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Por que Nova York — a cidade dos negócios — já nasceu global

Sozinha, a economia de NY gerou US$ 1,4 trilhão em 2014. O número a coloca entre as 10 maiores economias do mundo, perto do posto ocupado pelo Brasil

Ímã: os ícones de Nova York, como Times Square, atraem milhões de turistas | Moment/Getty Images /  (./Getty Images)

Ímã: os ícones de Nova York, como Times Square, atraem milhões de turistas | Moment/Getty Images / (./Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 5 de outubro de 2017 às 05h55.

Última atualização em 5 de outubro de 2017 às 05h55.

Em 2 de setembro de 1609, depois de cruzar o Atlântico, o capitão inglês Henry Hudson apontou seu navio para uma baía no nordeste do que hoje são os Estados Unidos e subiu o rio que nela desembocava. Hudson estava a serviço dos holandeses, e sua missão era encontrar uma nova rota para a China. Cerca de 150 quilômetros continente adentro, o rio não comportava mais a embarcação de 80 toneladas: o atalho para as riquezas orientais sonhado pelos europeus não passava por ali. Mas Hudson, que hoje dá nome ao rio, entendeu o potencial daquele porto remoto. A cidade de Nova Amsterdã, fundada em 1624 na ponta sul da ilha que viria a ser chamada de Manhattan, seria uma colônia diferente. Boston e Filadélfia foram estabelecidas para o exercício da liberdade religiosa. Nova Amsterdã, que 40 anos depois seria tomada pelos ingleses e rebatizada de Nova York, serviria para fazer negócios. A cidade mais global do mundo, de acordo com o mais recente ranking da consultoria A.T. Kearney, nasceu como uma subsidiária da Companhia das Índias Ocidentais, uma das primeiras corporações globais da história. Do comércio de peles no século 17 aos novos polos tecnológicos e acadêmicos que querem manter a relevância da maior metrópole americana no século 21, a história de Nova York é a história da globalização — e, se as iniciativas atuais forem bem-sucedidas, também será o futuro. 

Sozinha, a economia de Nova York gerou 1,4 trilhão de dólares de riqueza em 2014, segundo um cálculo do centro de estudos Brookings Institution. O número a coloca entre as dez maiores economias do mundo, perto do posto ocupado pelo Brasil — contando com uma população que é 4% da brasileira e, é claro, com recursos naturais incomparavelmente menores. A mítica Wall Street ainda domina a imagem de Nova York como centro financeiro, mas a cidade vem investindo para se posicionar também como um polo de inovação tecnológica. Nova York é a capital financeira do planeta, assim como também está na linha de frente quando se trata de tecnologia da informação e inovações voltadas para o consumidor final. Empresas como a produtora de conteúdo informativo BuzzFeed, a varejista de óculos Warby Parker e a fornecedora de refeições semiprontas Blue Apron têm valor de mercado acima de 1 bilhão de dólares. A loja virtual Jet.com, do outro lado do Rio Hudson, em Nova Jersey, foi comprada pelo Walmart por 3,3 bilhões de dólares.

Multicultural: ali está a maior concentração de chineses fora da Ásia | Getty Images (Dilvulgação/Getty Images)

Novas manufaturas

Nova York conta com mais de 7 000 startups, e uma das explicações para o crescimento da indústria digital é o ambiente oferecido pela cidade. Um dos melhores exemplos disso é a região conhecida como Navy Yards, no Brooklyn. Situada em frente ao distrito financeiro de Manhattan, na margem oposta do East River, a área de 800 000 metros quadrados foi durante décadas um grande estaleiro de navios de guerra. Hoje, o espaço é um nascente polo de tecnologia. Mais de 200 startups estão baseadas no Navy Yards. Ali, a New Lab, parceria público-privada que se concentra em startups de hardware, abriga cerca de 80 empresas iniciantes e oferece acesso a espaços de trabalho e a impressoras 3D de grande porte e outros maquinários. Essa nova geração da manufatura pode não gerar empregos nos mesmos níveis das fábricas do passado, mas, depois de décadas de retração, o número de postos de trabalho no setor voltou a crescer em Nova York: de 2011 a 2015 foram criados 3 000 empregos industriais. A agência de desenvolvimento econômico da cidade lançou em abril um programa conjunto com a New Lab para incentivar o desenvolvimento de tecnologias que resolvam problemas urbanos, em áreas como energia alternativa e segurança. “Queremos que as empresas não apenas produzam tecnologia em Nova York mas também a apliquem em Nova York”, disse numa entrevista recente Alicia Glen, vice-prefeita e responsável na administração municipal por 25 agências e órgãos de desenvolvimento econômico da cidade.

Outra parte essencial do plano é a estratégia para a educação. A cidade já conta com uma das melhores universidades americanas, a Colúmbia, e em setembro foi inaugurado o campus local da Cornell Tech, escola de pós-graduação com ênfase em tecnologia. A ideia  nasceu como uma competição. Universidades de ponta foram convidadas a apresentar propostas para a construção de um centro de ciências aplicadas em Nova York. Os vencedores, a renomada universidade Cornell, de Ithaca, no estado de Nova York, e o Technion, Instituto de Tecnologia de Israel, receberam 100 milhões de dólares e o terreno, em Roosevelt Island, uma ilhota entre Manhattan e o Queens, para montar uma escola de estudos avançados. “Empresas costumam ser criadas onde os fundadores estudaram”, afirmou na inauguração o ex-prefeito Michael Bloomberg, responsável pelo projeto. “Temos a chance de pegar um monte de gente com boa educação e criar a economia do futuro para Nova York.”

