Revista Exame

Airbnb gasta milhões de dólares para se livrar de 'pesadelos'

Sucesso na bolsa, o serviço de hospedagem Airbnb está gastando milhões de dólares — e recrutando equipes de elite — para fazer os pesadelos irem embora

O apartamento na Rua 37, em Nova York: episódio de estupro de uma hóspede no fim de ano de 2015 levou a um acordo de 7 milhões de dólares  (Jeff Brown/BLOOMBERG BUSINESSWEEK)

O apartamento na Rua 37, em Nova York: episódio de estupro de uma hóspede no fim de ano de 2015 levou a um acordo de 7 milhões de dólares (Jeff Brown/BLOOMBERG BUSINESSWEEK)

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Bloomberg

Publicado em 15 de julho de 2021 às 05h21.

Última atualização em 3 de agosto de 2021 às 06h42.

O apartamento do primeiro andar na Rua 37 Oeste, alguns quarteirões ao sul da Times Square, era popular entre os turistas — tão popular que um molho de chaves foi deixado no balcão de uma pequena loja de conveniência ali perto para os locatários do ­Airbnb pegarem.

Foi lá que uma australiana de 29 anos e um grupo de amigos as recolheram, sem necessidade de identificação, quando chegaram a Manhattan para comemorar o Ano-Novo em 2015. O apartamento havia sido anunciado no Airbnb, embora a maioria dos aluguéis de curto prazo seja ilegal em Nova York. A cidade, estimulada por poderosos sindicatos hoteleiros, estava em guerra com a empresa, que anunciava milhares de apartamentos nos cinco distritos, a despeito dos mais rígidos regulamentos de locação do país. 

Logo depois dos festejos de Ano-Novo, a jovem deixou as amigas no bar onde estavam comemorando e voltou sozinha para o apartamento. Ela não percebeu nada de errado nem viu o homem dentro de casa, escondido na penumbra enquanto ela entrava no banheiro. Apenas percebeu que não estava sozinha quando a lâmina de uma faca de cozinha estava apontando para ela. O estranho a agarrou, empurrou-a para a cama e a estuprou. Havia muita gente na rua, bêbados comemorando do lado de fora, mas a mulher estava com muito medo de gritar.

O assaltante fugiu com seu celular, mas ela conseguiu entrar em contato com seus amigos pelo iPad, e a turma correu para a rua para encontrar um policial. Os policiais já estavam no apartamento mais ou menos 1 hora depois, quando o homem voltou e espiou pela porta. Eles o prenderam e esvaziaram sua mochila, retirando três itens incriminadores: uma faca, um dos brincos da garota e o molho de chaves do apartamento.

Naquela manhã, uma ligação chegou a Nick Shapiro. Ex-vice-chefe de gabinete da Agência Central de Inteligência e membro do Conselho de Segurança Nacional na Casa Branca de Obama, Shapiro estava havia duas semanas em um novo emprego como gerente de crises no Airbnb. “Lembro-me de pensar que estava de volta ao conflito”, lembra ele. “Isso me trouxe de novo a sensação de enfrentar questões verdadeiramente horríveis da CIA em Langley e na sala de crises da Casa Branca.”

Shapiro informou os outros executivos do Airbnb, incluindo o CEO, Brian Chesky. Enquanto isso, os agentes de segurança da equipe de confiança e segurança de elite da empresa entraram em ação. Eles levaram a moça para um hotel, pagaram para que sua mãe viesse da Austrália, levaram as duas de volta para casa e se ofereceram para cobrir quaisquer despesas de saúde ou atendimento psicológico.

As chaves duplicadas representavam um problema específico para a empresa e um mistério para os investigadores. Como o homem as conseguiu? O Airbnb não tem uma política de como os anfitriões trocam as chaves com os hóspedes, e sua reputação de segurança e possivelmente sua responsabilidade legal dependiam dessa resposta. Shapiro (que já deixou a empresa) ajudou a coordenar uma investigação sobre o assunto.

