Revista Exame

A classe C cai na rede

Nos últimos três anos, mais de 45 milhões de brasileiros pertencentes à nova classe média passaram a acessar a internet.

Simone Reis, a carioca que vende até lingerie da Victoria's Secret pela internet: sua receita com a web é o dobro do salário como ajudante de cozinha em um restaurante (Eduardo Monteiro/EXAME.com)

Simone Reis, a carioca que vende até lingerie da Victoria's Secret pela internet: sua receita com a web é o dobro do salário como ajudante de cozinha em um restaurante (Eduardo Monteiro/EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 25 de agosto de 2011 às 15h03.

Todo dia ela faz tudo sempre igual. Moradora de Duque de Caxias, na baixada fluminense, a carioca Simone Reis, de 35 anos, acorda de madrugada com o céu ainda escuro. Às 6 da manhã, está à espera do ônibus que vai levá-la até o pequeno restaurante, onde trabalha como ajudante de cozinha em troca do salário mínimo de 510 reais.

Simone é uma típica representante da nova classe C brasileira. Sua família — formada pelo marido, um vendedor de produtos de limpeza, mais quatro filhos — tem renda mensal de cerca de 3 000 reais. Nos últimos três anos, os Reis financiaram um automóvel de quatro portas, fizeram uma pequena reforma em sua casa, compraram um notebook e passaram a pagar um plano de acesso à banda larga da internet. O contato com o mundo digital transformou a rotina e o modo de vida de Simone.

Hoje, antes de sair de casa acompapara o trabalho, ela checa os e-mails e recados deixados em sua página no Orkut, a rede social mais popular do Brasil, com mais de 29 milhões de usuários. É pela internet que chegam os pedidos de cosméticos da Natura, da Avon e de lingeries e cremes da marca americana Victoria’s Secret que Simone começou a vender há três meses.

Com as vendas online, Simone ganha cerca de 1 000 reais mensais — o correspondente a um terço de sua renda familiar. "Sempre que necessário, mostro os produtos pela webcam e tiro dúvidas pelo serviço de mensagens instantâneas", diz Simone. "Só não vendo a minha família. O resto vai tudo pela internet."

Histórias como a de Simone têm se tornado cada vez mais comuns no enorme contingente que hoje compõe a classe C, uma massa de 95 milhões de brasileiros com renda familiar entre 1 126 e 4 824 reais por mês, segundo critério da Fundação Getulio Vargas. O surgimento e o crescimento da nova classe média — equivalente a cerca de metade da população brasileira — talvez sejam a grande história a ser contada pelo país desde o processo de estabilização da moeda, no início dos anos 90.


Seu impacto para a economia e para as empresas, que tiveram de reinventar produtos e aprender a trabalhar com o crédito, ainda não pôde ser completamente dimensionado. Agora o que se vê é a sobreposição desse fenômeno a outro, igualmente poderoso e transformador: a progressiva digitalização do país. Mais rápido do que muitos analistas esperavam, o estrato social formado por Simone Reis e por outros 95 milhões de brasileiros caiu na rede, rendeu-se à internet.

Estima-se que, nos últimos três anos, 45 milhões de pessoas da classe C tenham passado a acessar a rede, a maior migração já vista em direção a uma única mídia desde a chegada da televisão ao país, nos anos 50. Em 2006, 65% dos usuários de internet no Brasil pertenciam às classes A e B, ao passo que 29% eram da classe C. No ano passado, essa diferença diminuiu significativamente. As classes A e B passaram a responder por 50% do total de acessos, ante 42% da classe C. "A internet nunca mais será a mesma", diz Renato Meirelles, da consultoria Data Popular. "Essas pessoas possuem um perfil específico."

Um estudo inédito elaborado pela agência de publicidade americana Razorfish, obtido com exclusividade por EXAME, ajuda na compreensão desse fenômeno. Durante pouco mais de três meses, uma equipe de nove profissionais da Razorfish acompanhou o cotidiano de sete famílias da classe C na Grande São Paulo para descobrir seus hábitos na internet.

Quanto tempo eles gastam navegando? O que procuram? Como se comportam? De onde acessam? E mais importante: o que compram e o que deixam de comprar? As observações foram cruzadas com os dados de uma pesquisa com 4 000 entrevistados em todo o Brasil. O resultado é uma fotografia preciosa da influência da web na classe social que mais cresce no país.

