Adutora do Agreste em Belo Jardim, em Pernambuco: leilão do estado acontecerá ainda neste ano e prevê 18 bilhões em investimentos (Daiane Mendonça/Divulgação)
Repórter de Brasil e Economia
Publicado em 24 de outubro de 2025 às 06h00.
O Brasil vive uma urgência sanitária e de saúde pública. Mais de 34 milhões de brasileiros não têm acesso à água encanada e mais de 90 milhões vivem sem coleta e tratamento de esgoto. A boa notícia é que nunca houve tanto recurso para mudar essa realidade. Desde o marco legal do saneamento de 2020, que modernizou o arcabouço e trouxe o setor privado para investir em água e esgoto, foram 66 leilões e 370 bilhões de reais de investimentos contratados para as próximas décadas em mais de 1.550 cidades, segundo o instituto Trata Brasil. O setor, que em 2020 teve apenas 3 bilhões de reais em aportes privados, viu o número saltar mais de nove vezes e bater recorde em 2025, com 29,8 bilhões de reais investidos. Essa entrada de capital fez o Brasil se aproximar do volume anual necessário para universalizar o acesso à água e a esgoto até 2033 — cerca de 45 bilhões de reais ao ano.
Com estados e municípios ainda enfrentando restrições fiscais, a boa notícia é que vem mais dinheiro por aí: entre o último trimestre de 2025 e todo o ano de 2026, serão pelo menos 27 leilões, com previsão de 88,6 bilhões de reais em investimentos ao longo dos contratos, em um último ciclo de grandes certames de saneamento. “Estamos vendo a consolidação de um novo mercado. O investimento era necessário, e o Estado não tinha recursos para atender no prazo adequado. Por isso, concessões e PPPs são o caminho escolhido”, afirma Nelson Barbosa, diretor de Planejamento e Relações Institucionais do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Jaru, em Rondônia: estado terá leilão com dois lotes no 1º semestre de 2026 (Daiane Mendonça/Divulgação)
O primeiro da fila é Pernambuco, cujo leilão de concessão parcial da Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) acontece em 18 de dezembro. Serão dois blocos cobrindo 185 municípios e o arquipélago de Fernando de Noronha, em um projeto estruturado pelo BNDES, com investimento estimado de 18,9 bilhões de reais ao longo do contrato. A Compesa permanecerá responsável pela captação, pelo tratamento e fornecimento de água de 174 cidades e atuará no esgotamento sanitário em um dos blocos. “Acredito que haverá bastante interesse nesses novos projetos”, diz Barbosa. O ciclo que avançará por 2026 projeta uma concentração inédita de investimentos no Norte e Nordeste (veja quadro na pág. 78). Dos nove blocos bilionários previstos, seis estão nessas -regiões, com 54 bilhões de reais em investimentos. O Maranhão terá um bloco com 214 municípios e 18,7 bilhões de reais em investimentos no total, que deixa de fora apenas três cidades do estado, que hoje têm concessões privadas. Também estão avançando para leilões os estados da Paraíba (3,45 bilhões de reais), Rondônia (com dois projetos que somam 7,5 bilhões de reais) e Alagoas (1,7 bilhão de reais). Em comum, são estados com histórico de operação pública pouco eficiente e coberturas abaixo da média nacional. No Norte, por exemplo, o nível de coleta e tratamento é de 22,8%, e o de acesso à água é de 60,9%. O desafio das concessões e PPPs nessas regiões é equilibrar duas necessidades: volume relevante de investimento com uma tarifa mais baixa, o que resulta em outorgas menores, ou seja, menos recursos aos cofres estaduais com os leilões. “O momento do mercado é tão especial que mesmo nesses contratos é raro ver leilão de água e esgoto deserto”, diz Guilherme Naves, sócio da consultoria Radar PPP.
Fora do eixo Norte-Nordeste, São Paulo conduz o maior projeto estadual do país. O Universaliza, em fase de estruturação, prevê 20 bilhões de reais em investimentos para atender nas próximas décadas 218 municípios que estão fora da área de atuação da Sabesp. As cidades serão divididas em até quatro blocos a serem leiloados. A consulta pública deverá acontecer entre abril e maio de 2026; e o leilão, em setembro do ano seguinte. “Vamos usar a mesma regulação do contrato da Sabesp, que considero a mais adequada para o setor”, diz Natália Resende, secretária de Infraestrutura e Meio Ambiente do estado de São Paulo. O grande diferencial desse certame, segundo Resende, será a inclusão da drenagem urbana, que potencialmente evita alagamentos, inundações e contaminação de recursos hídricos.
