O filme mais lindo do ano é brasileiro
Imagine viver em uma casa iluminada, sempre de janelas abertas, em uma família feliz que mora perto da praia de Ipanema. Os filhos jogam “altinha” na areia, a mãe dança com eles ao som de Gal Costa e Tim Maia, o pai joga pebolim de noite com a criançada. Um dia, a polícia bate à porta, invade a casa, fecha as janelas. O pai é levado para um “interrogatório”. Ele nunca mais volta.
Nesta quinta-feira, 7, estreia nos cinemas brasileiros o tão aguardado “Ainda Estou Aqui”, novo filme de Walter Salles estrelado por Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro. A história é baseada no livro de mesmo nome de Marcelo Rubens Paiva, e narra o “desaparecimento” de Rubens (Selton Mello), pai do autor, levado pela polícia do Rio de Janeiro para ser interrogado e mantido como prisioneiro no DOI-CODE, hoje reconhecido como um dos maiores centros de tortura do Regime Militar do Brasil. Morreu lá, dois dias após ser preso e torturado, em janeiro de 1971. O paradeiro do corpo nunca foi descoberto. O atestado de óbito veio somente em 1996.
A narrativa de “Ainda Estou Aqui”, no entanto, não é bem sobre Rubens e sim sobre Eunice Paiva, sua esposa e mãe de seus cinco filhos, interpretada por Fernanda Torres no melhor papel que a atriz já realizou em toda a carreira, e Fernanda Montenegro — Torres passa o bastão para a mãe durante o filme, que interpreta a personagem no fim da vida. Viúva diante da tragédia imposta à família, Eunice toma a frente da chefia do lar, da luta contra o regime e contra o Estado, enquanto lida, sozinha, com a dor da perda.
“Eunice foi um monstro de mulher que o Brasil não conhecia. Eu fico feliz porque eu acho que o filme ajuda a apresentá-la ao país. Não que ela quisesse ou precisasse, mas acho que a gente precisava”, comentou Fernanda Torres em entrevista exclusiva à EXAME. “Tentamos ser muito fiéis a ela, a como essa mulher se portou no mundo. Ela foi a guia”.
O filme já chega aos cinemas brasileiros com altas expectativas. Foi vencedor na categoria de Melhor Roteiro no 81º Festival Internacional de Cinema de Veneza — assinado por Murilo Hauser e Heitor Lorega —, o primeiro longa a conquistar o feito na história da indústria cinematográfica nacional, aplaudido por 11 minutos. Rodou por outros festivais mundo afora, em Toronto, Los Angeles, Vancouver, Londres. A primeira exibição no Brasil, na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, teve sessões esgotadas em menos de cinco minutos. Filas que viraram quarteirões se acumularam desde a madrugada, com gente tentando garantir um ingresso na bilheteria física.
De Veneza para o Brasil, o longa também ganhou o Viff Audience Awards na categoria de Apresentações Especiais, filme favorito da audiência para cinema mundial no Festival de Cinema de Mill Valley e o prêmio do público de melhor filme de ficção brasileira da Mostra de São Paulo. Fernanda Torres recebeu a estatueta de melhor atriz da Critics Choice Association para filme internacional.
“Estamos rodando o mundo todo, cada hora que eu vejo tem um novo avião para outro lugar”, brincou Fernanda na entrevista. “Mas é lindo de ver como essa história toca todo mundo que a assiste, seja brasileiro ou não, tenha vivido ditadura ou não, porque todo mundo já sentiu alguma vez na vida o que é perder alguém”.
Ainda que o tema seja universal, é significativo que “Ainda Estou Aqui” seja lançado em 2024, seis décadas após o início da ditadura militar no Brasil. A produção traz um retrato fiel do Rio de Janeiro nos anos mais duros do regime, com a presença da polícia e dos tanques, dos interrogatórios, da mídia censurada.
“Aos poucos, percebi que a história dos Paiva é a de um projeto de país que foi brutalmente interrompido. Na casa de Rubens e Eunice pulsava o desejo de um país livre, com uma identidade independente, essencialmente brasileira”, contou Walter Salles à EXAME. “Naquele momento, surgia uma nova arquitetura com Niemeyer e Lúcio Costa, uma nova música com Caetano, Gal e Gil, uma nova literatura com Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles, o Cinema Novo com Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha, Lygia Clark, Oiticica e Gerchman nas artes plásticas... Para a família Paiva, viver segundo esses critérios era uma forma de resistência. Foi esse Brasil possível, original e independente, que foi interrompido pelo golpe militar. O sequestro e assassinato de Rubens Paiva são uma consequência da violência de Estado que se instalou no país em 64, e se agravou depois de 1968”.
Amor à primeira vista que dói no peito
É fácil entender porque o mundo inteiro se apaixonou por “Ainda Estou Aqui”. Há tudo aquilo que Walter Salles faz de melhor no cinema: direção de câmera e atores ímpar, elenco forte, que atua em sintonia, música contagiante (e brasileira) na trilha sonora, roteiro que se amarra sem deixar pontas soltas. A ambientação é outro show à parte: todos os cenários foram meticulosamente cuidados para retratar o Rio de Janeiro na década de 1970, desde os carros na rua aos telefones de disco, vinis, garrafas de leite e até o achocolatado que compõe a mesa das crianças.