Uma semana depois, um funcionário foi enviado ao fórum para ver se o Airbnb fora mencionado durante algum processo. Não tinha sido. A mídia local também não noticiou o crime, apesar dos sinistros detalhes, e a empresa queria manter o caso assim. A história não foi relatada até agora em grande parte porque, dois anos após o assalto, o Airbnb entregou à jovem um cheque de 7 milhões de dólares, uma das maiores indenizações que a empresa já fez. Em troca, ela assinou um contrato para não falar sobre o acordo “ou implicar responsabilidade ou obrigação” por parte do Airbnb ou do anfitrião.

Os detalhes do crime, a resposta da empresa e o acordo foram reconstruídos a partir de registros policiais e judiciais e documentos confidenciais, bem como de entrevistas com pessoas que sabiam do caso. A moça, cujo nome foi protegido nos documentos legais e que pediu por meio de seu advogado para não ser identificada, não quis comentar. O advogado dela, também não.

Ben Breit, um porta-voz do Airbnb, diz que a empresa não tem o poder de manter as histórias fora da mídia e que, apesar do texto do contrato, a moça “pode discutir se ela deseja responsabilizar alguém”. Ele acrescenta que o objetivo do Airbnb após o incidente era apoiar a sobrevivente de um “ataque horrível” e que as questões políticas locais não tiveram nada a ver com sua resposta.

Chris Lehane, gestor de crises do Airbnb: com experiência na equipe de Bill Clinton, ele comanda um time disponível 24 horas por dia, sete dias por semana (Andrew Burton/Getty Images)

A maneira como o Airbnb tem lidado com crimes como aquele ocorrido em Nova York, que aconteceu durante uma amarga luta regulatória, mostra quão importante a equipe de segurança tem sido para o crescimento da empresa. O modelo de negócios do ­Airbnb se baseia na ideia de que estranhos podem confiar uns nos outros. Se essa premissa for danificada, isso poderá significar menos usuários e mais ações judiciais, sem mencionar uma regulamentação mais rígida. 

Devido a toda essa importância, a equipe de segurança permanece envolta em sigilo. Os especialistas a chamam de “caixa-preta”. Mas oito ex-membros e 45 outros atuais e ex-funcionários do Airbnb, familiarizados com o papel da equipe, a maioria dos quais falou sob condição de anonimato por medo de violar acordos de confidencialidade, forneceram um raro vislumbre de suas operações e lutas internas.

O trabalho, dizem os ex-membros da equipe, é estressante, equilibrando os interesses frequentemente conflitantes dos hóspedes, dos anfitriões e da empresa. “Houve situações em que tive de desligar o telefone e chorar”, relembra um ex-agente. “Isso é tudo que se pode fazer.”

Criado em 2008 pelos estudantes de design Chesky e Joe Gebbia, junto com o engenheiro Nate Blecharczyk, o Airbnb­ cresceu a partir do estranho couch surfing, uma alternativa às maiores empresas de hospedagem do mundo, com 5,6 milhões de inscritos, mais do que o número de quartos das sete principais cadeias de hotéis juntas.

Seu valor de mercado de 90 bilhões de dólares — o preço das ações dobrou desde que a empresa abriu o capital em dezembro — demonstra quanto progresso os fundadores fizeram em cortejar investidores desde a época das vacas magras. Um dos primeiros capitalistas de risco do Vale do Silício que eles convidaram foi Chris Sacca, um dos pioneiros a apoiar Instagram, Twitter e Uber. Depois da apresentação, Sacca lembrou mais tarde, ele os puxou de lado e disse: “Gente, isso é superperigoso. Alguém vai ser estuprado ou assassinado, e o sangue vai estar em suas mãos”. Ele não quis investir.

Abertura de capital do Airbnb em Nova York: sucesso no primeiro dia de negociação levou a fortuna dos fundadores a mais de 10 bilhões de dólares (Victor J. Blue/Getty Images)

Desde o início, o Airbnb encorajou estranhos a se conectar online, fazer câmbio, para só então se encontrar na vida real, e muitas vezes acabar até dormindo sob o mesmo teto. É algo entre uma plataforma de tecnologia e uma operadora de hotel — incapaz de negar a responsabilidade de garantir que seus usuários estejam seguros, como algumas empresas de tecnologia podem fazer, ou de fornecer guardas de segurança e outra equipe no local, como um hotel faria. O que torna a confiança e a segurança no Airbnb mais complicadas do que na Apple ou no Facebook “é que o indivíduo está lidando com pessoas reais em casas de pessoas reais”, diz Tara Bunch, chefe de operações globais do Airbnb. 