Opostos: Trump é de Nova York, mas não representa a médiados nova-iorquinos | Li Muzi Xinhua/Eyevine/Glow Images (Li Muzi Xinhua/Eyevine/Glow Images/Divulgação)

Mas o futuro de qualquer cidade global também depende do multiculturalismo e da diversidade, ideias em primeiro plano no mundo todo desde a vitória do Brexit, a retirada britânica da União Europeia, e a posse do nova-iorquino Donald Trump na Presidência americana — duas forças contrárias à pluralidade. Desde sua fundação, Nova York é uma cidade multiétnica e multirracial. Depois dos colonizadores holandeses e ingleses, vieram os negros, trazidos como escravos, e, mais tarde, imigrantes irlandeses, italianos e judeus. Nos séculos 19 e 20, desembarcaram as levas de imigrantes chineses e latinos. Hoje, mais de 200 línguas são faladas na cidade. Em bairros como Flushing, no distrito de Queens, ouve-se mais chinês do que inglês nas ruas (a região metropolitana de Nova York tem a maior concentração de chineses fora da Ásia). Os imigrantes continuam sendo parte essencial da vida na metrópole: mais de um terço dos 8,6 milhões de habitantes nasceu em outro país. O desafio será manter o delicado equilíbrio entre a abertura e a acolhida e o sentimento anti-imigrante hoje reforçado em partes dos Estados Unidos com a bênção de Trump.

A eleição para a prefeitura de Nova York acontece em novembro, e o atual prefeito, o democrata Bill de Blasio, é candidato à reeleição. Um dos pontos mais importantes de sua campanha é a inclusão dos imigrantes — ele é neto de italianos e alemães. De Blasio lançou há dois anos um programa de identificação para todos os moradores de Nova York, independentemente do status legal de imigração — estima-se que haja pelo menos meio milhão de imigrantes sem documentação na cidade. Mais de 1 milhão de nova-iorquinos acima de 14 anos já usam a carteira de identificação, e a iniciativa foi adotada por cidades como Chicago e Paris. “Temos a chance de definir uma nova normalidade, uma normalidade do bem, na qual sociedades inclusivas são reconhecidas como as mais produtivas, mais modernas e mais cheias de promessa”, disse De Blasio num evento recente.

Nova York também acompanha a expansão mundial do turismo. Em 2010, a cidade recebeu 9,7 milhões de visitantes internacionais; no ano passado, o total foi de 12,7 milhões. As controvérsias do governo Trump até agora não tiveram impacto significativo nos números, mas os sentimentos negativos despertados pelo presidente preocupam, de acordo com Fred Dixon, presidente da NYC & Company, empresa de capital misto responsável pelo turismo na cidade. “Nossas pesquisas indicaram uma mudança no sentimento em relação aos Estados Unidos depois do anúncio da primeira proibição de viagens”, afirma Dixon, em relação ao veto a cidadãos de alguns países de maioria muçulmana. As previsões da NYC & Company apontam que a antipatia gerada pelo novo presidente americano pode se manifestar nos números deste ano, especialmente no que diz respeito aos turistas da Europa Ocidental. “É claro que existem muitas opções de destinos além de Nova York”, diz Dixon. Ele esteve recentemente no Brasil e em outros países da América do Sul e disse ter ouvido manifestações de preocupação, especialmente de turistas da comunidade LGBT, com relação à intolerância nos Estados Unidos de Trump.

As circunstâncias externas, por outro lado, podem estar jogando a favor de Nova York. O Reino Unido tem menos de dois anos para se desligar da União Europeia, e uma das potenciais vítimas do Brexit pode ser Londres. No ranking das cidades mais globais do mundo, divulgado anualmente pela consultoria A.T. Kearney, Londres roubou a primeira posição de Nova York em 2016, mas, neste ano, a metrópole americana voltou ao topo. “É difícil projetar o impacto do Brexit, mas isso certamente é possível. Outras cidades europeias, e também Nova York, podem receber investimentos que seriam destinados a Londres”, diz Mike Hales, consultor da A.T. Kearney e um dos autores do estudo. “As iniciativas para acelerar as empresas digitais são o investimento certo para o futuro. É o mesmo que estão fazendo outras cidades americanas, tentando se aproximar de São Francisco.”

O futuro complexo imobiliário de Hudson Yards: a construção de edifícios comerciais e residenciais não para nunca em Nova York (Julie Jacobson/Glow Images//AP)

Muitos anos também vai durar a discussão sobre a desigualdade. O tema sempre esteve presente na cidade, e a história está repleta de exemplos. Em 1863, durante a Guerra Civil americana, ocorreram os mais graves distúrbios da cidade e do país, com um saldo de 120 mortos. Trabalhadores, em sua maioria irlandeses ou descendentes de irlandeses, destruíram edifícios públicos, atacaram as casas de abolicionistas e entraram em confronto com a população negra. Os distúrbios tiveram motivos raciais e econômicos. Os irlandeses não queriam competir com os negros por trabalho e, ao mesmo tempo, protestavam contra o recrutamento obrigatório para combater as forças do Sul escravagista — os cidadãos mais ricos tinham a opção de escapar da convocação pagando o equivalente a 9 000 dólares atuais.

Embora as tensões não sejam tão acirradas hoje, Nova York tem diferenças de renda extremas. Em um dos maiores projetos imobiliários da cidade em décadas, o Hudson Yards, o aluguel de um apartamento de dois quartos custa no mínimo 8 000 dólares por mês. A poucos quilômetros dali, no Bronx, está o distrito eleitoral mais pobre dos Estados Unidos. O número de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza em Nova York caiu um pouco nos últimos 12 meses, mas quase 19% da população ainda vive com renda anual abaixo de 19 000 dólares (para uma família de três pessoas). A cidade que ilustra como nenhuma outra a globalização ainda está devendo a solução para o problema da desigualdade.

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