do Movimento Brasil Livre, eleitos para a Câmara, e a jurista Janaína Paschoal, que recebeu mais de 2 milhões de votos para uma vaga na Assembleia Legislativa de São Paulo.
A nova direita avança sobre as três grandes forças políticas da redemocratização: MDB, PT e PSDB, que, somados, encolheram 35% no Congresso desde a eleição de 2014. “Esses partidos saem chamuscados porque não souberam interpretar o sentido de mudança, de conter as arbitrariedades na política”, diz o cientista político Bolívar Lamounier, da consultoria Augurium.
Chama a atenção a sangria do PSDB, que em 2019 terá pouco mais da metade dos deputados que elegeu há quatro anos. O domínio do partido em estados como Paraná, Pará e Mato Grosso evaporou. Pela primeira vez desde 1994 um presidenciável tucano não vence no primeiro turno ou chega ao segundo turno. Agora, o partido vive a crise da falta de liderança, evidenciada pelo arranca-rabo público entre o ex-governador paulista Geraldo Alckmin e o atual candidato ao Palácio dos Bandeirantes João Doria. Em reunião do partido no último dia 9 para decidir se o PSDB apoiaria formalmente um dos postulantes ao segundo turno, Alckmin acusou Doria, a quem colocou na política, de ser “temerista”, numa referência à especulação de que Doria tramara com o presidente Michel Temer uma candidatura à Presidência em 2018.
Sob o trauma do encolhimento da legenda e das incertezas que rondam o comando do partido, o PSDB tenta encontrar um caminho que não o anule como força de oposição, de um lado e de outro. “Hoje, o PSDB não consegue construir nem uma narrativa para se aliar ao PSL, nem um discurso para compor com o PT, numa crise de identidade difícil de conter”, afirma Lucas Arko, sócio da consultoria política Arko.
A saída que se avizinha para os que estão encolhendo é juntar forças, diante do risco de desaparecer nas próximas eleições por causa da cláusula de barreira. O dispositivo foi aprovado na minirreforma política em 2017 e deve limitar o número de partidos nanicos ao restringir o acesso a financiamento público, já que as doações de empresas foram proibidas. A manutenção do equilíbrio de forças — ou a simples garantia da sobrevivência — deve impulsionar a temporada de fusões e aquisições entre legendas em breve.
Ainda restam dúvidas sobre como será o comportamento dessa nova elite política daqui em diante. Mais especificamente, não está claro se as lideranças vão comprar o pacote completo da mensagem bolsonarista, que inclui uma agenda de reformas liberais para melhorar o ambiente de negócios, ou vão restringir a atuação a pautas do campo de costumes, como a redução da maioridade penal ou a liberação do porte de armas.
Nesse ponto, os sinais são conflitantes. Boa parte das cabeças legislativas desse movimento representa corporações de funcionários públicos que teriam poucos incentivos para empreender uma agenda modernizante do Estado, como uma reforma da Previdência. “Bolsonaro precisará conquistar o apoio dessas corporações para fazer frente à forte oposição que terá dos partidos tradicionais. Não vejo como ele poderá propor reformas que atinjam os interesses delas”, diz o jurista Carlos Ari Sundfeld, professor de direito constitucional na Fundação Getulio Vargas.
E não é só isso. A nova força política terá de se colocar perante um eleitorado que se comporta, muitas vezes, de modo contraditório. Diz querer um Estado brasileiro mais enxuto, mas é contra as privatizações. É contra os privilégios, mas não apoia uma reforma na Previdência. Dos 23 deputados federais que votaram a favor da Proposta de Emenda à Constituição que modifica as regras para concessão de aposentadorias e pensões na Comissão Especial da reforma, apenas cinco foram reeleitos. Já entre os 14 que se opuseram, dez renovaram o mandato por mais quatro anos.
Sobe e desce
Garantir a coesão de interesses tão diferentes será um desafio enorme. Uma falha daqui em diante pode significar o esvaziamento da influência obtida até agora. É algo semelhante ao que já aconteceu no passado por aqui com agremiações como o Partido da Renovação Nacional, que, em 1989, elegeu o ex-presidente Fernando Collor de Mello. O PRN tornou-se um movimento político relevante, mas acabou murchando com o impeachment de Collor, três anos mais tarde. Hoje, renomeado Partido Trabalhista Cristão, tem apenas dois deputados federais. Mesmo em democracias consolidadas, o sobe e desce de influência política é uma das poucas certezas do jogo. Basta lembrar que, a cada eleição, uma porção de agremiações surge em países como Itália e Alemanha e morre logo em seguida por não sustentar o apoio popular por muito tempo.
