Uma experiência amazônica
A fila se estende pela rua esburacada, protegida por toldos sustentados por uma estrutura metálica. “Moço, me coloca para dentro, você é da imprensa”. Algumas pessoas ensaiam um coro: “Queremos entrar!”, repetem, meio sem forças. Do lado esquerdo de quem vai em direção ao portão de entrada, os resignados se acomodam em cadeiras de plástico e aguardam para assistir ao espetáculo pelas TVs, instaladas numa espécie de praça de alimentação. Do lado direito da fila, montinhos de lixo se acumulam onde não corre a água da chuva, e um bêbado dorme encostado na grade. É o último dia das apresentações do Festival de Parintins, que está prestes a começar.
No Bumbódromo, as “galeras” já se acomodaram. Os que ainda estão na fila têm pouca esperança de conseguir um lugar. Quem entrou, passou até dois dias na porta, dormindo em redes penduradas na estrutura do toldo. Não há cobrança de ingresso para aqueles que se dispõem a participar das torcidas oficiais dos bois Caprichoso e Garantido, o que significa cantar, dançar, pular e torcer por duas horas e meia ininterruptas, sincronizadamente à apresentação de seu time. A animação e a organização das torcidas contam pontos valiosos na competição.
Para os torcedores do Caprichoso, o esforço foi ainda maior, já que o boi, por azar no sorteio, se apresentou por último nos três dias, obrigando sua galera a acompanhar o show do Garantido em silêncio, mesmo diante das provocações do apresentador rival. “Quero ver quem vai ter coragem de me vaiar”, gritava o mestre de cerimônias Edmundo Oran, na tentativa de tirar alguns pontos por falta de esportividade. Na edição deste ano, a 56ª, quem levou a melhor foi o Caprichoso, mas o boi segue atrás do rival em número de vitórias. O que fez a diferença foi a gestão. O Garantido passa por uma crise, com acusações de desvio de verba e o afastamento do seu presidente, Antônio Andrade.
O Festival de Parintins é uma espécie de epítome da formação sociocultural do Brasil. Ele reúne elementos folclóricos do paganismo europeu, da mitologia indígena, e representações do catolicismo, da escravidão e da ocupação do território amazônico. A festa também apresenta uma visão de futuro, do que pode ser o Brasil se o país adotar um modelo de desenvolvimento a partir da preservação da floresta.
A união do conhecimento dos povos originários com o pensamento científico se manifesta na produção do espetáculo, que, diferentemente dos desfiles de carnaval, acontece em uma arena, no formato de ópera, com efeitos especiais e cenografia de fazer inveja aos melhores musicais da Broadway. Na cidade, é possível visualizar os efeitos econômicos de tudo isso, e compreender como um plano de desenvolvimento sustentável pode ser a resposta para a salvação da Amazônia.
A ilha da magia
Parintins é uma cidade dividida em duas. Um lado é azul, do Caprichoso, o outro é vermelho, do Garantido. Hoje não há violência, mas houve um tempo em que andar de azul no território vermelho, ou vice-versa, podia ser perigoso, ao menos de acordo com Mábio, o motorista que buscou a reportagem da EXAME no aeroporto. De qualquer forma, para fazer negócios na cidade, é preciso compreender essa rivalidade. Se for usar uma cor, escolha uma neutra, ou saiba que terá de usar duas. Até a Coca Cola, patrocinadora do festival há 29 anos, precisou se adequar ao costume local – Parintins é o único lugar do mundo onde o tradicional logotipo vermelho da companhia aparece em azul.
A rivalidade, no entanto, extrapola o território da ilha, localizada no Rio Amazonas, a dois dias de Barco de Manaus. “Vai chegando essa época, e a cidade esvazia”, afirma a jornalista Mazé Mourão, que mora na capital do Amazonas e há mais de 20 anos cobre a festa – ela é Garantido. “E quem fica, faz aquela cara de tristeza”. O festival sempre acontece no último fim de semana de junho, não antes do dia 26, nem depois do dia 2. Os que não têm a sorte de viajar, podem ao menos se divertir com os “atrasados de Parintins”.
Há duas maneiras de se chegar na ilha, de avião, mais rápido e caro (o preço da passagem é tabelado em cerca de 1.600 reais), ou de barco. Nesse último caso, o preço varia entre 200 e 400 reais ida e volta, a depender do conforto. O trajeto leva cerca de 36 horas, portanto, é preciso dormir na embarcação, costumeiramente em redes. Perder o embarque não é uma opção. Por sorte, a solidariedade é grande, e sempre há uma voadeira disponível para levar os impontuais à borda do barco em movimento. Daí é uma questão de habilidade: jogar as malas para dentro – recomenda-se viajar leve – e escalar a lateral do navio como um pirata, um prato cheio para memes.
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A economia da festa
A população de Parintins praticamente dobrou de tamanho desde os anos 80, como mostram os dados do Censo. A economia da cidade gira em torno do Festival, como explica Mábio. “Aqui não tem indústria”, diz o motorista. A falta de infraestrutura, não apensa logística, impede que a segunda maior cidade do Amazonas em população desenvolva outras atividades, além do turismo.
