Caso Ângela Diniz: julgamento gerou revolta popular, feministas protestaram na frente do tribunal diversas vezes entre 1979 e 1981 (Jorge Marinho/Agência O Globo)
Estagiária de jornalismo
Publicado em 17 de novembro de 2025 às 21h17.
No dia 7 de janeiro de 1977, O Globo noticiou que o inquérito sobre a morte de Ângela Diniz já estava encerrado, quando o delegado Nilton Waltz afirmou que o crime ocorreu por "motivo torpe".
Apesar disso, o caso teve efeitos na esfera jurídica até janeiro de 2023, quando o STF proibiu o uso da tese de "legítima defesa da honra" em casos de feminicídio.
Ângela foi morta no dia 30 de dezembro de 1976 a tiros na Praia dos Ossos, em Armação de Búzios, no Rio de Janeiro, pelo empresário Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street. Na época, os dois tinham um relacionamento.
A história do crime e do julgamento é contada na minissérie Ângela Diniz: Assassinada e Condenada, da HBO Max, lançada na última quinta-feira, 13. E esta não é a única adaptação do caso nesta década.
A Rádio Novelo lançou em 2020 a audiossérie Praia dos Ossos, que detalhou em oito episódios a vida da socialite mineira e sua morte. Em 2023, foi a vez da Prime Video recriar o caso, com o filme Ângela, estrelado por Isis Valverde.
Após 46 anos do crime, Ângela Diniz e sua morte continuam repercutindo no debate público.
Ângela Maria Fernandes Diniz era uma socialite mineira conhecida nos círculos da alta sociedade.
Ângela Diniz: socialite marcou presença na cena carioca após anos conturbados em Minas Gerais (Desconhecido / 1976/Reprodução)
"Sou bonita, rica e sei brigar", costumava dizer Ângela Diniz, de acordo com uma matéria da Veja de 1979.
Ibrahim Sued, colunista social com que teve um relacionamento, foi o autor do apelido "Pantera de Minas". "Ela nunca foi uma leviana, era apenas livre", disse Sued à Veja.
Ângela teve diversos relacionamentos ao longo de sua vida. Ela se separou do marido, o engenheiro Milton Villasboas, em 1970, com apenas 26 anos. Na época, ainda não existia a legislação referente ao divórcio, então socialite era considerada "desquitada".
Outros casos amorosos incluem o rico herdeiro mineiro Tuca Mendes, o jovem banqueiro Fernando Moreira Salles, o jovem empresário Eduardo Viana e o banqueiro Baldomero Barbarã.
Doca Street e Ângela Diniz se conheceram em agosto de 1976. Um mês depois, o empresário deixou sua esposa, a milionária paulista Adelita Scarpa, e os filhos para viver com a socialite na casa que ela tinha em Búzios.
Ele se mostrou extremamente ciumento e passou a afastar Ângela de seus amigos e dos lugares que ela frequentava. Esse controle irritou Ângela. Logo, o casal passou a brigar constantemente.
Em 30 de dezembro de 1976, Doca e a socialite decidiram passar o dia na praia. Ângela bebeu drinques, o que irritou o empresário.
O estopim da briga foi a chegada da alemã Gabrielle Dayer, que ele acreditou estar tentando seduzir Ângela. O casal voltou para casa e continuou a discussão. Ângela, então, resolveu acabar o relacionamento.
Revoltado, Doca deu quatro tiros na socialite e fugiu para Minas Gerais.
O assistente da acusação, Evaristo de Morais Filho, lembrou ao júri que criminosos passionais se arrependem rapidamente do crime. Doca poderia ter desistido quando a arma travou depois do primeiro tiro. Mas ele destravou a Beretta e deu mais três tiros.
O primeiro julgamento de Doca Street ocorreu em outubro de 1979, em Cabo Frio.
A defesa foi comandada pelo renomado criminalista Evandro Lins e Silva, veterano do STF, indicado pelo governo João Goulart e de lá retirado pelo regime militar.
Por 5 votos a 2, Doca foi condenado por homicídio culposo e imediatamente beneficiado pela suspensão condicional da pena, um benefício legal que suspende a execução de uma pena privativa de liberdade.
A pena final foram dois anos com direito a sursis, o que significa que a pessoa tem a possibilidade de ter a sua pena de prisão suspensa pelo juiz, caso preencha determinados requisitos. O magistrado Francisco Motta Macedo colocou Doca em liberdade com esse dispositivo.
"Qualquer pessoa vê na ação de Raul Fernando Street o gesto de desespero, e profundamente deplorável, de um homem apaixonado, dominado por uma ideia fixa, que o levou a um gesto de violência, que não é comum à sua personalidade. O passional reage sempre assim, de maneira imprevista", disse Evandro em entrevista ao Globo na época.
Evandro Lins e Silva sustentou por duas horas, às quais somou 30 minutos na tréplica, que Doca Street deu quatro tiros no rosto da mulher com quem vivia "em legítima defesa da honra", depois de ter sofrido "violenta agressão moral".
O criminalista chamou Ângela de "Vênus lasciva", acusou-a de ser "dada a amores anormais" e, finalmente, comparou a morta à "mulher de escarlate de que fala o Apocalipse, prostituta de alto luxo da Babilônia, que pisava corações e com suas garras de pantera arranhou os homens que passaram por sua vida", segundo Veja publicou na época.
O júri foi considerado uma encenação de criminalistas, e a sentença que soltou Doca foi vista como um triunfo do "machismo brasileiro" pelo advogado Heleno Fragoso em 1979.
Após a controvérsia da decisão, o Ministério Público recorreu à ação. Em 1981, Doca foi condenado a 15 anos de prisão, cuja pena foi cumprida.
O empresário morreu em dezembro de 2020, aos 86 anos, em São Paulo, já em liberdade.
A alegação de "legítima defesa da honra" para tentar absolver Doca do caso e a afirmação dele de que teria matado"por amor" provocaram indignação dos movimentos de mulheres. Militantes feministas organizaram um movimento com o slogan "quem ama não mata".
A controvérsia, na época, chegou até ao poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, que afirmou: "Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras."
Em agosto de 2023, o STF proibiu, por unanimidade, o uso de "legítima defesa da honra" em casos de feminicídio.
Na ocasião, Cármen Lucia afirmou que a sociedade brasileira é "machista", "sexista" e "misógina" e citou uma "violência endêmica" contra mulheres. Ela ressaltou ainda que um feminicídio ocorre a cada seis horas no Brasil.
Rosa Weber afirmou que a tese reproduz valores de uma sociedade "patriarcal", "arcaica" e "autoritária".
"A teoria da legítima defesa da honra traduz expressão de valores de uma sociedade patriarcal, arcaica e autoritária, cuja cultura do preconceito e da intolerância contra as mulheres sucumbiu à superioridade ética e moral dos princípios humanitários da igualdade, da liberdade e da dignidade da pessoa humana", disse a ex-presidente do STF.
Dias Toffoli, o relator da questão, afirmou em seu voto que o argumento é "odioso, desumano e cruel" e que contribui "imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil."