Uma nova Ucrânia
Era abril de 2022, algumas semanas depois do início oficial da guerra na Ucrânia, quando o fotógrafo americano John Moore, de 56 anos, pisou novamente em solo ucraniano.
Ele já havia estado no país em 2014, quando do início dos conflitos separatistas em Donbas e da anexação da Crimeia — período que muitos apontam ter sido o começo de fato da guerra atual.
Mas tudo estava diferente agora. Se em 2014 a guerra era restrita a alguns territórios, o conflito que escalou em 2022 marcou um ataque direto da Rússia, com bombardeios à capital Kiev e áreas de toda a Ucrânia. O conflito chegou em fevereiro a seu primeiro ano, sem sinal de fim no horizonte.
"A guerra mudou a sociedade de muitas maneiras diferentes. Este era um país funcional, onde as pessoas desfrutavam de suas vidas, suas famílias e viviam em relativa prosperidade. Esse não é o caso agora", diz Moore.
As fotos abaixo foram cedidas por John Moore e Getty Images para este especial. Algumas das imagens podem conter conteúdo violento e sensível.O lamento dos que não foram
Fotógrafo sênior da agência de imagens Getty Images, com passagem por mais de 60 países, Moore falou à EXAME por e-mail em fevereiro, novamente na linha de frente do conflito.
"Superficialmente, muitas áreas dentro do país, longe das linhas de frente, podem parecer relativamente normais", diz ele. Nas lentes de Moore, porém, estão da falta de eletricidade aos estabelecimentos fechados e vítimas por todos os lados — cenas tão ou mais tristes quanto as de um ano atrás, quando a guerra tomou o mundo de surpresa e levou a uma comoção geral.
Vencedor de um Prêmio Pulitzer, entre outros, e conhecido por fotografar nos últimos anos refugiados na fronteira dos EUA, o fotógrafo discorre nesta entrevista sobre sua rotina no front, o dia-dia dos civis que ficaram e o papel do fotojornalismo em retratar o que restou de "normalidade".
A ONU contabiliza mais de 8 mil civis mortos e mais de 13 mil feridos. Do lado de ambos os exércitos, são estimados mais de 20 mil mortos e mais de 100 mil feridos.
Guerra sem fim
A guerra na Ucrânia mudou muito desde que Moore fotografou o conflito pela primeira vez no ano passado.
Naquele começo de 2022, distritos que o fotógrafo visitou nos arredores da capital Kiev, como Bucha e Irvin, eram centros da guerra. O objetivo inicial do presidente russo, Vladimir Putin, era derrubar o governo do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, incluindo com a conquista da capital. Com o tempo, ficou claro que o cenário não era mais alcançável.
Forças ucranianas conseguiram expulsar os russos do norte do país, manter o governo Zelensky e a capital Kiev. O cenário em outras partes onde Moore esteve em abril e maio passados também mudou: Kherson, ao sul, foi tomada pelos russos, mas recuperada pela Ucrânia no fim do ano; Kharkiv, ao leste e segunda maior cidade do país, conseguiu ser mantida pela Ucrânia. Os embates hoje se concentram sobretudo em partes do sul e no leste, onde Moore voltou para fotografar neste ano.
"Eu sempre tento mostrar como a guerra está afetando a população civil. Dito isso, nas áreas da linha de frente, muitas pessoas já fugiram para partes mais seguras da Ucrânia ou do exterior", conta.
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Longe do normal
No momento desta entrevista, Moore estava em Bakhmut, na região de Donetsk (no Donbas), chave para a disputa dos separatistas desde 2014 e hoje um dos palcos mais sanguinários do conflito — onde nove em cada dez moradores já fugiram.
Em todo o país, a ONU calcula que mais de 14 milhões de ucranianos tiveram de deixar suas casas. Nem todos foram para o exterior: alguns se deslocaram para áreas ao oeste, como Lviv, perto da Polônia.
"Embora algumas famílias que inicialmente fugiram da Ucrânia para a Europa tenham retornado, a maioria permaneceu no exílio, por causa da incerteza, sem mencionar o perigo, já que os mísseis russos frequentemente atingem alvos civis", diz Moore.
"Além disso, os preços dos alimentos são bastante altos, já que grande parte da agricultura e das instalações de processamento do país foram destruídas. Não é fácil aqui", resume.
