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A bolha dos velhinhos

Devido aos excessos, a boa idéia do crédito consignado pode ter o efeito perverso de impedir o crescimento do mercado

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Da Redação

Publicado em 22 de junho de 2011 às 14h57.

Principal estrela do mercado de crédito dos últimos tempos, os empréstimos consignados começam a se transformar em motivo de dor de cabeça. Até pouco tempo atrás, esses empréstimos eram fonte de notícias extremamente animadoras para um país com pouca tradição em financiamento pessoal.

Seu crescimento foi exponencial: regulamentados em setembro de 2003, eles saíram do zero para mais de 20 bilhões de reais em dois anos e já representam um terço dos créditos concedidos pelos bancos a pessoas físicas. No entanto, o crescimento acelerado de um segmento específico -- os empréstimos para aposentados e pensionistas do INSS -- tem tirado o sono de muitos analistas.

O temor é que o abrupto aumento do endividamento impeça os devedores de honrar compromissos no curto prazo e eleve a inadimplência, especialmente no setor de varejo. Trata-se de um típico caso de boa idéia que pode se perder na má execução.

Os dados mais recentes mostram que uma fatia crescente de consumidores está apelando para os empréstimos consignados na hora de comprar a prazo. "Esse tipo de financiamento vem sustentando boa parte dos nossos negócios nos últimos meses", diz Michael Klein, diretor da Casas Bahia, maior rede de varejo de móveis e eletrodomésticos do país.

Esse movimento não dá sinais de arrefecimento. Segundo uma pesquisa do Programa de Administração de Varejo (Provar), realizada entre junho e setembro, 83% dos entrevistados pretendem comprar a crédito no Natal e no Ano-Novo. "Os números provam que as pessoas passaram a viver em um patamar de endividamento estruturalmente mais elevado", diz Fernanda Della Rosa, economista da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio).

Isoladamente, o fato de mais pessoas tomarem dinheiro emprestado é positivo. Nos países desenvolvidos, o crédito é um dos principais pilares dos negócios e sustenta as vendas e a produção da indústria. "O crédito funciona como um motor de arranque da economia", diz Gustavo Loyola, ex-presidente do Banco Central (BC) e sócio da consultoria Tendências.


"Um aumento no consumo por meio do financiamento justifica um crescimento na produção industrial e a geração de empregos em um segundo momento." No entanto, um crescimento que ocorre depressa demais provoca problemas generalizados. "Quando as pessoas comprometem um percentual elevado de sua renda com empréstimos, a probabilidade de não conseguirem pagar também aumenta", diz Alkimar Moura, ex-diretor de Política Monetária do BC e sócio da consultoria Aggrego. Sem crescimento da renda, há risco de o aumento das vendas ser seguido por um crescimento correspondente de calotes.

Os dados do BC são claros em mostrar que renda e crédito têm seguido ritmos muito diferentes. De janeiro a setembro deste ano, os empréstimos para a pessoa física aumentaram cerca de 40% -- mas a renda média do brasileiro cresceu apenas 5%. Quem nunca deveu agora está devendo, e quem já estava endividado agora está devendo mais.

Não por acaso, os números do varejo também já começam a apontar uma aceleração da inadimplência. Em outubro, a cada 1 000 cheques compensados, quase 20 não tinham fundo. "É o segundo maior percentual da história", diz Laércio Pinto, diretor da Serasa. Outros dados também mostram sinais de problemas à frente. "Nosso faturamento caiu 5% entre julho e outubro, mas a inadimplência dos nossos clientes aumentou 10% nesse período", diz Klein.

O crescimento do consignado é um problema para as lojas porque são elas que correm os maiores riscos. O banco que emprestou ao aposentado será pago de qualquer maneira, mas os outros credores não têm essa garantia. "Para os bancos, a grande vantagem do consignado é que as parcelas são descontadas diretamente do pagamento do salário ou do benefício", diz Moura. "O devedor não tem a opção de não pagar."

Essa segurança faz as taxas do consignado ficarem bem abaixo das de outras linhas de crédito, como o cheque especial. Na média, o devedor paga juros de 70% ao ano pelo dinheiro que toma emprestado. No consignado, essa taxa é de 37%, segundo o BC.


Esses juros relativamente baixos -- e é bom ressaltar o termo relativamente -- tornaram os consignados irresistíveis e os transformaram na principal fonte de receita para vários bancos de médio e pequeno porte, que cresceram muito emprestando aos aposentados. Em si, empréstimos nos moldes do consignado não são uma novidade.

Com outros nomes, financiamentos em que o tomador autoriza o banco a descontar as parcelas de seu salário já vinham sendo feitos há muito tempo. Os principais clientes eram servidores públicos e funcionários de empresas estatais, cuja probabilidade de perder o emprego é menor do que entre os trabalhadores da iniciativa privada.