“Estamos considerando incluir a drenagem em alguns projetos. Se isso acontecer, o valor de investimentos deve crescer”, diz. A secretária afirma ainda que, apesar da sinergia natural da Sabesp recém-privatizada, que já atua em 371 cidades do estado, o importante é um bom contrato e boa regulação. “O melhor player, seja a Sabesp ou outro, será aquele que aceitar e cumprir essa regulação”, afirma.
Natália Resende, secretária de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística de São Paulo: estado está estruturando blocos para um grande leilão no segundo semestre do ano que vem (Leandro Fonseca /Exame)
Com a magnitude do Universaliza em São Paulo e de outros leilões pelo Brasil, como em Goiás e Minas Gerais, a competição se intensifica. A perspectiva de pessoas envolvidas na estruturação de projetos é que empresas como Sabesp, Aegea e Sanepar, de saneamento, em possível parceria com a construtora Acciona, serão as protagonistas nos próximos certames, mesmo em um cenário de alta alavancagem. “O CEO da Sabesp, Carlos Piani, já disse publicamente que entrará em leilões. A Sanepar também ganhou força ao ensaiar uma associação com a Acciona. Estamos em um momento de consolidação de grandes grupos”, diz Christianne Dias Ferreira, diretora-executiva da Abcon Sindcon, associação que reúne as principais empresas privadas de saneamento do país. A executiva acredita que esse momento só é possível por causa da modelagem amadurecida dos contratos e da curva de aprendizado natural. “Hoje, só não vemos interessados quando o problema está na modelagem. O setor evoluiu”, afirma Ferreira. Há ainda a projeção de novos entrantes, com combinações entre firmas de engenharia, que já prestam serviços para estatais, e fundos de investimentos, além de players de outras áreas da infraestrutura. “A entrada da Equatorial na Sabesp é um ótimo exemplo. Isso pode sinalizar um movimento de outras empresas de infraestrutura, inclusive de fora, migrando para o saneamento”, diz Gustavo Carneiro, consultor do escritório de advocacia Pinheiro Neto. Em meio ao fim dos grandes certames, é esperado um movimento de maior consolidação do setor, com fusões e aquisições, à medida que o pipeline se fragmenta em projetos municipais de menor escala. “O investidor que entrou e viu o projeto performar acima do esperado pode vender antes do fim da concessão, com ágio, atraindo outros grupos com maior expectativa de eficiência”, afirma Carneiro. A previsão é que, em um cenário de queda de taxa de juro para os próximos anos, o movimento se acelere.
Com o alto volume de investimentos contratados, os próximos desafios vão além das licitações: será preciso entregar. Nos próximos oito anos, quase todos os municípios brasileiros terão obras de saneamento em andamento. O volume de intervenções simultâneas preocupa, pois pressiona a mão de obra, fornecedores e a estrutura de gestão local. “O avanço e o cumprimento das obras dentro dos prazos podem esbarrar em obstáculos que exigirão adaptação com ações coordenadas”, diz Gesner Oliveira, professor na Fundação Getúlio Vargas (FGV), sócio da GO Associados e ex-presidente da Sabesp. Oliveira ressalta que as empresas devem investir em capacitação profissional, fortalecer a capacidade de fornecedores e realizar um planejamento logístico eficiente para evitar um colapso no setor diante de volumes bilionários de investimentos. A falta de fortalecimento das agências reguladoras também é um ponto de atenção. Como o saneamento tem competência municipal, existe a preocupação com a falta de órgãos regionais para lidar com o novo momento. “Precisamos de agências reguladoras infranacionais mais fortes para cobrar a eficiência na operação e na expansão dos serviços”, diz Luana Pretto, presidente do Instituto Trata Brasil.
São Luís, no Maranhão: estado tem leilão em fase de estudo de viabilidade econômico-financeiro e deve ir a mercado no ano que vem (Leandro Fonseca /Exame)
A taxa de juro a 15% ao ano e as eleições de 2026 também são preocupações de especialistas. “O calendário eleitoral pode gerar judicializações, envolvimento de Tribunais de Contas e afetar o andamento dos leilões”, afirma. Se os desafios são reais, o saldo até aqui também é expressivo. O saneamento brasileiro passou de um setor estagnado, dominado por estatais deficitárias e com baixo nível de cobertura, para um campo competitivo, com operadores privados dispostos a investir. A meta de 2033, fixada no marco legal, ainda parece distante — mas, pela primeira vez, não é inatingível. Há capital, players, conhecimento técnico e uma estrutura regulatória em evolução. O que falta, como sempre no Brasil, é coordenação. A última onda de leilões pode não resolver o déficit histórico, mas deixará um legado de aprendizado e infraestrutura que o país nunca teve. O futuro do saneamento não será leiloado — mas ele passa, inevitavelmente, por esses certames.
