Revista Exame

Além das entregas: Rappi e concorrentes querem se tornar um "super app"

A pandemia acelerou a corrida por um superaplicativo. A Rappi tem uma estratégia única: entra em todas as frentes ao mesmo tempo. Vai dar certo?

Superapps: pandemia acelerou a corrida por um superaplicativo que “resolva a vida” dos consumidores brasileiros (Ana Matsusaki/Exame)

Superapps: pandemia acelerou a corrida por um superaplicativo que “resolva a vida” dos consumidores brasileiros (Ana Matsusaki/Exame)

TL

Thiago Lavado

Publicado em 24 de setembro de 2020 às 06h00.

Última atualização em 25 de setembro de 2020 às 19h13.

Uma revolução marcou o mercado de smartphones na China e há anos é esperada em outras regiões e países mundo afora: a do superaplicativo. A ideia consiste em reunir diferentes serviços em um único app, combinando desde programas que são usados com muita frequência (como os aplicativos de mensagem) até os que são abertos só de vez em quando, como os de lojas online.

O resultado é um único aplicativo polivalente, que resolve a vida pessoal sem que o usuário tenha necessidade de mudar de plataforma. Até as compras em lojas físicas podem ser pagas com o app, substituindo o cartão de crédito ou débito. Esse é um modelo que triunfou na Ásia em duas vertentes.

De um lado, há aplicativos como WeChat, espécie de WhatsApp chinês que permite contratar serviços, fazer pagamentos, comprar diversos produtos, trabalhar e usar redes sociais. Do outro, está o AliPay, subsidiária da Ant Financial, um braço do gigante Alibaba, e que permite fazer investimentos, empréstimos bancários e compras.

Na América Latina, uma guinada rumo ao super app é a ambição da colombiana Rappi, que tem uma das maiores ofertas de produtos e serviços “sob o mesmo teto”. A Rappi está agora entrando em novas frentes. O aplicativo, conhecido pelas entregas de comida e de compras, passa a contar com venda de passagens, de viagens e de produtos de entretenimento, como lives (os shows ao vivo pela internet) e músicas por streaming.

O chamado live shopping, que permite comprar produtos enquanto eles são anunciados por influenciadores ao vivo, também é uma aposta. Atualmente, a empresa conta com entregas de supermercados, farmácias e restaurantes, além da oferta de pagamentos pelo Rappi Pay, compras de diferentes tipos de produto em lojas parceiras e uma gama de serviços, desde a venda de ingressos até o aluguel de guarda-chuvas. Para a Rappi, a novidade pode significar mais tempo dos usuários dentro do aplicativo, o que significa mais interação e mais vendas.

China: o país passou por uma revolução financeira e aplicativos de pagamento fazem parte do cotidiano de pessoas e empresas (Jason Lee/Reuters)

(Arte/Exame)

A Rappi surgiu em 2015 e foi fundada pelos colombianos Sebastian Mejía, Felipe Villamarin e Simón Borrero (atual presidente), que já tinham uma startup que oferecia uma ferramenta digital para que supermercados pudessem criar lojas online. Com essa experiência, fundar a Rappi foi um pulo.

A empresa recebeu aportes de fundos famosos no mercado de tecnologia, como Andreessen Horowitz, Sequoia e DST Global, do bilionário russo-israelense Yuri Milner. Esses fundos estão por trás das maiores empresas de tecnologia do planeta. Em 2019, a Rappi fez uma quarta rodada de investimentos e levantou 1,2 bilhão de dólares, a maior parte aportada pelo conglomerado japonês SoftBank — uma cifra rara até para o abastado mercado de tecnologia.

Hoje, a startup está em 205 cidades de nove países da América Latina: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, México, Peru e Uruguai. São mais de 7 milhões de usuários e 4.000 funcionários em toda a região. O Brasil, onde está uma das três sedes da empresa, é o maior mercado, mas a Rappi é forte também na Colômbia (com 27 cidades) e no México (com 31), onde estão localizadas as outras duas sedes.