Os computadores com acesso à internet passaram a fazer parte da vida de 40% desses consumidores — em 2006, esse número não passava de 13%. O uso de celulares aumentou 10 pontos percentuais nesse período, chegando a 88% dos entrevistados.

E, pouco a pouco, essas novas formas de comunicação se aproximam de meios de comunicação líderes de audiência entre a classe média brasileira — a TV e o rádio, com 99% e 88% de penetração, respectivamente, situação que permaneceu praticamente inalterada desde 2006.


"O acesso à rede tornou-se algo essencial na vida dessas pessoas", diz Fernando Tassinari, presidente da Razorfish no Brasil e um dos coordenadores da pesquisa. "O computador é atualmente um dos principais eletrônicos da casa."

É essa mudança de comportamento que explica a multiplicação de internautas que se conectam à web da própria residência. Hoje, 33% dos usuários acessam a internet de casa, ante 19% em 2006, segundo dados da consultoria Cetip, especializada em tecnologia. O caso da família Gonçalves, em São Paulo, é um exemplo dessa nova realidade.

Juntos, Antônio Marcos, um eletricista de 32 anos, e Paula Regina, uma atendente de telemarketing de 36, contam com uma renda mensal atual de pouco mais de 1 200 reais (o valor foi reduzido 500 reais desde que Paula ficou desempregada, há dois meses). Eles moram com os dois filhos numa casa de 30 metros quadrados no Jardim Neide, na extrema zona sul da capital paulista. Clientes habituais de lan houses, Antônio Marcos e Paula decidiram há cerca de dois anos investir na compra do próprio computador.

Para isso, economizaram os 600 reais de entrada ao longo de um ano inteiro e quitaram o restante em dez prestações de 60 reais cada uma. A constante disputa dos familiares pelo aparelho, no entanto, fez com que o casal optasse pela compra de um segundo computador no início deste ano — desta vez, um laptop de 999 reais (a exemplo do primeiro, este também foi parcelado em dez vezes).

O acesso à web custa à família outros 40 reais por mês. "Entre consertar nossa máquina de lavar e garantir mais um ponto de internet na casa, ficamos com a internet", diz Paula. "Desligamos a geladeira à noite para economizar energia. Mas não podemos ficar desconectados do mundo. Hoje, tudo acontece na rede."

Para entender o comportamento da classe C na internet é preciso, antes de mais nada, compreender o funcionamento desse grupo na vida real. Os integrantes da classe C tendem a reproduzir na web o mesmo sistema de redes de ajuda que permeia seu cotidiano offline.

“Nas comunidades mais carentes, todo mundo se ajuda, seja indicando um conhecido para um emprego, seja avisando uma comadre sobre uma promoção”, diz a antropóloga Luciana Aguiar, diretora da consultoria Plano CDE, especializada em pesquisas de mercado para a baixa renda. "É por isso que eles costumam ser mais ativos nas redes sociais do que as classes A e B, por exemplo.”


Foi o que descobriu recentemente a subsidiária brasileira da americana Kraft Foods. Para promover seu novo chocolate Mini Bis entre os jovens de classe C, a empresa criou um aplicativo para um dos joguinhos mais populares do Orkut, o Colheita Feliz. Cada um dos participantes recebeu uma semente virtual de cacau, que se transformava em árvore após 48 horas.

Mas, como esse "ativo" poderia ser "roubado" por outros usuários da rede social (a brincadeira fazia parte de uma campanha com o mote "Desconfie de todos"), acabou tornando-se um viral em menos de uma semana. Mais de 70% dos usuários do Orkut — ou cerca de 20 milhões de pessoas — interagiram de alguma forma com o jogo. "Foi uma de nossas campanhas com melhor custobenefício", diz Eduardo Caldas, diretor de marketing de chocolates da Kraft. "Uma campanha tradicional custaria pelo menos 20 vezes mais caro."

Consumo

Embora ainda seja utilizada de maneira esmagadora para trocas de e-mails e participação em redes sociais, a internet vem sendo cada vez mais encarada como um canal de compras por esses novos consumidores — e é aqui que esse fenômeno pode fazer toda a diferença.