No início, os cofundadores respondiam a todas as reclamações de atendimento ao cliente pelos próprios telefones celulares. Quando isso se tornou incontrolável, contrataram, então, uma equipe de suporte para chamadas de campo. Somente três anos depois, tendo ultrapassado 2 milhões de estadas reservadas, a empresa enfrentou sua primeira grande crise de segurança. Em 2011, uma anfitriã em São Francisco escreveu sobre isso quando voltou de uma viagem de trabalho e encontrou a casa saqueada. Seus “hóspedes” destruíram roupas, queimaram seus pertences e abriram um buraco na porta de um armário trancado para roubar seu passaporte, cartão de crédito, laptop e discos rígidos, bem como as joias de sua avó.

Em uma postagem de acompanhamento, a anfitriã escreveu que um cofundador do Airbnb a havia contatado e, em vez de oferecer apoio, pediu que ela retirasse a história de seu blog, dizendo que isso poderia prejudicar uma próxima rodada de financiamento. Logo o #RansackGate se tornou uma tendência no Twitter, e o incidente se transformou em um curso intensivo de gerenciamento de crises. O resultado: um pedido público de desculpas de Chesky, uma garantia de danos de 50.000 dólares para anfitriões (que de lá para cá aumentou para 1 milhão de dólares), uma linha direta de suporte ao cliente 24 horas e um novo departamento de confiança e segurança.

À medida que a empresa crescia, também crescia o número de incidentes perigosos — tudo, desde anfitriões jogando malas pela janela até câmeras escondidas, vazamentos de gás e agressões sexuais. Em 2016, a equipe de segurança estava sobrecarregada com ligações, muitas delas de pouca importância, e o Airbnb começou a treinar contratados em centrais de atendimento ao redor do mundo para lidar com a enxurrada de reclamações. O Airbnb diz que menos de 0,1% das estadas resultam em algum problema de segurança relatado, mas com mais de 200 milhões de reservas por ano, ainda são muitas viagens com finais ruins. Apenas os problemas mais graves são transferidos para a equipe de segurança interna.

Essa equipe é composta de cerca de 100 agentes em Dublin, Montreal­, Singapura e outras cidades. Alguns de seus membros têm experiência em serviços de emergência ou militares. Eles têm autonomia para gastar o que for necessário para fazer as vítimas se sentir apoiadas, incluindo o pagamento de voos, acomodação, alimentação, aconselhamento, despesas com saúde e testes para doenças sexualmente transmissíveis para sobreviventes de estupro.

Um ex-agente que trabalhou no Airbnb por cinco anos descreve a abordagem como “atirar com um canhão de dinheiro”. A equipe transferiu hóspedes para quartos de hotel por um custo dez vezes maior que o valor da reserva, pagou por férias de volta ao mundo e até mesmo assinou cheques para sessões de aconselhamento canino. “Fazemos de tudo para garantir que qualquer pessoa afetada em nossa plataforma seja assistida”, diz Bunch. “Realmente não nos preocupamos com a marca ou a imagem. Esses detalhes se acertam por si, desde que façamos a coisa certa.”

Ex-agentes relembram casos em que tiveram de aconselhar hóspedes escondidos no guarda-roupa ou que fugiam de cabanas isoladas depois de ser agredidos por anfitriões. Às vezes, os convidados eram os perpetradores, como no caso de um incidente em que um foi encontrado na cama, nu, com a filha de 7 anos de seu anfitrião. Os agentes tiveram de contratar equipes especializadas em fluidos corporais para limpar sangue de tapetes, providenciar profissionais para cobrir buracos de bala nas paredes e lidar com anfitriões que encontraram restos mortais desmembrados.

O trabalho pode ser tão estressante que os agentes têm acesso a salas de relaxamento com iluminação reduzida para criar uma atmosfera tranquila para atender chamadas angustiantes. E isso pode custar caro. Alguns ex-agentes dizem que sofrem de fadiga da compaixão. No exercício da função, tentaram lembrar que tudo o que acontece na vida pode acontecer no Airbnb. Essa perspectiva foi instilada em novos recrutas durante sessões de treinamento de 12 semanas: assim como casas noturnas não podem eliminar ataques sexuais e hotéis não podem conter o tráfico humano, o Airbnb não pode impedir que indivíduos mal-intencionados usem sua plataforma.