No Brasil desde 2017, o aplicativo cresce a todo vapor. No último ano, ele passou de 20 cidades para 119. O isolamento na quarentena ajudou. As vendas de produtos na plataforma, sem contar as entregas de restaurantes, cresceram quatro vezes em junho. A operação de atendimento aos clientes cresceu 50% nas primeiras três semanas da pandemia. E o número de usuários com mais de 65 anos quase triplicou.

Foi nesse cenário que o executivo Sérgio Saraiva entrou na empresa em janeiro de 2020 como presidente para o Brasil, depois de décadas de experiência na cervejaria Ambev (e mais tarde no grupo AB InBev) e na adquirente Cielo. “O desafio que aceitei era pegar uma empresa que tinha uma solução e dar corpo e estrutura, sistema de gestão e fechar alianças e parcerias para esse grande ecossistema”, diz Saraiva.

(Arte/Exame)

A lógica da Rappi na construção do aplicativo é conhecida e largamente usada: um teórico ganha-ganha entre usuários, parceiros (restaurantes, mercados e outros estabelecimentos) e entregadores. A Rappi faz a intermediação e cobra uma taxa sobre as vendas. E, com a ideia de se tornar um superaplicativo, o objetivo é levar a mesma lógica para o mercado de passagens, viagens e entretenimento.

“As entregas de ‘qualquer coisa’ cresceram de forma impressionante, porque é uma maneira fácil de solucionar um problema”, diz Saraiva. “Queremos resolver 100% da vida do usuário dentro do aplicativo.” O aporte bilionário de 2019, segundo o executivo, tem sido usado para consolidar o conceito de super app e investir no desenvolvimento dessas novas funcionalidades.

Atualmente, a startup tem se estruturado para funcionar como se fossem várias empresas menores dentro de uma grande companhia: cada uma das ofertas de produtos e serviços, as chamadas verticais, tem uma equipe dedicada e pensada para a construção de um grande aplicativo. A participação dessas equipes é tão importante que Saraiva pediu aos responsáveis pelas diferentes funcionalidades que estivessem junto dele para as fotos desta edição.

Sérgio Saraiva, presidente da Rappi no Brasil (ao centro, de óculos) e equipe: times dedicados para cada um dos serviços (Germano Lüders/Exame)

Para Saraiva, embora a Rappi esteja em mais de uma centena de cidades no país, o aplicativo ainda não chegou de fato ao interior. Está presente mais nas principais capitais e nas cidades com número elevado de habitantes — o que significa que ainda há espaço para crescer. Por isso, um dos esforços é criar estruturas regionais de trabalho.

“Não foi moleza, ainda estamos muito focados nisso. Criamos diretorias regionais, que ganharam corpo e pegaram velocidade”, diz o executivo. “As regionais estão cada vez mais independentes, operando como uma empresa da região. Isso facilita a tomada de decisão, a priorização e a alocação de pessoas. E a gestão como um todo.”

O problema: ninguém sabe quanto custa ser relevante em dezenas de frentes no Brasil e na América Latina. A conta tende a ficar mais cara. A Rappi se posiciona de uma maneira que não aconteceu nem na China. Os grandes nomes do mercado por lá tiveram sucesso, primeiro, com um negócio específico. O WeChat, por exemplo, era um app de mensagens amplamente utilizado, como o WhatsApp. Já o Alipay cresceu na onda do comércio eletrônico do Alibaba. A Rappi nasceu com a ambição de ser um superaplicativo já em seu DNA.

A aposta é que o usuário prefira ocupar espaço no smartphone com um só app e evitar ter de se cadastrar em inúmeras plataformas. Apesar disso, o app ainda não tem uma característica importante dos super apps da China: a frequência. Um aplicativo de conversas, como o WeChat, é aberto diversas vezes ao dia, algo que não acontece com os aplicativos de entregas.