Um levantamento realizado pela consultoria Data Popular com 2 000 pessoas mostra que 68% dos integrantes da classe C usam a rede para pesquisar preços, número próximo aos 82% das classes A e B. É bem verdade que o número de compras online realizada pela nova classe média ainda é pequeno se comparado ao topo da pirâmide — a classe C respondeu por apenas 7% das transações realizadas na rede em 2009, ante 55% das classes A e B.

O avanço do varejo eletrônico nesse extrato social, porém, é notável. No ano passado, quase 40% de todos os consumidores que fizeram sua estreia no mundo das compras virtuais pertenciam à nova classe média. Artigos como computadores e geladeiras encabeçaram a lista de compras, que gerou um tíquete médio de 321 reais, apenas 12% abaixo da média do mercado.


O site de pesquisa de preços BuscaPé é um termômetro dos efeitos dessa inserção digital maciça. De 2008 para cá, a ferramenta que oferece a possibilidade de ordenar as buscas segundo o número e o valor das parcelas, algo vital para a radicalógica de compras da classe C, tornouse a segunda mais importante do site, das oito disponíveis, atrás apenas da ordenação por menor preço.

"Esse público chega à internet num momento em que as empresas estão mais preparadas para atendê-lo", diz Pedro Guasti, diretor da E-bit, consultoria especializada em comércio eletrônico. "As classes A e B passaram por um lento processo de aprendizagem. Com a classe C acontece tudo ao mesmo tempo."

O paulistano Clayton Guilherme Ferreira, de 31 anos, vive exatamente esse processo. Coordenador de transportes da Procuradoria Geral da União, Ferreira foi promovido há três anos e passou a ganhar 2 200 reais mensais, ou dois terços da renda da família, formada pela mulher e pela filha de 2 anos. Com a promoção, decidiu que era hora de instalar acesso à internet em seu computador.

Seu maior objetivo era navegar na rede em busca de material complementar ao curso noturno de administração de empresas que ele havia iniciado na Faculdade Jabaquara. Ferreira adorou a novidade. Começou a pesquisar preços na internet antes de ir às compras, a falar com os amigos pelos sistemas de mensagens eletrônicas e até a marcar os jogos de futebol semanais com os amigos pelo Orkut.

Neste ano, reforçou a vida online com um laptop e um BlackBerry — comprados pela internet — e hoje estima passar pelo menos 10 horas por dia conectado à web. Animado com as primeiras experiências, Ferreira decidiu radicalizar. Uma de suas aquisições mais recentes feitas pela internet foi uma série de peças de automóveis, incluindo bateria, rolamentos e um cabo de freio, para seu Stilo, ano 2003.

"No começo eu tinha uma desconfiança enorme", diz Ferreira. "Mas fui percebendo que as coisas chegavam direitinho. Agora, faço tudo pela rede." A mudança de comportamento da classe média provocada pelo acesso à internet foi mensurada numa recente pesquisa realizada pelo TNS Research a pedido do Google Brasil.


. Ao comparar a conduta dos internautas da classe C com a dos usuários das classes A e B (os chamados early adopters de novas tecnologias), verificou-se que a internet já é a principal fonte de pesquisa de preços para 52% dos usuários emergentes, ante 63% daqueles no topo da pirâmide. "Os vídeos postados em sites como o YouTube permitiram que a classe C visualizasse o funcionamento dos produtos sem precisar ir às lojas", diz Leonardo Tristão, diretor de negócios para tecnologia do Google. "Agora, basta ir à rede e procurar por opiniões de outros usuários nas redes sociais."

Como no mundo físico, a opinião de amigos ou conhecidos tem um impacto gigante na escolha dos novos consumidores digitais. E isso é capaz de alterar muito da velha lógica do varejo. Em outubro de 2009, o Magazine Luiza reformulou sua "assistente virtual", transformando-a na jovem Lu — uma moça de 20 e poucos anos que explica na tela do computador o funcionamento de eletrônicos e eletrodomésticos disponíveis no site. (Uma tentativa evidente de transformar Lu num personagem empático a esse novo consumidor.)