A empresa diz que seus agentes de segurança são treinados para priorizar os clientes em crise, mas muitos entendem que têm o duplo papel de proteger a imagem pública do indivíduo e a do Airbnb. Em casos delicados, de acordo com alguns ex-agentes, eles foram incentivados a obter um acordo de pagamento assinado o mais rápido possível.

Até 2017, dizem outros informantes, todo contrato vinha com uma cláusula de sigilo que impedia o destinatário de falar sobre o que havia acontecido, fazer novas solicitações de dinheiro ou processar a empresa. Essa prática terminou quando o movimento #MeToo mostrou como os acordos de sigilo estavam sendo usados para proteger indivíduos e empresas famosos contra consequências de alegações de má conduta. O Airbnb substituiu a cláusula de confidencialidade de seu acordo de pagamento por outra mais restrita, que diz que os destinatários não podem discutir os termos do acordo ou insinuar que seja uma admissão de conduta irregular.

A empresa se recusou a comentar os termos dos acordos ou o orçamento da equipe de segurança. Mas um documento confidencial visto pela Bloomberg Businessweek mostra que, nos últimos anos, o Airbnb gastou uma média de cerca de 50 milhões de dólares anuais em pagamentos a anfitriões e hóspedes, incluindo acordos judiciais e danos às moradias. (A empresa diz que a maioria de seus pagamentos está relacionada a danos à propriedade sob seu programa de seguro de garantia de anfitrião, e que até mesmo acordos de seis dígitos são “excepcionalmente raros”.)

Como muitas empresas do Vale do Silício, o Airbnb cresceu com a força de um padrão de crescimento a qualquer preço — avançando para as cidades, contornando as regulamentações, ganhando a preferência do público e alcançando a popularidade tão rápido que, quando os funcionários perceberam o que estava acontecendo, eles já não tinham mais chance de controlá-lo. Batalhas regulatórias estouraram em todo o mundo, a mais tóxica tendo ocorrido em Nova York em 2015.

A cidade conduziu operações secretas para expor aluguéis ilícitos de menos de 30 dias e ordenou que a empresa fornecesse endereços de seus locadores, gerando anos de batalhas legais. O Airbnb contratou pesquisadores da concorrência para investigar os antecedentes de seus críticos e pagou pelos anúncios de ataque.

No início de 2016, após o ataque perto da Times Square, os agentes de segurança fizeram o que foram treinados para fazer: oferecer conforto e assistência às vítimas. Mas a possibilidade de um processo judicial aumentou os riscos. Chris Lehane, um ex-agente político do presidente Bill Clinton, foi contratado pelo Airbnb como chefe de política global e comunicações alguns meses antes do incidente. Membros da empresa dizem que Lehane, autor de Masters of Disaster (“Mestres do desastre”, numa tradução livre), livro de 2014 sobre “a obscura arte do controle de danos”, temia que o caso pudesse ser usado por oponentes para tirar o Airbnb dos negócios. (Lehane não quis ser entrevistado.)

O problema com as chaves não foi resolvido facilmente. Arranjos como o usado pelo anfitrião da Rua 37 Oeste são comuns no sistema de aluguel de curto prazo — uma loja de malas e bagagens ao lado do prédio se autoanunciava online como “um local conveniente para pegar as chaves do Airbnb”. Mas essas práticas podem ser perigosas, com as chaves passando por várias mãos desconhecidas.

Polícia investiga tiroteio em Toronto: especialistas estimam que a empresa lida com milhares de acusações de agressão e tiroteio todos os anos (Teve Russell/Getty Images)

William Delaino, um inquilino de longa data do terceiro andar do prédio da Rua 37 Oeste, lembra que os amigos da mulher tocaram a campainha naquela noite, sem obter nenhuma resposta dela. “Havia algumas unidades do Airbnb no prédio, e eu estava acostumado com esse tipo de coisa vindo de viajantes estrangeiros”, diz ele. Ele estima que quatro das 12 unidades do prédio estavam sendo alugadas no ­Airbnb na época. Seu proprietário, Kano Real Estate Investors LLC, não quis comentar. Mas após o ataque, dizem os inquilinos, ele atualizou os aluguéis para tornar proibitivos os anúncios de seus apartamentos no Airbnb.

