Revista Exame

Para sair da lama, montadoras vão investir R$ 80 bilhões no Brasil

As montadoras devem investir, até 2022, o dobro do último ciclo buscando trazer de volta a euforia do início da década. Falta só combinar com o consumidor

Fábrica do PSA: a meta é passar de 2% para 5% do mercado até 2021 (Germano Lüders/Exame)

Fábrica do PSA: a meta é passar de 2% para 5% do mercado até 2021 (Germano Lüders/Exame)

DG

Denyse Godoy

Publicado em 20 de dezembro de 2018 às 05h48.

Última atualização em 20 de dezembro de 2018 às 05h48.

Novas fábricas. Novos modelos. Mais funcionários. Terceiro turno de produção. O setor automotivo tem sido um dos mais otimistas com a provável aceleração da economia brasileira em 2019. As montadoras estabelecidas no Brasil devem investir cerca de 20 bilhões de dólares (perto de 80 bilhões de reais) até 2022, o dobro do valor investido de 2014 a 2017. O objetivo é deixar para trás de vez um atoleiro sem precedentes. Após uma queda de 46% em quatro anos, para 2,05 milhões de unidades em 2016, as vendas de carros e caminhões cresceram 9% em 2017. Neste ano, as vendas devem subir 15%; em 2019, mais 12%, segundo projeções da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Se tudo der certo, em alguns anos o setor espera voltar ao nível de 2012, quando foram vendidas 3,8 milhões de unidades. Para chegar lá, não basta tentar repetir o passado.

A escada tem mais degraus do que os (bons) números dos últimos dois anos sugerem. O aumento de vendas em 2017 e 2018 foi puxado por frotistas e empresas de aluguel de carros, as quais têm atraído, com promoções e facilidades, motoristas de aplicativos. Enquanto as vendas no varejo aumentaram 9,7% neste ano, para quase 1,5 milhão de unidades, a comercialização para frotas cresceu 24%, para 1,1 milhão de veículos. Esses números tendem a cair com o fim das promoções, à medida que as montadoras conseguem recompor suas margens. De 15% nos momentos de maior aquecimento da economia, as margens chegaram a 8% no início de 2017 e agora estão se aproximando de 10%. Para continuar subindo, é preciso aumentar as vendas para os consumi-dores, e isso depende da expansão da economia, da criação de empregos e da -oferta de crédito. Na avaliação das montadoras, a agenda do próximo governo pode ter esses efeitos.

“Estimamos um crescimento do PIB que pode chegar a 2,5%. Estamos bastante entusiasmados com essa perspectiva”, diz Antonio Filosa, presidente do grupo FCA, que fabrica os veículos das marcas Fiat, Chrysler e Jeep e é a terceira maior montadora do país, com 267.000 veículos produzidos neste ano. Em junho, o FCA anunciou investimentos entre 14 bilhões e 15 bilhões de reais na América Latina de 2018 a 2023. O gastos serão, principalmente, com o desenvolvimento de produtos. Estão previstos 25 lançamentos em seis anos, incluindo a remodelação de veículos já existentes. O pior, para a montadora, parece ter passado. O grupo instalou em Pernambuco, em 2015, uma fábrica da Jeep que opera em três turnos para produzir os modelos Renegade e Compass. O lucro antes de juros e impostos do FCA na América Latina, no terceiro trimestre, subiu 41% ante o mesmo intervalo de 2017, para 83 milhões de euros.    

Para Ricardo Jacomassi, sócio da consultoria de gestão e reestruturação corporativa TCP Latam, a empolgação das montadoras se justifica. “Devemos ter uma conjunção de fatores econômicos positivos com uma frota envelhecida. O último grande movimento de compra ocorreu há quatro anos”, diz Jacomassi. A maior dúvida nesse cenário, para a Ford, quarta maior montadora do país, com 189.000 veículos vendidos no ano, diz respeito à taxa de juro. A redução dos juros nos últimos trimestres não tem sido repassada ao consumidor: enquanto a taxa básica de juro caiu 54% de 2016 a 2018, a taxa cobrada pelos bancos no crédito para a compra de veículos recuou 14%.

