O governo Lula 3 — até aqui
Em uma das eleições mais apertadas da história da democracia brasileira, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi eleito presidente do Brasil para um terceiro mandato, em outubro do ano passado. Uma semana depois de assumir o comando do país, no dia 8 de janeiro atos antidemocráticos destruíram as sedes dos três Poderes em Brasília. Uma união política tomou conta do país, mas a população continua divida, como mostram as recentes pesquisas de popularidade de governo.
Passados 100 dias de trabalho como presidente do país, Lula tem desafios enormes, como colocar o Brasil novamente para crescer, conquistar a confiança dos empresários, passar grandes reformas pelo Congresso Nacional, além de melhor a imagem do país internacionalmente. Na avaliação de Christopher Garman, diretor-geral para as Américas da Eurasia, uma das maiores consultorias de risco político do mundo, o ambiente político é favorável, mas o da opinião pública nem tanto.
Em uma entrevista exclusiva à EXAME, Garman avalia as principais ações de Lula nos primeiros dias de mandato e quais são seus maiores obstáculos daqui para frente.
Dividimos a entrevista em seis blocos curtos, permeados com gráficos ou elementos visuais, para facilitar a compreensão dos leitores de EXAME:
- Avaliação do governo Lula 3
- Os desafios de aprovar reformas e construir base aliada
- A polarização nacional — e a resposta de Lula
- Volta de Bolsonaro e a oposição de direita
- Como deve ser indicação de Lula ao STF
- A importância do crescimento econômico para o novo governo
Confira os principais trechos da entrevista.
Lula entre a polarização e uma missão histórica pessoal
Como é sua avaliação do governo Lula até aqui?
O ponto que mais me chama atenção é que esse um Lula diferente. Não é Lula um, não é Lula dois. É um Lula que nasce de um ambiente de uma polarização enorme na sociedade, com o país dividido. E ele reage de forma muitas vezes não construtiva a essa polarização. É um presidente que enxerga o país dividido, ele vê uma oposição conservadora, que é uma ameaça ao governo dele e à democracia. O 8 de janeiro validou essa visão, portanto, é um presidente que teme enormemente uma queda do PIB que possa abrir uma brecha para essa oposição minar o governo dele e o Estado Democrático de Direito. Ao mesmo tempo, é um presidente muito mais confiante em si mesmo e se vê em uma missão histórica de atacar e resolver questões do lado social. Ele não confia no setor privado e vê ideologias nas críticas. O Lula tem um lado pragmático antigo, sim, não é o mesmo da Dilma. O grande equívoco que ele está cometendo nesse mandato é que a retórica de urgência do lado econômico, o medo de ter uma queda do PIB, se traduz em bater no Banco Central, em não estar muito sensível a críticas ou ao setor privado. Portanto, não se preocupando em ancorar as expectativas.
Qual o risco dessas ações do presidente para a economia?
A maneira como ele fala sobre política social e temas fiscais aumenta a probabilidade do cenário que ele teme tanto, porque está minando os condicionantes da economia se recuperar. O presidente está matando o espírito animal do setor privado, está desancorando expectativas de inflação, o que dificulta o trabalho do Banco Central de poder reduzir juros. Eu diria que essa bola de pessimismo que a gente vê, particularmente do setor financeiro, mas também em parte do setor empresarial, é algo que ele poderia ser evitado, mas a retórica dele vem dessa maneira que ele reage a esse país dividido, muito polarizado.
Quais sinais o novo arcabouço fiscal dá sobre o governo Lula?
Tem elementos de uma agenda mais construtiva. Ele saiu com uma regra fiscal que sinaliza uma tentativa de controle dos gastos. É claro que pode-se criticar que é uma regra que imputa o aumento de carga para poder cobrir os gastos, eu entendo isso, mas não é um descontrole fiscal enorme. Eu acho que o grande feito desse governo vai fazer a reforma tributária do IVA. É uma reforma estruturante, que está madura, com muitos debates [que começaram] no governo anterior. Os governadores querem. Muitas vezes o fracasso de um governo em fazer uma reforma cria condições para o próximo governo fazer. Vejo a reforma como a grande marca da reforma econômica desse governo, mas com um presidente que está dificultando as condicionais de uma recuperação da economia.
Vejo a reforma [tributária] como a grande marca da reforma econômica desse governo, mas com um presidente que está dificultando as condicionais de uma recuperação da economia.
Lula tem focado em narrativas anti-mercado (como a questão da taxa de juros do Banco Central). Em sua avaliação, ele ganha ou perde com esses debates?
