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A coisa mais importante: uma análise sobre as obras de Howard Marks (ou não)

Poucas coisas são mais transformadoras para um investidor do que surfar um ciclo de mercado. E nenhuma variável é mais relevante do que o juro

Se há uma boa notícia nas últimas semanas, é a possibilidade material de antecipação da queda dos juros no Brasil. Sua relevância ainda parece subdimensionada (Andriy Onufriyenko/Getty Images)

Se há uma boa notícia nas últimas semanas, é a possibilidade material de antecipação da queda dos juros no Brasil. Sua relevância ainda parece subdimensionada (Andriy Onufriyenko/Getty Images)

Publicado em 22 de março de 2023 às 06h00.

Howard Marks é um daqueles raros pensadores e escritores capazes de reunir erudição, rigor técnico e popularidade. É também um grande frasista, autor de pérolas como: “Capitalismo sem falência é como catolicismo sem inferno: não funciona”. A rede de proteção social e empresarial foi ampliada universalmente, de modo a abarcar todo mundo, fomentando o risco moral. Mesmo países próximos ao pleno emprego estimulam novas políticas de auxílio emergencial ou renda mínima (o Brasil entre eles). Autoridades monetárias e fiscais salvam empresas e bancos zumbis.

"Vamos socializando o sistema, tendo como desdobramento queda da produtividade agregada"
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As obras de Howard Marks e suas "ironias"

Para encerrar a apresentação do famoso gestor, vale mencionar a alcunha de “guru de Warren ­Buffett”. Isso porque o maior investidor de ações da história certa vez afirmou que parava suas atividades no instante em que recebia os memorandos de Howard Marks. Além de seus belos memorandos, Howard tem um livrinho de que gosto muito, chamado A Coisa Mais Importante. O título descreve uma ironia e uma "autozoação". Relendo seus escritos, o próprio autor chegou à conclusão de que, em diversas situações, afirmara: “A coisa mais importante em investimentos é…” E essa tal coisa mais importante mudava conforme a situação. No livro, cada capítulo descreve uma coisa “mais importante” — e temos duas dezenas de capítulos.

O sujeito tem ainda outro livro, de título Dominando o Ciclo de Mercado. Então, pense comigo: temos 20 capítulos como “uma coisa mais importante” e um livro inteiro dedicado aos ciclos de mercado. Ora, então me permito a conclusão de que a coisa mais importante é o próprio ciclo de mercado! Os ciclos representam a dinâmica essencial da natureza. As estações do ano, as fases da Lua, a maré, sístole e diástole, euforia e depressão. O capitalismo sobrepuja qualquer outro sistema econômico-social até hoje proposto possivelmente porque ele emana a natureza e sua seleção natural.

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O que seria a coisa mais importante para determinar os ciclos de mercado?

Poucas coisas são mais transformadoras para um investidor do que surfar um ciclo de mercado. E o que seria a coisa mais importante para determinar os ciclos de mercado? Se precisássemos escolher uma só variável, certamente apontaríamos para o juro. Para que o argumento seja explorado em sua completude, partimos do múltiplo Preço sobre Lucro, a métrica talvez mais simples e mais usada para a determinação do que é barato e caro em bolsa.

O primeiro efeito do juro se traduz em um alívio na despesa financeira das empresas. A empresa tem lá uma dívida atrelada ao CDI; quando os juros caem, ela passa a pagar menos para o banco e sobra mais dinheiro para o acionista ou para investir em crescimento. O lucro aumenta. Uma redução da taxa de juro também implica maior demanda agregada naquela economia. Os investimentos em capital físico são muito sensíveis aos juros e também todo o consumo a prazo.

Na fração Preço sobre Lucro, portanto, o denominador aumenta bastante quando o juro cai, de modo que, ceteris paribus, a relação cai. Um Preço sobre Lucro mais baixo significa uma ação mais barata e, portanto, mais atraente, com maior retorno potencial à frente.

A coisa fica ainda mais interessante porque os juros menores retiram a atratividade de investimentos em renda fixa. Você demora muito menos tempo para ver o capital dobrando se o juro for 13,75% diante do que seria com a Selic a 2%. Por arbitragem, ou seja, para que exista um equilíbrio entre os retornos projetados para as ações e para a renda fixa, os múltiplos da bolsa precisam também subir quando os juros caem. É como se você topasse pagar mais pelo mesmo lucro corporativo, já que a renda fixa não está mais tão atraente. Com a renda fixa pagando menos, você aceita pagar um pouco mais caro na bolsa. Essa é a ideia central.

Então, não bastasse a grande sensibilidade do lucro ao juro, o próprio múltiplo Preço sobre Lucro também aumenta. Em termos práticos, só há uma forma de chegarmos a esse resultado: o Preço (o numerador dessa fração) tem de aumentar muito, porque o denominador está subindo e a razão toda também. Curto e grosso, as ações são extremamente sensíveis a alterações das taxas de juro. Sobem muito quando há afrouxamento monetário; caem bastante nos momentos de elevação da Selic.

Queda de juros no Brasil

Não foi coincidência a catálise do processo de financial ­deepening no Brasil quando a Selic bateu a mínima de 2% ao ano. Vendo seus rendimentos em renda fixa perdendo da inflação, investidores correram para a B3, em muitas situações apenas seguindo a manada e sem a devida preparação, mas essa é outra história. Mais recentemente, com o juro básico indo a 13,75%, voltamos ao paraíso do CDI. Honramos o apelido de país dos rentistas e, honestamente, quem poderia dizer que está errado?

Se há uma boa notícia nas últimas semanas, é justamente a possibilidade material de antecipação da queda dos juros no Brasil. Sua relevância ainda parece subdimensionada. Somos treinados a pensar linearmente e de maneira bem-comportada. A história mostra, porém, que os ciclos de mercado desencadeados por mudanças de patamar das taxas de juro são muito mais intensos do que nossas cabecinhas limitadas gostam de supor ex-ante.

Os sinais de desaceleração da economia vêm mais pronunciados do que se supunha. A inflação arrefece na margem. O Ministério da Fazenda, ainda que esteja lutando uma guerra inglória contra outros participantes do governo, reconhece o problema fiscal, se esforça para corrigi-lo e mantém excelente diálogo com os técnicos do Banco Central. Talvez ainda mais emblemático seja o reconhecimento pelos players mais relevantes do próprio mercado financeiro dos perigos vividos pela situação creditícia no Brasil.

"A ideia chegou aos ortodoxos, ao Olimpo da Faria Lima e do Leblon. Admitem-se os sinais, ainda que incipientes, de um credit crunch."

O debate sobre a queda da Selic encontra elementos técnicos, tal como deve ser. A discussão amadureceu. As condições materiais e objetivas começam a ser colocadas na mesa. O mercado tende a antecipá-las. Podemos elencar uma série de catalisadores para o mercado de ações brasileiro. Certamente, todos eles serão legítimos. Os discursos sofisticados e cheios de anglicismos encantam multidões. No final, porém, uma variável manda: o juro.

Sem ilusões, contudo. A Selic não pode subir ou cair na marra. Ela há de ser resultado das condições materiais da economia e, em especial neste momento, da construção de um arcabouço fiscal crível e consistente. Quando tive a oportunidade de conversar com Howard Marks, perguntei-lhe o que, no final do dia, diferenciava o investidor hábil em capturar oportunidades verdadeiras daquele incapaz de desviar de armadilhas. Ele respondeu: “Não há fórmula pronta; sempre estaremos dependentes da capacidade de julgamento individual”. Foi uma lição valiosa. Serve para investidores e para presidentes da República.

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