“As vendas diretas para empresas têm subido porque os fabricantes precisam escoar a produção. Mas, para o consumidor, financiar um veículo ainda é caro no país, e isso afeta as vendas no varejo”, diz Rogelio Golfarb, vice-presidente de estratégia, comunicação e relações governamentais da Ford América do Sul. De 2012 a 2017, a produção de carros e veículos comerciais leves da Ford recuou 36%, para 206.000 unidades. A montadora não divulga o valor de investimentos ou o número de lançamentos previstos, mas já anunciou que vai passar a vender no Brasil em 2019 a picape Ranger Storm e o SUV Edge ST.

Um grande impulso para as montadoras virá do governo federal. É o programa Rota 2030, de incentivos para as companhias aprimorarem a eficiência e a segurança dos carros. O projeto foi sancionado como medida provisória pelo presidente Michel Temer em 11 de dezembro. O programa tem vigência de 15 anos e concede créditos de até 12,5% em tributos em troca de investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação. Também reduz a alíquota do Imposto sobre Produtos Industrializados a ser pago pelos compradores de carros híbridos e elétricos. O principal efeito desse conjunto de medidas é estabelecer as diretrizes que guiarão os estudos das montadoras para criar novos modelos de carros e tecnologias nos próximos anos.

“O Rota 2030 é muito bem-vindo porque dará mais previsibilidade à indústria”, diz Patrice Lucas, presidente para o Brasil e a América Latina do grupo francês PSA, que fabrica os automóveis Peugeot e Citroën. Décimo no ranking das montadoras no Brasil, com 36 700 carros vendidos até novembro, o PSA quer aumentar sua participação de mercado de cerca de 2% para 5% em 2021. O grupo não divulga estimativas de investimentos futuros, mas afirma ter gastado 580 milhões de reais de 2016 a 2018 com uma nova linha de montagem em sua fábrica de Porto Real, no Rio de Janeiro, para produzir o SUV Citroën C4 Cactus. Entre as tendências de produtos para os próximos anos, estão justamente os veículos grandes esportivos, que nasceram nos Estados Unidos e caíram no gosto dos motoristas brasileiros.

Antonio Filosa, do grupo FCA: 25 lançamentos previstos para os próximos seis anos | Germano Lüders

O primeiro novo projeto relacionado ao Rota 2030 foi divulgado em cerimônia com a participação de Temer no início de dezembro em Brasília. A montadora japonesa Toyota anunciou a produção de um veículo híbrido, alimentado por eletricidade e etanol de cana-de-açúcar, a partir de 2019. Não deu detalhes, porém, do modelo e dos investimentos envolvidos. “Essa combinação entre eletricidade e etanol é uma das tecnologias mais limpas do mundo. Começou no Brasil e está sendo estudada em outras unidades da Toyota”, diz Ricardo Bastos, diretor de assuntos governamentais da montadora. A Toyota já tinha informado em setembro que vai injetar 1 bilhão de reais em sua fábrica de Indaiatuba, no interior de São Paulo, nos próximos 12 meses. A unidade produz atualmente o Corolla, modelo mais vendido da marca no Brasil.

FCA, Ford, Volks, PSA e Toyota simbolizam a corrida em curso no setor — com a perspectiva de melhora, ninguém quer ficar para trás. A dúvida é se há espaço para todos. A frota de veículos no país cresceu 1,2% em 2017, para cerca de 43 milhões, o que dá uma média de um para cada 4,8 habitantes. Em 2007, a relação era de um para 7,3 habitantes. Ainda há espaço para o crescimento da frota no país, a tomar como exemplo as nações desenvolvidas. Nos Estados Unidos e na Europa, a relação entre número de veículos e habitantes varia de 1 a 1,4, e a taxa de crescimento da frota está entre 0,5% e 1% ao ano.

Mas a expansão tem de vir com o aumento da renda, e não com instrumentos artificiais. Um risco é o Rota 2030 se tornar uma armadilha, como aconteceu com seu predecessor, o InovarAuto, projeto de incentivo à inovação no setor automotivo que começou a funcionar em 2013, durante o governo de Dilma Rousseff, e terminou em 2017. Também tinha como meta criar condições para a fabricação de veículos mais econômicos e seguros, exigindo o aumento das atividades de pesquisa e inovação em contrapartida a créditos em impostos.