De acordo com Saraiva, que morou na China por cinco anos, a Rappi sabe que esse não é um desafio simples. “Estamos buscando frequência e, por isso, lançamos agora os novos serviços. Existe uma série de verticais possíveis para engajar o usuário. Começamos com duas delas. Agora estamos pegando velocidade.”

A Rappi tem pressa para se tornar um super app porque sabe que compete contra gigantes. Varejistas que dominam o e-commerce há anos, como Magazine Luiza e B2W (que detém Americanas, Submarino e Shoptime), fizeram aquisições de aplicativos de entregas em 2020. O Magazine Luiza comprou o app Aiqfome, especializado em fazer entregas de restaurantes em cidades no interior do Brasil, enquanto a B2W fechou negócio pelo Supermercado Now, de entregas de compras. Até mesmo a adquirente Stone entrou na jogada com um investimento na gaúcha Delivery Much.

Ao mesmo tempo, outros aplicativos de delivery, como iFood e Uber Eats, ampliaram o leque de serviços. O iFood, que fez 1 milhão de entregas ao dia no pico do isolamento social, comprou o SiteMercado, que oferece uma plataforma para supermercados venderem por aplicativo. O Mercado Livre, mesmo sem aquisições, também vem lançando uma enorme variedade de serviços, puxado pela sua frente de pagamentos, o MercadoPago.

De acordo com um executivo do setor, mesmo com o dinheiro dos investimentos, a Rappi deve ter dificuldades em brigar com gigantes como Magazine Luiza e Americanas. “A Rappi é a mais agressiva, mas não é líder em nenhuma das verticais. Eles são muito bons, pegaram todo mundo desprevenido, andaram super-rápido, mas não têm uma vantagem competitiva óbvia”, diz.

Além do aumento nas entregas durante a pandemia, houve um fortalecimento do comércio eletrônico. Entre março e maio, o faturamento do setor saltou 52%, de acordo com os dados da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm) em parceria com a empresa de análise de risco Konduto.

Esse é um fator que fortalece a Rappi, já que a empresa tem se colocado também como uma plataforma de e-commerce, com prazos de entrega baixíssimos, medidos em minutos e horas em vez de dias. Mas a expansão das vendas online também favorece os concorrentes já estabelecidos no e-commerce, que podem ganhar corpo e tomar o mercado da ­Rappi.

“A gente vê [a concorrência] de forma natural”, diz Saraiva. “Muitas empresas entraram, mas em algum momento esses novos entrantes ou vão se consolidar ou vão sair. Tem de ser competente nas verticais. Ter foco no cliente e ter um time que consiga conciliar várias experiências ao mesmo tempo”, diz o executivo.

A ameaça do WhatsApp

Além da briga que já acontece entre startups e entre gigantes do varejo, outro fantasma ronda o mercado no Brasil: é um eventual fortalecimento do Whats­App como um superaplicativo. O mensageiro, que pertence ao Facebook de Mark Zuckerberg, é o serviço mais onipresente na vida dos brasileiros que têm smartphones.

São mais de 120 milhões de usuários no país — um dado já defasado, pois foi divulgado pela empresa em 2017. O aplicativo também é um gigante globalmente, com mais de 1,5 bilhão de usuários em todo o mundo. O WhatsApp já tem, há alguns anos, contas específicas para empresas.

Até o momento, o WhatsApp apenas ensaiou uma entrada na briga dos super apps: anunciou que teria meios de pagamento, em parceria com a adquirente Cielo e com a bandeira de cartão de crédito Mastercard.

Além da briga que já acontece entre startups e entre gigantes do varejo, outro fantasma ronda o mercado no Brasil: é um eventual fortalecimento do Whats­App como um superaplicativo

O projeto consistia em permitir transferências via cartão de débito entre os bancos parceiros, inicialmente Banco do Brasil, Sicredi e Nubank, e poderia destravar ainda mais potencial com a chegada do Pix, nova ferramenta de transferência de fundos do Banco Central.