Os policiais tiveram sorte porque o suposto estuprador, Junior Lee, retornou com as chaves. Ele foi acusado de agressão sexual predatória, com pena máxima de prisão perpétua. Um promotor disse ao juiz que Lee, de 24 anos, era um “criminoso de carreira” com 40 condenações por contravenção, de acordo com as transcrições do tribunal. Lee se declarou inocente, e a fiança foi fixada em 250.000 dólares.

O Airbnb escapou de ser mencionado não apenas na mídia e na acusação mas também no boletim de ocorrência e nas denúncias feitas pelos promotores. Nem há nada no registro público sobre como Lee conseguiu as chaves. Seu advogado, Evan Rock, se recusou a comentar o caso. Lee, que foi considerado mentalmente incapaz, está sob custódia aguardando um exame mais aprofundado, mas mesmo se for a julgamento não está claro se o papel da empresa será um problema ou se o mistério das chaves será algum dia resolvido.

A responsabilidade potencial do Airbnb por não adotar uma política de troca de chaves mais rígida não será um problema, graças ao acordo de 7 milhões de dólares, que surgiu depois que o advogado da mulher, Jim Kirk, da Kirk Firm em Nova York, enviou uma carta ameaçando uma ação legal. Embora o acordo não impeça a mulher de cooperar com os promotores, ele a impede de culpar ou processar a empresa. Isso foi especialmente importante para o Airbnb porque não foi a mulher que alugou o apartamento, então ela não assinou o contrato de 10.000 palavras de serviços da empresa — outra maneira importante pela qual o Airbnb mantém incidentes fora dos tribunais e fora da opinião pública.

Qualquer pessoa que se cadastra no site é obrigada a assinar esse contrato, que proíbe reivindicações legais por danos ou estresse decorrentes de uma estada e exige arbitragem confidencial em caso de alguma disputa. Ex-agentes de segurança estimam que a empresa lida com milhares de acusações de agressão sexual todos os anos, muitas envolvendo estupro. No entanto, apenas um caso relacionado a uma agressão sexual foi movido contra o Airbnb nos tribunais dos Estados Unidos, de acordo com uma revisão de ações judiciais estaduais e federais disponíveis eletronicamente. Os advogados das vítimas dizem que os termos de serviço representam um importante argumento.

Algo semelhante ocorreu quando Carla Stefaniak, residente na Flórida, foi assassinada enquanto comemorava seu 36o aniversário na Costa Rica em 2018. A família entrou com uma ação contra a empresa no final daquele ano. Os restos em decomposição de Stefaniak foram descobertos semienterrados, em sacos plásticos, a cerca de 300 metros do imóvel alugado no Airbnb. Um segurança do condomínio onde ela estava foi condenado pelo assassinato. O processo alegou que o Airbnb não conseguiu verificar os antecedentes do segurança, que estava trabalhando ilegalmente no país. A empresa resolveu o caso por um valor não revelado.

Vários incidentes fatais ocorreram em 2018 e 2019, além do assassinato de Stefaniak, enquanto a empresa se preparava para uma oferta pública inicial. Chesky, que se recusou a ser entrevistado para este artigo, queria saber por que casos como esse continuavam chegando até sua mesa e por que a empresa estava lidando mal ou atrasando as ações de segurança, de acordo com pessoas familiarizadas com sua reação. A resposta à segunda pergunta era que a equipe de segurança estava com falta de pessoal. Quando os executivos perceberam isso, houve uma movimentação. No início de 2019, a equipe de segurança foi separada da de confiança, colocada na divisão de suporte à comunidade e recebeu adicionais de recursos humanos e de engenharia.

Mas as tragédias continuaram acontecendo. Naquele mês de maio, seis turistas brasileiros, dois deles crianças, morreram de envenenamento por monóxido de carbono dentro de uma locação do Airbnb em Santiago, no Chile. Um familiar ligou para a empresa antes de morrer, mas a resposta demorou porque ninguém no call center falava português. Chesky ficou furioso, dizem ex-funcionários.