Eu acho que ele perde. Você até pode ter um debate sobre a necessidade de mudar a meta de inflação, pode ter um debate sobre qual a taxa de equilíbrio de juros adequada, mas é a maneira com o qual ele vem criticando o Banco Central, a pessoa do presidente do BC, que mina a credibilidade de um governo que está comprometido de manter a inflação baixa. Quando você destrói a credibilidade de controle da inflação, você retira uma arma do Banco Central para poder cortar juros porque as expectativas inflacionárias ficam desancoradas. E aí dificulta a capacidade do Banco Central poder fazer uma redução dos juros. O Lula está dando um grande tiro no pé.
Construção de base aliada
Como a Eurasia avalia as chances de aprovação da reforma tributária e do arcabouço fiscal? Quando devem ser aprovados, de fato?
Eu acho que ambos vão ser aprovados. O novo marco fiscal não deve ter grande dificuldade de aprovação no Congresso. Tem um debate se pode apertar um pouco mais, ou afrouxar um pouco mais, mas eu acho que os parâmetros da reforma vão ser aprovado sem grandes mudanças. Não é uma regra muito rígida e a oposição talvez vai atuar para tentar endurecer um pouco mais as regras, mas eu acho que isso sai sem grandes dificuldades. A reforma do IVA também sai. Nas nossas projeções, sai da Câmara em junho ou julho, e no Senado em setembro ou outubro. É uma reforma mais madura. Tem três grandes posições com votos. Uma é o setor do agro, tem a bancada da educação e a outra é a da saúde. Se contemplar esses três, dá para poder reunir voto no contexto que os governadores querem, que os pequenos municípios querem, que o governo federal quer, que o presidente Lira quer.
Nas nossas contas, [o governo] tem 38% de oposição no Senado, e 33% na Câmara. Temos um 30% a 40% de parlamentares que estão abertos a cooperação. Dentro desse grupo, 75% devem ir com o governo.
Quais os maiores desafios do governo no Congresso e na construção de uma base aliada?
O governo está construindo uma base. O ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, está com uma estratégia de fazer mapeamento das demandas. O governo fez indicações no setor público de forma devagar, dadas as restrições [internas] das indicações. Eu acho que eles vão distribuir os recursos antes das votações mais importantes. Isso deve ocorrer ao longo do mês de maio. As votações do lado das MP vão ser mais apertadas e o pessoal vai ver isso como um sinal indicador da base, mas realmente não é.
Qual a projeção de vocês sobre o apoio do governo na Câmara e no Senado?
Nas nossas contas, no Senado tem 38% de oposição, e 33% na Câmara. Temos um 30% a 40% de parlamentares que estão abertos a cooperação. Dentro desse grupo, 75% devem ir com o governo, mas é uma coisa que vão negociar cargos e verbas e tudo mais. Vai ser um governo que vai ter uma maioria absoluta, mas não vai ter uma maioria constitucional [com três quintos dos votos no Congresso]. Se tivessem PECs que dividissem oposição e governo, eles iam ter dificuldades, mas a única PEC que eles querem é a da reforma tributária — e essa é uma reforma federativa. Não é uma relação de oposição contra situação. Há várias lideranças da oposição que vão votar favor dessa PEC. Vamos ter uma votação expressiva na reforma tributária que não é um sinal da base porque é um tema único. O governo vai ter que negociar medida a medida.
A discussão sobre as MPs, entre Senado e Câmara, acaba desmascarando outro debate, o do governo com o presidente da Câmara, Arthur Lira. Como avalia a relação entre Lula e Lira? O presidente da Câmara será um adversário aos planos do governo?
Lira está numa posição cooperativa nesse início de governo. Ele está ao mesmo tempo está tentando defender as prerrogativas e os poderes dele como presidente Câmara. Então, ele está numa briga feia com o Senado sobre o rito das Medidas Provisórias, entrou em atrito com o governo sobre as emendas parlamentares e [a chamada] RP9 [a rubrica que garantia o orçamento secreto no orçamento]. Gerou um estresse como Supremo agiu [no caso do orçamento secreto, quando o STF declarou a prática inconstitucional]. Como um todo, ele está querendo ganhar leverage e se posicionar como um parceiro no início de governo. Mas é uma lealdade rasa. Se o governo Lula entrar em dificuldades e aprovação popular dele cair, as repercussões no Congresso vão ser mais severas do que normal, porque ele não tem uma base leal. Então, é um apoio condicional enquanto as coisas estão indo razoavelmente bem. O Lira quer a marca de entregar a reforma tributária, não vai se opor à âncora fiscal. Do lado de aumento de impostos, vai ter mais dificuldades. Não vai ser uma base aliada que vai dar votos irrestritos a esse governo.
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Estamos em uma situação infeliz em que cada lado vê o outro com uma ameaça à democracia
Em março, os ataques de 8 de janeiro farão três meses. Inicialmente, houve uma certa coesão entre os Poderes para rechaçá-los. Com o tempo, as disputas ficaram mais claras. Como avalia o comportamento dos Poderes?