Algumas particularidades da campanha de Bolsonaro pesam contra a perenidade da avalanche conservadora destas eleições. A começar por certo jeitão meio espontâneo, meio amador, com que a nova direita vem ganhando adeptos até aqui. Sinal eloquente disso foi a transmissão ao vivo feita no Facebook na noite de 7 de outubro, em que um Bolsonaro ainda visivelmente abatido após o ataque sofrido um mês antes leu um texto para agradecer a boa votação no primeiro turno em meio a uma mesa com pilhas de papéis desarrumados, iluminação precária e um Paulo Guedes estático ao lado.
Por outro lado, houve a declaração do segundo colocado Haddad, feita minutos antes em um hotel de São Paulo, num púlpito ao lado da mulher, Ana Estela, e rodeado de lideranças de campanha, como a candidata a vice, Manuela D’Ávila, e a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Acompanhada por toda a imprensa, a cerimônia passou a impressão de que o petista havia sido o grande vencedor do dia. “Esse tipo de improviso, digno de uma ‘Organização Tabajara’ [paródia do humorístico Casseta e Planeta, da TV Globo, que fez sucesso nos anos 90], é o maior risco de Bolsonaro daqui para frente”, diz um cientista político com acesso à equipe de assessores do militar.
A personalidade forte de Bolsonaro também não ajuda. Por causa das declarações radicais, o militar reformado poderá ter dificuldade em aglutinar interesses diferentes a seu redor, uma necessidade de primeira hora num país grande e diverso como o Brasil. É o que fizeram o tucano Fernando Henrique Cardoso e o petista Luiz Inácio Lula da Silva, os presidentes com o legado mais transformador para o país desde a redemocratização. Nesse sentido, Bolsonaro pode seguir o caminho de José Sarney, Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff e acabar sendo atropelado na articulação política.
“Bolsonaro escuta cabeças liberais, como a do economista Paulo Guedes, mas também a de um monte de gente que não é liberal. A dúvida é se ele consegue articular todos os interesses”, diz Sergio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados. Essa questão de identidade da direita pode ficar mais fácil num cenário, hoje improvável, de um retorno do PT à Presidência com Haddad. Aglutinado na oposição ao petismo, o grupo deve causar mais barulho do que já vem fazendo e ganhar mais reforços nas eleições municipais daqui a dois anos. Até lá, algo já é certo: os interesses do brasileiro comum, representados na guinada à direita destas eleições, mudaram para sempre a cara da nossa democracia. A ver se para melhor ou para pior.
Com reportagem de Natália Flach
Para o historiador argentino Carlos Malamud, esta é uma disputa que vai se resolver mais pela rejeição aos candidatos do que pelas ideias que eles defendem | Leo Branco, de Madri
O historiador argentino Carlos Malamud, de 57 anos, é um atento seguidor dos movimentos da política da América Latina há pelo menos três décadas. Professor de história política latino-americana em diversas universidades da região, atualmente Malamud é o principal pesquisador do Real Instituto Elcano, um centro de pesquisas políticas sediado em Madri e apoiado pela família real espanhola. Malamud vê com preocupação os rumos da disputa eleitoral brasileira. Para o especialista, a votação deste ano é a mais polarizada da história da democracia no país. No fim das contas, levará a melhor a narrativa que enfrentar a menor rejeição entre o eleitorado — seja o antipetismo de Jair Bolsonaro, seja o alegado compromisso democrático de Fernando Haddad.
Qual tem sido a dinâmica da eleição brasileira de 2018?
É uma eleição que vai se resolver mais pelo voto negativo do que pelo positivo. Será mais sobre o rechaço ao PT do que o apoio a algum projeto político. Do mesmo modo que o voto em Haddad está alinhado ao desprezo à figura de Bolsonaro. Isso contribuiu para que a taxa de rejeição de Haddad aumentasse rapidamente e se igualasse à de Bolsonaro. No fim das contas, será eleito quem provocar menos repulsa na população. A preocupação é que esse sentimento se espalhe por outras democracias da América Latina.