No entanto, em 2003 o governo autorizou os bancos a descontar das parcelas dos benefícios pagos pelo INSS. O acesso à gigantesca lista de aposentados trouxe uma legião de consumidores ao mercado de uma só vez. "Sem considerar os beneficiários temporários, o INSS tem um cadastro de 17 milhões de aposentados e beneficiários vitalícios", diz Renato Oliva, diretor da Associação Brasileira de Bancos Comerciais (ABBC) e do Banco Cacique, que atua no consignado.

É um universo maior que todos os clientes do Banco do Brasil ou do Bradesco, os maiores bancos nacionais, e também uma oportunidade única de crescimento para bancos sem redes de agências. "Durante muito tempo, os bancos não queriam atender o aposentado em suas agências, mas depois do acordo ele se transformou em alguém muito importante na base de clientes", diz Márcio Cypriano, presidente do Bradesco.

A possibilidade de pescar nesse oceano de clientes potenciais foi vista por muitos bancos como uma oportunidade única de aumentar, e depressa, suas carteiras de empréstimo. Daí a agressividade com que saíram à caça de clientes. Além de investimentos maciços em propaganda, os bancos optaram por uma abordagem direta de vendas.

"Passe no banco e pegue seu dinheiro" é o texto-padrão das operadoras de telemarketing que ligam para a casa dos aposentados. Alguns bancos optaram até mesmo por conceder empréstimos sem juros para contratos de curtíssimo prazo. É o caso do PanAmericano, do apresentador e empresário Silvio Santos.


Até o final do ano, o aposentado que tomar dinheiro emprestado por quatro meses no PanAmericano vai pagar zero de juros -- e ainda ganha uma cesta de Natal. "Para nos superar, só com juro negativo", disse, em setembro, Rafael Palladino, vice-presidente da divisão financeira do Grupo Silvio Santos.

Juro zero não quer dizer empréstimo gratuito, pois o aposentado terá de pagar uma taxa de abertura de crédito de cerca de 3% do total do empréstimo. O PanAmericano confirma a estratégia, mas não comenta o assunto. Outros casos aproximam-se do anedótico. Os promotores de venda de uma das maiores financeiras do varejo, controlada por um banco, receberam ordem do patrão para não exagerar na captação de clientes. O motivo: eles estavam abordando os aposentados dentro das agências do próprio banco. "Eles roubavam clientes deles mesmos, no pior caso de canibalização do mercado", ironiza um executivo. 

Tamanho apetite, claro, é uma receita certa para o mau uso do crédito. Embora elogiem o esforço para aumentar a oferta de financiamentos, os especialistas criticam essa agressividade. "Muitos aposentados que não tinham sequer conta bancária de repente receberam um telefonema dizendo que bastava passar no banco e sacar o dinheiro", diz José Piccin, presidente da Associação Nacional dos Executivos de Finanças (Anefac).

"É quase um crime o governo ter permitido que os aposentados se endividassem dessa forma." Como os juros são atrativos, o aposentado acaba se endividando para auxiliar filhos, netos e parentes. Se não conseguir pagar, é o seu nome que vai para as listas de maus pagadores.

Não por acaso, o INSS já vem adotando medidas restritivas para conter o crescimento acelerado desses empréstimos. Em setembro passado, limitou a 36 meses o prazo máximo de financiamento. Até então, alguns bancos emprestavam dinheiro por 60 meses, um período comparável aos empréstimos imobiliários.

Mais recentemente, no dia 23 de novembro, o INSS proibiu os bancos de oferecer empréstimos por telefone. Valdir Moysés Simão, presidente do INSS, diz com todas as letras que o objetivo da medida foi evitar fraudes devido a vendas agressivas. "Descobrimos diversas irregularidades na concessão do crédito por telefone, e a proibimos para evitar mais abusos", diz. 

Não se pode afirmar que os problemas com os empréstimos para aposentados, que representam apenas uma fatia do crédito total, sejam grandes o suficiente a ponto de ameaçar a solvência do sistema financeiro ou frear o crescimento da economia.

O ponto é que os abusos podem afastar um enorme contingente de consumidores do mercado de crédito -- justamente o contrário do que as autoridades pretendiam. "A maioria dos consumidores de outros países usa o crédito para fazer compras grandes, como a casa própria e o automóvel", diz Fernanda Della Rosa, da Fecomercio. "No Brasil, as pessoas confundem o crédito com a renda, por isso a concessão de empréstimos deve ser cautelosa."

Com reportagem de Francine De Lorenzo
 

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