Apesar disso, o projeto do Whats­App foi suspenso para análise regulatória. Como o aplicativo já é amplamente usado como principal meio de comunicação, o sistema para efetivar vendas poderia alavancar o WhatsApp nos mesmos moldes em que o WeChat fez na China.

Segundo fontes ouvidas pela EXAME, uma eventual entrada do WhatsApp nos meios de pagamento pode não só consolidar a posição do mensageiro como um super app mas também mudar o mercado de apps de entregas, eliminando intermediários. Porém, o Facebook teria hesitação em tomar a medida, em parte porque isso significaria uma mudança no modelo de negócios da empresa, que hoje está no mercado de publicidade digital. “Se a integração acontecer, será um problema para os aplicativos”, diz um executivo.

Sérgio Saraiva, da Rappi, diz que a empresa não tem um posicionamento sobre, eventualmente, o WhatsApp se tornar um super app concorrente. Apesar disso, ele acredita que o Pix deva ser mais transformador do cenário nacional do que o Facebook. “Acho que vai democratizar, retirar custos e facilitar a vida”, diz.

A possibilidade de pagar pelo WhatsApp escancara ainda outro ponto: o destino final dos super apps é se tornar uma espécie de fintech. Os que têm sucesso hoje são não só meio de pagamento e compras online mas também carteira digital e uma plataforma de investimentos, empréstimos e outros serviços financeiros. A Rappi não segue o caminho das fintechs no Brasil, mas a estratégia é adotada em outros países. Em junho, a startup fechou parceria com o banco Banorte, no México, onde metade da população é desbancarizada, para oferta de serviços financeiros.

Escritório do iFood antes da pandemia: o isolamento impulsionou as vendas por aplicativos de entrega e pelo e-commerce (Leandro Fonseca/Exame)

A Rappi pode também surpreender no meio financeiro, segundo um executivo do setor. A empresa tem investimentos do conglomerado japonês SoftBank e, caso feche parceria com alguma das empresas investidas pelo grupo — Loggi, Banco Inter, por exemplo —, ou com uma grande fintech, pode despontar dos concorrentes.

Embora a Rappi esteja engajada na criação de um superaplicativo na América Latina, é preciso reconhecer que a região tem um mercado bem diferente do asiático. Dados compilados pela agência We Are Social apontam que há maior conectividade deste lado do globo, mas as vendas online são mais difundidas na Ásia.

Lá, houve ainda um fenômeno de interação diferente com o dinheiro: a China pulou do dinheiro físico para o pagamento por aplicativo diretamente, sem passar pelos cartões. Entra na conta ainda a mão forte do governo chinês para manter concorrentes estrangeiros do lado de fora, permitindo que o mercado local cresça sem interferências.

De acordo com Amyris Fernandez, professora de design de experiência do usuário na Faculdade de Informática e Administração Paulista (Fiap), é fácil para o usuário ter tudo em um único aplicativo, mas é difícil desenvolver um programa assim. Requer recursos, pessoas especializadas e investimentos.

Para ela, ainda é preciso levar em conta a curva de aprendizado de um aplicativo desse tipo, ainda mais no Brasil, onde há pessoas com diferentes níveis de familiaridade com o meio digital. “Este é o xis da questão: ser capaz de atender a um público com um leque tão distinto. A verdade é que, quanto mais funcionalidades, maior a chance de não dar certo”, diz.

Esses são desafios que a equipe da Rappi afirma estar preparada para enfrentar. A empresa investe em cada uma das funcionalidades e, segundo Saraiva, os times são dedicados e a empresa está disposta a escutar os usuários. “Nossa obsessão pelo super app é diária. Estamos no Brasil para o longo prazo, estamos e vamos continuar investindo em processo, em parcerias”, diz. Para a Rappi, e para o Brasil, a busca pelo super app está apenas começando.

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