Duas semanas antes do início do Festival, um acontecimento esperado há tempos pode mudar essa história. Parintins foi finalmente conectado ao Sistema Interligado Nacional (SIN), a rede de energia elétrica que alcança todos os estados, com exceção de Roraima. Dessa forma, a cidade pode aposentar os poluentes geradores a diesel, até então a única opção para geração de energia no meio da Amazônia. O SIN permite que os parintinenses consumam energia produzida em hidrelétricas como Tucuruí, Jirau e Belo Monte, na região amazônica.
O impacto ambiental do crescimento urbano, no entanto, não está apenas na geração de energia a partir de combustíveis fósseis. A questão dos resíduos é um problema comum a cidades amazônicas, agravado pela falta de políticas pensadas regionalmente, como destaca Alzenilson Aquino, secretário de meio ambiente de Parintins.
Aquino destaca a necessidade de uma mudança de mentalidade, fundamental para o desenvolvimento de soluções socioambientais elaboradas com a inclusão daqueles que sofrem os problemas, os povos da Amazônia.
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Espanha, Maranhão, Amazonas
O poeta mineiro Ricardo Aleixo foi finalista do Prêmio Oceanos de Literatura -- o equivalente lusófono ao Man Booker Prize da língua inglesa -- com o livro Antiboi, em que utiliza o Festival de Parintins como uma alegoria para a instabilidade da vida. O poema que dá nome ao livro, curto e direto, também brinca com padrões da escrita. Ao subverter a ordem das letras minúsculas e maiúsculas, Aleixo contesta o sistema vigente, uma referência ao seu trabalho de conscientização sobre o antirracismo e as injustiças sofridas pelos negros.
a vida como, p. ex, um anti-
boi de Parintins: (porque)
nada é caprichoso,
nada é
garantido.
Ricardo Aleixo
A lenda do boi-bumbá, ou bumba meu boi, como é chamada no Maranhão, traz em sua barafunda cultural esse aspecto da luta do povo escravizado. A história gira em torno de um casal de trabalhadores, em que a mulher, grávida, tem o desejo de comer língua de boi. O homem, então, mata um dos bois do rebanho, que acontece de ser o favorito do fazendeiro. Com a ajuda de um curandeiro, ou pajé, o boi é ressuscitado, aplacando a ira do senhor.
No Amazonas, os elementos indígenas estão mais presentes, enquanto no Maranhão e no restante do Nordeste as raízes africanas da lenda são dominantes. O enredo, no entanto, deriva de histórias europeias, oriundas da Península Ibérica e dos Países Baixos, trazidas ao Brasil pelos colonizadores. São contos pagãos, adaptados para o cristianismo com a inclusão de mitos católicos, como o milagre da ressurreição.
Toda essa miscelânea se manifesta no bumbódromo, onde, além do boi, são representados personagens da cultura popular brasileira, casos da sinhazinha, do vaqueiro, do Pajé e da cunhã-poranga, a “mulher mais bela” da aldeia. A evolução do folclore, até chegar ao interior do Amazonas, acompanha a ocupação do território indígena a partir do litoral. E as diferenças regionais evidenciam as diversidades étnica e cultural que pautaram a formação cultural do Brasil.
Em Parintins, uma cidade isolada pelas águas e pela floresta, o choque dessas forças milenares resulta em uma disputa explosiva de mitologias, como se os 500 anos de ocupação europeia, e os milênios de domínio indígena, se encontrassem na arena para celebrar o fim de uma guerra e superar, com o lúdico, os traumas. É “brincando de boi” que o povo oprimido, negros, indígenas e mulheres, principalmente, encontram significado no passado e propósito para encarar o futuro.
A economia do rio
A volta do festival oferece o encontro com outra realidade amazônica. O fluxo de barcos rio abaixo promove um momento único para os povos ribeirinhos transacionarem com a população urbana. O caminho pelas águas é permeado de grupos de canoas e voadeiras, que buscam doações das embarcações mais ricas, e trocas com as mais humildes. Os mais ousados se arriscam surfando nas ondas produzidas pelas lanchas rápidas. Dos barcos, a elite mais afortunada prepara sacos impermeáveis com roupas e alimentos. As tripulações também se organizam, e os ribeirinhos agradecem com uma algazarra.
Os terminais da refinaria Isaac Sabbá, recentemente vendida pela Petrobrás para o grupo Atem, indicam que Manaus está a poucas milhas. Logo em seguida se vê o porto, com suas barcaças esperando para levar produtos da Zona Franca até o Pará, para depois seguirem viagem por toda a costa brasileira até o Porto de Santos. É terça-feira, e a cidade está novamente cheia.
O contraste entre os povos da floresta, a cultura miscigenada da festa do boi-bumbá e a metrópole encrustada no meio da selva é a realidade da Amazônia. E a energia popular liberada nos três dias do Festival de Parintins o exemplo do que acontece quando a força dessa mistura é canalizada em um esforço coordenado e planejado.
Para proteger a Amazônia, é preciso compreendê-la.
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Créditos
Rodrigo Caetano
Editor ESG
Trabalhou como repórter e editor nas principais publicações de negócios do país. Venceu os prêmios Petrobras e Citi Journalistic Excellence. Atualmente, lidera a editoria ESG da Exame e apresenta o podcast ESG de A a Z.
Leandro Fonseca
Editor de Fotografia
Fotógrafo e editor de fotografia, é formado em design gráfico e certificado em fotografia pelo Senac. Iniciou sua formação na Escola de Foto-Reprodução do Grupo Abril, em 1988. Na EXAME desde 1997, atualmente coordena a área de fotografia.