Então, naquele Halloween, o ­Airbnb enfrentou um de seus incidentes mais trágicos: um tiroteio em uma casa de quatro quartos de 1,2 milhão de dólares em Orinda, Califórnia, cerca de 30 quilômetros a leste de São Francisco. A casa, que havia sido objeto de inúmeras reclamações à polícia e à cidade, estava reservada para uma noite. O hóspede, que havia sido denunciado ao Airbnb por deixar uma bala em outro imóvel poucos dias antes, acionando um aviso de segurança interno, então anunciou uma “festa na mansão” nas redes sociais. Mais de 100 pessoas estavam lá quando um atirador abriu fogo, matando cinco. 

Nova York retoma a rotina: o Airbnb ainda não definiu regras claras sobre a entrega de chaves, mas definiu regras mais rígidas, sobretudo nos feriados (Noam Galai/Getty Images)

Em dezembro daquele ano, o Airbnb anunciou 150 milhões de dólares em gastos adicionais nos itens confiança e segurança. Introduziu uma linha direta 24 horas por dia, sete dias por semana, que oferece aos locatários acesso imediato a um agente de segurança; criou um sistema para sinalizar reservas de alto risco; baniu usuários com menos de 25 anos e sem histórico de comentários positivos para reservar um Airbnb na área onde moram; e parou de permitir estadas de uma noite durante o Halloween, 4 de Julho e véspera de Ano-Novo.

Muitas dessas medidas foram focalizadas nos Estados Unidos — e implementá-las globalmente tem sido um desafio, dadas as diferentes culturas, costumes e regulamentações nos 191 países onde o Airbnb opera. A empresa também tem debatido se deve forçar os usuários a fornecer um documento de identidade oficial, mas optou por não fazê-lo para evitar a exclusão de anfitriões e convidados em países onde a carteira de identidade é um documento raro.

No início de 2020, quando a pandemia começou, acabaram-se as viagens enquanto os países fechavam suas fronteiras e o mundo ficava em lock­down. O Airbnb perdeu 80% de seus negócios em oito semanas. A equipe de segurança recebeu uma enxurrada de ligações relacionadas a infecções. Para piorar as coisas, os profissionais promotores de festas começaram a transformar os aluguéis do Airbnb em casas noturnas, oferecendo DJs ao vivo e serviço de bar. Centenas de foliões embriagados e sem máscara foram soltos nos subúrbios dos Estados Unidos, esgotando os recursos da polícia, enfurecendo os funcionários da saúde pública e sobrecarregando a equipe de segurança. 

Em maio passado, Chesky caiu em prantos diante de sua webcam durante uma reunião com toda a empresa, na qual anunciou que 25% da força de trabalho seria cortada. As demissões já eram esperadas. O que foi um choque para muitos é que toda a equipe de segurança em Portland, Oregon, incluindo 25 dos agentes mais experientes da empresa, foi dispensada. 

Nada disso foi relatado na época e não interferiu no IPO. Após a abertura das negociações em dezembro, o ­Airbnb atingiu um dos maiores rallies já registrados no primeiro dia, elevando a riqueza de cada fundador para mais de 10 bilhões de dólares. Sacca, o investidor que rejeitou a startup 13 anos antes, tuitou seus parabéns. “Eu deixei o pior cenário me impedir de ver o cenário provável”, escreveu ele. “Cada plataforma terá alguns maus participantes, mas a maioria dos humanos são boas pessoas. Eles sabiam disso. Eu não escutei.”

Mais de cinco anos após o ataque à Rua 37 Oeste, o Airbnb ainda não definiu regras claras sobre as chaves. No final, pouco foi feito além de postar informações online sobre a entrada sem chave e trabalhar com vários chaveiros para reduzir o custo de implementação. Fazer mais teria sido difícil porque o Airbnb não pode ditar como os anfitriões acessam a própria casa, o que poderia desencorajá-los a entrar na plataforma. O argumento dos negócios venceu. Pode-se ver as evidências em cidades ao redor do mundo: pequenos cofres pendurados nas grades da cerca, prontos para que o próximo hóspede do Airbnb pegue as chaves.  


Com Tradução de Anna Maria Luche.

 

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