Acho que são duas coisas. Uma é: houve uma união da classe política ao redor do presidente depois do 8 de janeiro. Na classe política, o presidente Lula tem um ambiente favorável, ele tem condições para poder construir uma base parlamentar. Tem uma briga de forças entre o Lira e Pacheco, mas isso é normal. Eu não vejo divisões na classe política e o presidente enfrentando dificuldades nesse campo. Onde não houve união foi perante a opinião pública. Quando pega a pesquisa Atlas Intel, depois do 8 de janeiro, 40% da população do eleitorado acreditando que o Bolsonaro ganhou mais votos que o Lula. Tem 36% que apoiam uma intervenção militar para um presidente ilegitimamente eleito, isso na visão dessa base. Temos uma base oposicionista na casa dos 30% razoavelmente forte. E por isso que a aprovação do presidente nunca subiu acima de 55% no quesito aprova/desaprova. No governo anterior estava em 70%. Todas as medidas que o governo precisou tomar depois do 8 de janeiro para evitar novos ataques aprofundaram a visão no campo conservador de que eles são vítimas de um Estado que está burlando o direito individual. Seja liberdade de expressão, seja em outras medidas. Estamos em uma situação infeliz em que cada lado vê o outro com uma ameaça à democracia.
Volta de Bolsonaro e a oposição de direita
Na última semana, o ex-presidente Jair Bolsonaro voltou ao Brasil. O senhor acredita que isso muda um pouco as forças de poder e a oposição de direita fica mais organizada? A volta dele mexe alguma coisa nesse tabuleiro de forças?
No curto prazo, muito pouco. A gente está no início de mandato, o presidente tem um ambiente favorável no Congresso. Lula está com uma taxa de aprovação acima de 50%. A oposição sabe que não é o momento de você "chiar e fazer barulho e se mobilizar". Então, é difícil ter uma oposição que mexa com tabuleiro em um início de mandato.
Tudo indica que ele [Bolsonaro] está com um apoio ainda leal perante opinião pública e a base dele (...) Ele ainda vai ser bem influente, a principal voz da oposição
Ao mesmo tempo, o fato de o Bolsonaro estar quieto — ficou três meses fora —, tem impacto zero na capacidade de ele ser liderança da oposição. Estou vendo muita análise tirando de proporção que ele está perdendo o espaço e protagonismo. Tudo indica que ele está com um apoio ainda leal perante opinião pública e a base dele. E se os direitos políticos dele forem cassados, e não puder concorrer à eleição — parece mais provável que isso socorra olhando os sinais do TSE —, ele ainda vai ser bem influente, a principal voz da oposição.
Existe um erro de cálculo de muitos analistas nos Estados Unidos e também no Brasil de subestimar o grau de lealdade que lideranças como Bolsonaro ou como [Donald] Trump têm com a sua base. Lembro que Trump estava quieto por um ano depois de o Biden ganhar. Agora, ele é favorito para ganhar as primárias do partido Republicano. Fala-se do Ron De Sanctis [governador da Flórida, apontado como candidato do partido Republicano], que ele que vai ser o lado moderado, é o Tarcísio de Freitas [governador de São Paulo] dos Estados Unidos. Fala-se: 'Ah, o Tarcísio vai ser o novo líder ou o [Romeu] Zema vai ser o novo líder'. Tem que combinar com os eleitores. Então vejo o Bolsonaro forte. E, mesmo tendo os direitos políticos cassados, [continuará] sendo a principal voz da oposição. Quem ele indicar tende a ser protagonista na próxima eleição presidencial. As raízes da polarização não foram embora.
O senhor falou do próprio Tarcísio. Mas o Bolsonaro conseguiu eleger Tarcísio, uma base de senadores, por exemplo, que eram um ex-ministros, o que mostra uma força que deve reverberar por algum tempo...
Sim. O Tarciso só pode ser candidato para presidente daqui a três anos se o Bolsonaro o indicar. Se não o indicar, não vai ter força política.
Como deve ser indicação de Lula ao STF
O ministro Ricardo Lewandowski, do STF, se aposenta oficialmente nesta semana. Muito se especula sobre uma indicação de Cristiano Zanin, ex-advogado de Lula na Lava Jato, mas não se sabe se ele passaria pelo Senado. O que podemos ter de cenário de um nome que pode passar no Senado e que pode ser o primeiro indicado de Lula?
Talvez o Lula tenha mais dificuldades do que o normal com esse Senado, mas ainda assim eu acho que ele tende a conseguir viabilizar o nome que ele colocar para o Supremo. Particularmente em um início de mandato como esse. Mas é um Senado com uma oposição maior e o presidente não vai ter carta branca. A politização do Supremo é vista e grossa e não temos sinais também de que isso vá se arrefecer.