Qual o reflexo deste momento no próximo governo?
Quem ganhar vai encontrar um Parlamento muito fragmentado, mais deslocado para a direita do que o Parlamento atual, com uma agenda mais ligada a valores. Nenhum dos dois candidatos vai conseguir empreender as reformas necessárias para tirar o Brasil da paralisia atual. Haddad tem um inimigo em casa, que é o próprio PT, contrário a reformas na economia e a mudar o jeito de fazer política. Bolsonaro não confrontou suas propostas com as dos demais candidatos nem fez acenos para uma moderação, e isso deve dificultar uma articulação no Congresso, caso vença.
Como entender o fenômeno de Bolsonaro?
Em parte, tem a ver com a ideia de que os eleitores estão buscando um salvador da pátria, assim como buscaram em Lula no passado. Mas existem novos componentes: desde o impeachment de Dilma Rousseff, o partido ficou mais radical. O PT adotou um discurso de vitimização, de achar que está sendo punido não pelo que fez, mas pelo que é. Isso criou um oxigênio para um tipo como Bolsonaro.
Por que ele tem tanto apoio?
Por um lado, há o fortalecimento das igrejas evangélicas, cada vez com mais poder e dinheiro no Brasil e na América Latina, de maneira geral. Veja a eleição na Costa Rica, em que o evangélico Fabricio Alvarado quase ganhou as eleições presidenciais neste ano. Há ainda uma baixa confiança nas instituições democráticas. Além disso, há a emergência de uma figura como a do presidente americano Donald Trump, adepto do confronto.
Como seria Bolsonaro em relação a Trump?
É certo que tentará ter uma excelente relação com Trump, o que pode render um tratamento preferencial ao Brasil em termos comerciais. Mas há um paradoxo aqui. De maneira ainda inexplicável, o novo presidente mexicano, o esquerdista Andrés Manuel López Obrador, conseguiu obter uma relação boa até agora com Trump. Prevejo que será diferente com Bolsonaro. Enquanto Trump funciona como um elemento moderador às tendências mais de extrema esquerda do mexicano, no caso brasileiro, Trump deverá estimular as tendências mais extremo direitistas de Bolsonaro, sobretudo em relação às posturas intolerantes com o politicamente correto.
Para o cientista político Fernando Schüler, os partidos de centro-esquerda falharam na conexão com a massa de eleitores. Resultado: os conservadores ocuparam o espaço | Leo Branco
O cientista político gaúcho Fernando Schüler é otimista com a democracia brasileira. Pesquisador de políticas públicas na escola de negócios Insper, em São Paulo, Schüler entende a boa votação de candidatos ligados à pauta do presidenciável Jair Bolsonaro no primeiro turno como o fracasso da narrativa social-democrata que reinou no Brasil desde a redemocratização. Para ele, a centro-esquerda não captou os anseios da classe trabalhadora brasileira num cenário de economia que anda de lado e um Estado que mal cabe dentro de si. Longe de significar uma aventura autoritária, a onda conservadora deve revitalizar a própria democracia brasileira. Na entrevista a seguir, Schüler explica por que até mesmo a esquerda, agora combalida, deve sair beneficiada num eventual governo Bolsonaro.
O Brasil que saiu das urnas é mais conservador?
A democracia brasileira saiu mais complexa e completa. Não vejo que os brasileiros estejam mais conservadores. O caso é que, por duas décadas, tivemos uma polarização limitada entre PT e PSDB. Os dois partidos são genéricos na tradição social–democrata. Narrativas políticas alternativas foram historicamente mal representadas. O pensamento liberal era marginalizado, mas agora veio para o centro do jogo. O mesmo ocorre com um certo conservadorismo de costumes, que não devemos confundir com a grande tradição conservadora associada à defesa de direitos e à prudência política. A verdade é que nossa elite política, bem representada pelo PT e pelo PSDB, se descolou do pensamento do homem comum brasileiro. Ocorre que agora a tecnologia lhe deu poder, e ele deu o troco, encerrando um ciclo político hegemônico desde o início da redemocratização.
Quem é esse homem comum brasileiro?