Alerta aos zumbidos
"Cada dia tenho uma rotina diferente", explica Moore. "Meu produtor/tradutor aqui, Bogdan, é muito bom. Ele tem fortes contatos militares e me dá acesso a várias partes do conflito."
Durante vários dias antes desta entrevista, Moore esteve nos campos de batalha em Bakhmut. Um dos riscos mais tangíveis que vivenciou ocorreu nas últimas semanas, quando ouviu o "zumbir" de um drone acima de onde estava. O ruído é característico para quem está habituada às zonas de guerra.
"Corri de volta para meu carro e meu produtor e saí rapidamente", lembra. "Nesse caso, uma explosão aconteceu atrás de nós depois que saímos em alta velocidade, bem perto de onde eu estava."
Desde a fase recente da guerra a partir de 2022, ao menos dois fotojornalistas perderam a vida cobrindo o conflito, além de outros repórteres e produtores.
Além dos riscos, há os desafios sutis da rotina. Muito do dia de um fotógrafo envolve dirigir longas distâncias até os locais a serem fotografados, e parte da estrutura que existia nessas cidades antes, como restaurantes e outros estabelecimentos comerciais, nem sempre estão abertos. "Um pouco mais longe das áreas da linha de frente, há boas mercearias, então eu compro e estoco. Os dias são longos e cansativos, mas gratificantes quando as fotos dão certo."
"Fotografias são difíceis de negar"
Tamanho esforço em busca das fotos que retratem o conflito são importantes para mostrar ao mundo o que acontece, acredita Moore. "O fotojornalismo tem um papel importante para documentar a realidade e apresentá-la de forma justa aos espectadores", diz.
Moore avalia que a busca pelo equilíbrio também é difícil na guerra, e as fotos não estão ilesas dessa disputa. Há muito debate em todas as áreas sobre as disputas políticas no entorno da guerra, inclusive no jornalismo — embora, pessoalmente, ele não ache correto dizer que ambos os lados são "igualmente culpados".
"É importante que nossa profissão mantenha os mais altos padrões éticos ao apresentar as notícias de maneira justa. Não vou dizer equilibrado, pois não tem como apresentar essa guerra de forma totalmente equilibrada. Por exemplo, dizer que ambos os lados são igualmente culpados por esta guerra seria injusto."
Há ainda desafios logísticos, como a dificuldade de fotografar os dois lados do front. "Não podemos realmente relatar o lado russo da linha de frente, de qualquer modo. Até mesmo chamar isso de 'guerra' pode levar você à prisão por 15 anos, então o jornalismo independente daquele lado do conflito não é uma opção."
Nem todos são bem-vindos
Ainda nos EUA, onde se formou na Universidade do Texas, em Austin, Moore lançou em 2018 o livro "Indocumentados: Imigração e Militarização da Fronteira Estados Unidos-México" (powerHouse Books, tradução livre). Uma de suas imagens mais marcantes foi de uma menina chorando aos pés de um adulto, que rendeu debates intensos sobre a política de separação das famílias imigrantes dos EUA e rendeu a Moore o prêmio de "foto do ano" no World Press Photo of the Year de 2019.
Na Ucrânia, Moore não trabalhou especificamente com o registro dos refugiados na fronteira oeste. Mas com quatro em cada dez ucranianos longe de suas casas, as histórias estão por toda parte. Nas fronteiras, a maioria esmagadora são mulheres e crianças, já que homens foram proibidos de sair do país por uma lei marcial no início da guerra.
"Uma grande diferença em relação aos refugiados neste conflito é que eles [ucranianos] foram, em geral, bem-vindos a outros países para onde viajaram", diz.
Na fronteira com o México, Moore diz que a comunicação nos bastidores é mais fácil, uma vez que ele fala também espanhol. Na Ucrânia, precisa de um tradutor para ucraniano ou russo, mas diz que seu tradutor é "muito bom, então a comunicação funciona". "As pessoas aqui, quando tratadas com respeito, geralmente estão abertas à fotografia. Eles não querem que o mundo esqueça o que está acontecendo aqui. Também não quero que o mundo esqueça."
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Créditos
Carolina Riveira
Repórter de Economia e Mundo
Formada pela Universidade de São Paulo, cobre temas de políticas públicas, economia e política internacional para a EXAME. Publicou em veículos como Pequenas Empresas e Grandes Negócios e Folha de S.Paulo.