Mas o que pega nele, mesmo, é o sentimento que se instaura em quem o assiste. Walter Salles, que compartilha um vínculo pessoal com a história, uma vez que foi amigo dos filhos de Eunice e Rubens e conviveu na casa alugada da família no Leblon, apresenta ao público a dor da perda — e ela dói tanto no peito que é quase impossível conter as lágrimas durante e no fim do filme.
“Aquela casa é um personagem. Uma das minhas lembranças mais fortes de adolescência é de ver ela com as portas e janelas sempre abertas, onde turmas de diferentes idades se encontravam. Se no começo essa convivência com a família é brilhante, iluminada e calorosa, com filtro amarelado, depois que o Rubens é levado, tudo fica mais escuro e sóbrio”, destacou Salles à EXAME.
Fernanda complementou que, na primeira vez que o elenco visitou a casa — acompanhado do autor do livro —, o impacto foi grande. “O Walter teve uma preocupação quase arqueológica de recuperar aquilo bem do jeito que ele lembrava. Quando o Marcelo entrou, ele disse que deu nervoso, porque cheirava como a casa dele”.
O cerne desse sentimento todo mora, sobretudo, na relação que Eunice constrói com Rubens e com os filhos. Se a personagem de Fernanda é mais sóbria, ainda que bastante amorosa, o de Selton é um poço de carinho e empatia. A música, presente sobretudo no começo do filme, abre momentos que o enquadram de forma tão calorosa que é difícil não se apaixonar por ele.
“O Selton é meu amigo, um cara que eu amo trabalhar. A gente é muito cúmplice, muito parceiro. Essa relação linda que se vê na tela tem muito a ver não só com a preparação de elenco, feita pela Amanda Gabriel, mas também com o fato do Walter ter filmado em ordem cronológica. Ele conseguiu reproduzir na gente sentimentos honestos, não apenas clichês de representação”, contou Fernanda. “Quando assisti a primeira vez, numa telinha pequena junto do Selton e depois em Veneza, aí sim bateu: Walter entrega esse presente lindo que é a família. De repente, ele arranca isso de você”.
Nessa construção sofrida, cujo choro “vem em ondas”, acrescentou Fernanda, o fio condutor foi a atuação mais sóbria para Eunice, que passa longe do melodrama e bem perto de um trabalho intenso de subtração.
“Nada na Eunice foi forçado, porque ela não era assim, e não podíamos ser baratos com ela. O trabalho foi lapidar a personagem pela subtração: gestos pequenos, olhares que dizem mais do que diálogos inteiros. Minha mãe já me disse coisas fabulosas, mas no caso da Eunice, eu usei uma que ela me falou sobre tragédia grega. Ela me disse: ‘tragédia grega não é melodrama, você não pode sair chorando na primeira má notícia. Na tragédia grega, você engole o choro e segue. E isso é muito Eunice”.
Campanha para o Oscar
Desde “Central do Brasil” (1998), também de Walter Salles, o Brasil não é indicado ao Oscar. Naquele ano, não só o longa era nomeado na categoria de Melhor Filme Internacional, como também Fernanda Montenegro estava na disputa pela de Melhor Atriz. A estatueta mesmo, nem Walter, nem Fernanda levaram para casa. Mas isso pode mudar no ano que vem.
"Ainda Estou Aqui" foi escolhido pela Academia Brasileira de Cinema para representar o Brasil na disputa por uma vaga ao Oscar 2025. Desde que passou por Toronto, os principais veículos de imprensa de cultura do planeta começaram a inseri-lo na short-list de possíveis indicados à premiação na categoria de Melhor Filme Internacional. Fernanda Torres também desponta na estimativa de várias dessas listas para o prêmio de Melhor Atriz.
“A questão maior do Oscar é fazer o filme ser visto e votado. Acho, sim, que têm grandes chances de ser indicado na categoria de Melhor Filme Internacional, mas para Melhor Atriz dificulta, porque esse ano temos a presença de performances extraordinárias. Você trabalha. O que vier veio. Se não vier, não veio”, argumentou Fernanda à EXAME. “O que eu não quero é que pensem que, se não formos indicados ou vencedores, o filme fracassou. Quero mesmo é que o filme seja visto — e já está sendo por gente do mundo todo. Por isso gosto tanto dos festivais: eles são mais inclusivos”.
A campanha para a premiação segue ativa: o elenco ainda passa por outros festivais até o final do ano. No Brasil, além da Mostra, Fernanda Torres e Montenegro, Walter Salles e Selton Mello visitaram sessões em São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Salvador. O longa é uma coprodução entre Brasil e França, o primeiro original da Globoplay, com produção da VideoFilmes, RTFeatures e MactProdutions em parceria com a ARTE France e Conspiração. A distribuição será feita também pela Sony Pictures.
Em coletiva de imprensa em São Paulo, no começo de outubro, a atriz já havia dito que o fato de um filme brasileiro, falado em português, ser reconhecido e adorado fora do Brasil já é motivo o suficiente para “estourar o champanhe”. É verdade. E isso também: independente do Oscar, precisamos encher a taça pelo presente que é ter Fernanda Torres como Eunice Paiva.
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Créditos
Luiza Vilela
Repórter de POP
Formada em jornalismo pela PUC-SP e cursa pós-graduação em Gestão da Indústria Cinematográfica pela FAAP. Trabalhou para Record TV, Revista Consumidor Moderno e outros veículos de cultura brasileiros. Escreve sobre cinema e streaming.