Ao mesmo tempo, a empresa dobrou para 15 000 o número de itens disponíveis em sua loja online. Foi o suficiente para aumentar em 90% o faturamento do site no primeiro semestre deste ano em comparação com o mesmo período de 2009 — a expectativa do Magazine Luiza é que as vendas online atinjam 840 milhões de reais neste ano, ante 550 milhões de reais em 2009.

Para algumas companhias, os resultados da aproximação com a classe C pela web trouxeram resultados ainda mais animadores. Há cerca de três anos, uma pesquisa realizada pela incorporadora de imóveis Goldfarb, hoje controlada pela PDG Realty, mostrou que 70% de seu público, a esmagadora maioria de classe C e com idade entre 28 e 35 anos, não apenas possui computadores como também costuma buscar a maior parte das informações sobre imóveis na internet.

Com base nesse levantamento, a Goldfarb passou a destinar 25% de sua verba publicitária para ações na rede, como anúncios em sites de notícias e jornais locais. É mais do que o destinado a propagandas em jornais. Hoje, das cerca de 2 000 vendas mensais da Goldfarb, pelo menos 400 começam na internet. "A tendência é que nossa presença na rede cresça cada vez mais", diz Milton Goldfarb, presidente da empresa.


Usar a internet para se informar, conversar com amigos e comprar são, sem dúvida, conquistas importantes para o emergente público da classe C. O que muitos representantes desse público estão começando a descobrir agora é o enorme potencial da web como multiplicadora da renda — a carioca Simone, que vende cosméticos pela rede e abre esta reportagem, por exemplo, já começa a sentir no bolso esse tipo de benefício.

Em casos mais extremos, a vida online pode ser sinônimo de mobilidade social. A tecnologia digital transforma-se, então, numa espécie de atalho ao empreendedorismo. Preste atenção na história do taxista paranaense Isaías da Silva, de 38 anos de idade, há sete morando em São Paulo. No ano passado, Silva adquiriu um BlackBerry por 400 reais, pagos em quatro parcelas à sua operadora. Ao mesmo tempo, contratou um plano de dados por cerca de 70 reais por mês.

Para compensar o aumento nos gastos, passou a trabalhar 2 horas a mais por dia. O investimento começou a dar retorno no momento em que Silva descobriu que poderia agendar corridas de táxi por e-mail.

O número de solicitações aumentou 65%, de 15 por semana para mais de 25. Com isso, sua renda familiar passou de 4 000 reais mensais para algo entre 5 000 e 6 000 reais, o equivalente aos rendimentos da classe B. "Foi o melhor investimento que fiz na vida", diz Silva. "Mudei até meu padrão de consumo. Há um mês, viajei com minha família para a Argentina."

Ao abrir as janelas do mundo e aumentar as possibilidades de crescimento, a internet se torna um bem a ser conquistado pela nova classe média brasileira, um extrato que busca avidamente continuar movendo-se para cima na pirâmide social.

A rede, para eles, há algum tempo deixou de ser um luxo para se transformar numa promessa de futuro. Vender essa promessa, portanto, tornou-se um grande negócio. No início deste ano, a Telefônica lançou uma série de planos de banda larga voltados para a classe C. Oferecidos a menos de 30 reais por mês por 1 mega de velocidade, eles foram os principais responsáveis pelo crescimento de 70% do Speedy, o maior índice da última década

. O volume de consumidores desse extrato social que migram para planos mais caros vem surpreendendo. De acordo com pessoas próximas à operadora, de janeiro para cá, mais de 30% deles adquiriram banda larga com o dobro de velocidade — e, obviamente, com preço mais alto (oficialmente, a empresa não confirma a informação). Esse apetite da baixa renda por internet é também o que explica a recente guinada do Grupo Multi, maior rede de ensino de idiomas do país, em direção ao segmento de computação.

De 2008 para cá, a empresa investiu 150 milhões de reais na aquisição de quatro redes de ensino de informática, entre elas a SOS Educação Profissional e a Microlins, e hoje soma mais de 100 000 alunos em todo o país. “Muita gente no Brasil nem sequer sabe ligar o computador, mas já entende que não terá futuro se não aprender a usá-lo”, diz Charles Martins, presidente do conselho de administração do Grupo Multi. Para a emergente classe C brasileira, o futuro, ao que parece, será cada vez mais conectado. E isso pode ser diferente de tudo o que vimos até agora.
 

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