O presidente se vendo como vítima e colocando pessoas leais a ele no Supremo é outro sinal de como esse ambiente de polarização se exacerba. A gente está uma tendência de aprofundar essas divisões, não de amenizá-las. A grande ressalva é: tudo melhora se temos crescimento econômico. Então se a economia está crescendo você convive com essa polarização sem grandes sequelas. Se não tem crescimento, tem essa polinização e as repercussões são maiores.
A grande ressalva é: tudo melhora se temos crescimento econômico
"É a economia!": o Brasil pode voltar a crescer?
Há espaço para esse crescimento econômico hoje, na avaliação da Eurasia?
Nesse ano, muito difícil. Estamos num aperto monetário. O presidente dificultou a capacidade do Banco Central de reduzir juros. Temos o aperto no crédito, [com casos como o das] Lojas Americanas. As sequelas do aumento dos juros reais altos ainda vão ser plenamente sentidas. Esse ano vai ser difícil. Acho que o segundo semestre vai ser difícil presidente Lula, acho vai ser o pior semestre dele. O desafio para o governo: o presidente não "panicar" e permitir ao BC reduzir juros sem necessariamente fazer grandes retóricas ou novos ataques e ameaças à permanência dele [Roberto Campos Neto, presidente do BC] no banco. Além disso, fazer o máximo para entregar as metas da nova âncora fiscal. Se der sinais de credibilidade e entregar nas metas. Na retórica do Banco Central — que sempre vai estar lá —, se pelo menos você faz uma mudança suave nas metas de inflação e aprova a reforma tributária, temos condições de ter uma recuperação do ano que vem, sim. Também o mundo conspira a favor do Brasil, porque nós temos choques geopolíticos enormes. China com muito interesse em investir no Brasil, empresas nos Estados Unidos e na Europa também querendo nearshoring [quando empresas contrataram mão de obra para trabalhar remotamente a partir de outros países]. O preço de commodities tende a ficar mais elevados. Então, o Brasil está bem posicionado nesses choques geopolíticos que estamos vivendo hoje. O desafio do governo Lula é: inspirar confiança no setor privado que pode bancar para essas oportunidades. O presidente Lula, acho, está com tanto medo de uma queda do PIB, enxergando o país tão dividido, ele está minando parcialmente essas condições. Ainda que fazendo algumas coisas boas.
Nessa semana, o presidente vai para China, fazer conexão em Dubai e passará por Portugal. Que sinais percebemos da agenda internacional do governo e essas primeiras visitas?
O presidente Lula vai navegar bem do lado do internacional. É um ponto positivo. Ele reverteu a má reputação do Brasil nos Estados Unidos e na Europa, com uma credibilidade muito forte na pauta ambiental. A Europa, até saindo da crise da Ucrânia, está querendo investir mais em outras áreas. Não é por acaso que a União Europeia está querendo o acordo do Mercosul depois dessa crise da Ucrânia. Acho que tem um caminho de aprofundamento dessas relações. O presidente Lula, ao que tudo indica, quer finalizar o acordo UE-Mercosul. Está com uma relação construtiva com o governo Biden. A pauta no lado ambiental também é uma parte importante. A China quer aprofundar as relações com o Brasil para reduzir a sua dependência da Europa e dos Estados Unidos. Tudo indica que os chineses vieram com várias propostas de acordo de crédito, investimento, que vão ser anunciados quando o presidente Lula estiver lá. O Brasil está numa posição de ter avanços diplomático e econômicos-comerciais tanto na Europa, nos Estados Unidos e na China simultaneamente, sem ter que escolher lados. Tem algumas cascas de banana. Com esse plano de paz da Ucrânia, o Lula pode ser visto na Europa como "ajudando" a China — que, por tabela, ajuda a Rússia. O Itamaraty e o presidente precisarão de um pouco de cautela aí, mas em geral é uma agenda bem construtiva.
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Créditos
Gilson Garrett Jr.
Repórter de Lifestyle
Formado pela PUCPR, com especializações em Relações Internacionais, Modelo de Negócios e Mercado de Capitais. Por 9 anos escreveu sobre enogastronomia, cultura e turismo na Gazeta do Povo. Desde 2020 na EXAME, cobre lifestyle.
Luciano Pádua
Editor de Macroeconomia
Formado pela UFRJ e mestre em administração pública pela Harvard Kennedy School. Tem passagens pelo JOTA, revista VEJA, Jornal do Brasil e O Antagonista. Atualmente, é responsável pelas editorias EXAME Agro, Brasil, Economia e Mundo.