“O problema é que as montadoras seguiram investindo, mas veio a crise e a demanda não atendeu às expectativas”, diz Renato Romio, chefe da divisão de motores e veículos do centro de pesquisa do Instituto Mauá de Tecnologia. Assim, a ociosidade da indústria só fez aumentar. Em 2012, quando foram vendidos 3,8 milhões de veículos no Brasil, a capacidade ociosa do setor estava em 24%. Essa proporção atingiu o pico de 57% em 2016, quando foram vendidos 2 milhões de unidades. No momento, a capacidade total instalada está em 5 milhões de veículos, e a ociosidade, em 41%.

Se no Brasil ainda não discutimos carros autônomos e não há previsão para a oferta de modelos 100% elétricos, as últimas tendências mais triviais, como a conectividade entre carros e celulares, têm chegado aos novos modelos. De olho nessas perspectivas otimistas para o mercado brasileiro, o grupo alemão Volkswagen sonha em recuperar a liderança de vendas no país, perdida há 15 anos. “Estamos em meio a um processo de completa transformação da cultura da empresa, que se torna cada dia mais ágil, eficiente, inovadora e próxima de seus públicos.

Essa estratégia contempla a maior ofensiva da história no país, com o lançamento de 20 novos produtos até 2020, fruto de um investimento da ordem de 7 bilhões de reais”, diz Pablo Di Si, presidente da VW na América Latina. Os primeiros resultados já estão sendo alcançados. De janeiro a novembro, a Volkswagen cresceu 35% nas vendas na comparação com 2017, enquanto o setor avançou 14%. Entre os novos produtos está o T-Cross, primeiro SUV a ser produzido pela subsidiária local. Para que todos os objetivos do setor se tornem realidade, falta só combinar com o consumidor. 


PARA SAIR DO SÉCULO 20

Após uma queda profunda, o mercado de caminhões voltou a crescer: 50% em 2018. As montadoras agora apostam em tecnologia | Ana Paula Machado

Rodovia na Europa: por lá, a idade média da frota de caminhões é de seis anos; no Brasil, por sua vez, a idade média é de 17 anos | Ruddy Gold/AGB Photo

Se a crise levou as vendas de automóveis a cair pela metade, no caso dos caminhões o baque foi maior: queda de 70% entre 2011, o melhor ano, e 2016, o pior. A ociosidade das fábricas passou de 80% em 2016 e 2017. Neste ano surgiram os primeiros sinais de retomada: as vendas deverão crescer 50%, para 75.000 unidades. “Eu, que sou um otimista de plantão, não esperava uma evolução dessas”, diz Roberto Cortes, presidente da Volkswagen Caminhões e Ônibus. “O ano de 2019 será o da recuperação da rentabilidade.”

As cinco maiores montadoras de caminhões do país — Iveco, Mercedes-Benz, Scania, Volkswagen e Volvo — preveem aportes de 8 bilhões de reais de 2016 a 2022. A maior parte será aplicada no desenvolvimento de produtos que devem dar ao mercado brasileiro um salto tecnológico. O Brasil continua no século 20 em caminhões, com a frota com idade média de 17 anos, ante seis na Europa e nos Estados Unidos.

A Volkswagen Caminhões e Ônibus tem um plano de investimento de 1,5 bilhão de reais no qual prevê a abertura de uma linha de montagem para seu caminhão elétrico, o e-Delivery, desenvolvido no Brasil. Essa fábrica, em Resende, no Rio de Janeiro, deverá entrar em funcionamento em 2020 e abastecerá a América Latina. A empresa já tem contrato firmado com a cervejaria Ambev para a venda de 1.600 veículos. Dois protótipos estão em testes em São Paulo. Outra montadora que prepara a fábrica para a chegada de uma linha de caminhões mais eficientes é a Scania, que planeja investir 2,6 bilhões de reais de 2016 a 2020. A fábrica da Scania em São Bernardo do Campo, na região do ABC paulista, recebeu 75 robôs conectados. A empresa estuda trazer ao país também os veículos híbridos.

Mercedes-Benz e Volvo Latin America, por sua vez, já têm caminhões autônomos rodando em plantações de cana-de-açúcar. A Volvo estuda levar a tecnologia para a mineração. A Mercedes-Benz pretende investir 2,4 bilhões de 2018 a 2021. Philipp Schiemer, presidente da Mercedes-Benz na América Latina, afirma que o próximo ano será focado em transformar a fábrica de São Bernardo do Campo na primeira unidade no mundo dentro do conceito Indústria 4.0, em que todos os processos são conectados. “Se o Brasil for mais aberto comercialmente, facilita”, diz Schiemer.

 

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