É o tipo trabalhador, que valoriza o mérito individual e valores que em geral associamos ao conservadorismo cultural. Achei interessante quando a própria pesquisa realizada pelo PT na periferia de São Paulo revelou que as pessoas sonham em abrir um pequeno negócio e colocar o filho numa escola privada. A maioria é contra a liberação do aborto, das drogas e prefere cotas sociais a cotas raciais. As pessoas cansaram do politicamente correto e dos excessos das ações afirmativas. Isso se confunde com um enfado, com o sistema político tradicional. Entra aí um pacote difuso de questões que vão do dinheiro público nas campanhas até a corrupção. Ou seja, um voto conservador nos costumes e antissistema na política. A esquerda perde mais nesse processo porque comandou o jogo nos últimos 20 anos, mas não se trata de uma questão ideológica tradicional.
A guinada conservadora traz algum risco à democracia?
É falsa a retórica de que estamos à beira do fascismo ou de que há riscos à democracia. Qualquer ameaça ao estado democrático de direito, seja num governo Bolsonaro, seja com Haddad, seria imediatamente rechaçada pelas instituições. Regulação da mídia não passa no Congresso. E, se passar, cai no Supremo. Retrocesso em direitos individuais, o mesmo caso. O Brasil tem uma imprensa livre, sociedade civil organizada e Judiciário independente. E a democracia nunca teve tanto apoio popular como tem hoje.
Há o risco de que essa onda conservadora acabe com a voz da esquerda no Brasil?
Suspeito que ocorrerá o contrário: a voz da esquerda e das chamadas minorias vai ganhar ainda mais força numa eventual gestão Bolsonaro, que deverá enfrentar muito desgaste dentro e fora do governo para implantar boa parte da agenda de cunho liberal do economista Paulo Guedes. Num contexto diferente, é o que ocorreu durante o regime militar. Os militares comandavam a política, mas a esquerda se fez hegemônica na cultura, na academia, na sociedade civil e mesmo no sistema político. O desenho da Constituição de 1988 refletiu isso, em boa medida. A política tem um elemento pendular. A esquerda pode retomar seu vigor em um eventual governo Bolsonaro.
Como será a relação de um eventual governo Bolsonaro com o Congresso?
O Congresso terá uma inclinação mais liberal. Em tese, isso melhora o ambiente para a agenda de reformas. Lideranças importantes da esquerda, como Requião (MDB-PR) e Lindbergh Farias (PT-RJ), não conseguiram se reeleger. Além disso, teremos, pela primeira vez, uma bancada explicitamente liberal, com o partido Novo, e não teremos legendas tradicionais da esquerda, como o PCdoB, que não ultrapassou a cláusula de barreira. E há o PSL, que se converte na segunda maior bancada. Tudo isso soma na direção da agenda de Paulo Guedes. O problema é que se mantém a dispersão partidária, mesmo com a cláusula de barreira. Estamos na era da vetocracia, conceito criado pelo cientista político americano Francis Fukuyama. O poder disperso dificultando a formação de consensos e a governabilidade.
Qual será o futuro dos partidos políticos tradicionais, como o PT, o PSDB e o MDB?
Todos saíram muito enfraquecidos. Nos anos 80, o PMDB chegou a eleger mais de 300 deputados federais. Agora, o partido sai com pouco mais de 30. PT e PSDB também encolheram. Tudo isso mostra a vitalidade da nossa democracia. A sociedade está empurrando o sistema para a reforma política e partidária que há tanto tempo se discute. O chamado centro político, juntando setores de PSDB, PPS, PSB, MDB, pode originar uma nova alternativa social-democrática. E quem sabe surja um grande partido liberal-conservador em torno de Bolsonaro e suas novas lideranças. Dado o pragmatismo político ainda reinante no Brasil, isso não é fácil. O ponto é que precisamos avançar na reforma política.
O que esperar do segundo turno entre Bolsonaro e Haddad?
O PT insistirá na retórica do “risco democrático”, o discurso do medo, com a ideia de que estamos à beira de uma guinada fascista. Bolsonaro, por outro lado, vai insistir na retórica do “risco PT”, colocando no centro do jogo a crise de 2015/2016, a Lava-Jato, o mensalão, o petrolão e toda a história que conhecemos. O risco real nisso tudo é a discussão programática, que de fato interessa, ficar de novo fora do debate eleitoral.