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Universidades da Oceania mostram como será o futuro inovador da educação

Diretor da faculdade de Design e Tecnologia da Auckland University of Technology, na Nova Zelândia, fala sobre o ensino das próximas décadas

Campus da Auckland University of Technology: universidade se baseia em parcerias empresariais e corpo docente e discente internacional (Auckland University of Technology/Divulgação)

Campus da Auckland University of Technology: universidade se baseia em parcerias empresariais e corpo docente e discente internacional (Auckland University of Technology/Divulgação)

Mariana Fonseca

Mariana Fonseca

Publicado em 15 de março de 2019 às 06h00.

Última atualização em 15 de março de 2019 às 06h00.

Para ter um gostinho de como será um campus universitário das próximas décadas, uma boa pedida é passear por um dos espaços da instituição de ensino superior Deakin University, da Austrália. Fruto de um patrocínio de 30 milhões de dólares australianos da empresa australiana de energia Ausnet (cerca de 81,4 milhões de reais) em 2016, o campus inteligente é abastecido pelos seus próprios painéis de células solares, controlados remotamente por meio da internet das coisas (IoT). Nessa pequena cidade universitária autossustentável, a tecnologia informa quando é a hora de esvaziar o lixo ou trocar lâmpada -- e serve como laboratório de testes para os produtos da AusNet.

Outra instituição de ensino superior da Oceania, a neozelandesa Auckland University of Technology (AUT), coloca-se como uma “universidade do futuro” também por conta das parcerias com empresas líderes para trocas em tecnologia, conhecimento e corpo internacional discente e docente Na AUT, estudos de astronomia levaram ao desenvolvimento do telescópio espacial Warkworth, usado em missões espaciais da empresa americana SpaceX, do bilionário Elon Musk. O posicionamento se reflete para o resto da Nova Zelândia: em 2017, o país ficou em primeiro lugar num ranking elaborado pela The Economist Intelligence Unit, divisão de pesquisas da revista britânica, que mede as competências dos estudantes de 15 a 24 anos para as demandas de um mercado de trabalho em plena transformação.

Guy Littlefair, hoje diretor da Faculdade de Design e Tecnologias Criativas da AUT, tem em sua própria trajetória um exemplo vivo do que imagina para os estudantes das próximas décadas. Littlefair é engenheiro e especialista em usinabilidade de materiais, trabalhando para as fabricantes automotivas Land Rover, Rolls Royce e Toyota e para o Ministério da Defesa do Reino Unido. Ao mesmo tempo, acumula 25 anos no mundo acadêmico. Seu doutorado, sobre a aplicação da inteligência artificial em manufatura avançada, contou com patrocínio empresarial.

Experiência de mercado e de pesquisa não são excludentes -- para Littlefair, a parceria para criação do campus tecnológico criada durante seu tempo como diretor de Engenharia na Deakin University é um exemplo prático de como estudantes podem se conectar mais ao ensino superior e vislumbrar possibilidades de desenvolvimento pessoal e profissional.

“Os estudantes que chegam hoje a um curso superior não conheceram uma época sem internet e smartphones. Uma educação baseada apenas no papel não bastará. Se as instituições de ensino não tomarem o cuidado de se reinventar e olharem para o mundo como ele é hoje, correm um grande risco de se tornarem obsoletas”, afirma Littlefair.

O especialista participou de um workshop na Universidade de São Paulo durante a Science Meets Business Conference, parte da programação do evento de inovação aberta Open Innovation Week.

Veja, abaixo, os principais trechos da entrevista:

EXAME -- Por que universidades precisam se reinventar para a tecnologia e o empreendedorismo?

Guy Littlefair -- O mundo está mudando cada vez mais rápido e, para perceber isso, basta olhar para a ascensão e a queda de grandes negócios. O Uber parece uma empresa de táxis e o Airbnb parece uma empresa de locação de imóveis, mas ambos são apenas aplicativos. A Kodak foi a primeira empresa a desenvolver uma câmera digital, mas não aproveitou essa oportunidade -- e pagou caro por isso. A locadora Blockbuster não percebeu mudanças de hábito dos consumidores e acabou perdendo espaço para os streamings da Netflix.

Os estudantes que chegam hoje a um curso superior não conheceram uma época sem internet e smartphones. Uma educação baseada apenas no papel não bastará. Se as instituições de ensino não tomarem o cuidado de se reinventar e olharem para o mundo como ele é hoje, correm um grande risco de se tornarem obsoletas.

As universidades possuem séculos de existência e, desde então, têm permanecido quase as mesmas. Hoje temos diversas formas de obter informações, além de frequentar uma aula e ouvir “o sábio no estádio”. As instituições de ensino não podem mais se promover como exclusivamente passadoras de conhecimentos. Precisam se posicionar como facilitadoras para que os estudantes construam suas próprias conclusões e saibam filtrar informações para tomarem decisões melhores.

As universidades possuem um espaço fundamental para a sociedade e precisam evoluir para continuarem assim -- mostrando sua importância não só ao formar estudantes e cidadãos, mas ao colaborarem com indústrias em inovações. Elas precisam voltar a tomar seu lugar como provocadoras globais de pensamento, discutindo qual é o futuro e como chegaremos até lá.

De que forma as universidades podem colaborar com as empresas?

Quando pensamos na entrada das empresas nas universidades, geralmente associados apenas ao aproveitamento da propriedade intelectual de algum professor genial. Isso pode ser interessante para as companhias naquele momento, mas não costuma gerar benefícios indiretos para a universidade e para a sociedade.

Vemos oportunidades de parcerias muito mais duradouras. Instituições de ensino e indústrias devem levar em consideração três transferências -- de tecnologia, de conhecimento e de talentos.

Sobre a transferência de tecnologia, instituições de ensino possuem uma infraestrutura distinta das indústrias e podem compartilhar seus equipamentos e espaços. Já a transferência de conhecimento fala sobre como a indústria pode trabalhar com professores, para descobrir conhecimentos antes restritos ao ambiente acadêmico, e com os estudantes, mesmo que seja por meio de projetos de curta duração. Por fim, para fazer a transferência de talentos é preciso não apenas esperar que os alunos se formem para empregá-los, mas aproximar a indústria de sua jornada de formação.

A associação entre instituições de ensino e negócios já aconteceu em regiões como Boston, nos Estados Unidos. A cidade concentra universidades com diversas pesquisas em equipamentos médicos. Diversos desses talentos acadêmicos resolveram criar empresas baseadas em seus estudos. A presença desses professores e estudantes também atraiu multinacionais a criarem escritórios por lá, como Johnson & Johnson. Com isso, Boston se tornou um centro de inovação no setor para todos os EUA.

Guy Littlefair, hoje diretor da Faculdade de Design e Tecnologias Criativas da Auckland University of Technology

Guy Littlefair, hoje diretor da Faculdade de Design e Tecnologias Criativas da Auckland University of Technology (Guy Littlefair/Divulgação)

Geralmente, parcerias entre universidades e empresas costumam ser associadas a cursos que envolvem desenvolvimento de produtos, das engenharias aos cursos de saúde. Essa conexão pode se estender a outras carreiras?

É verdade que os cursos voltados a hardware são os preferidos, mas eu acredito que as disciplinas cursadas serão cada vez menos importantes. Quando falo hoje com indústrias, elas se preocupam menos se um estudante cursa engenharia mecânica ou elétrica e mais com as habilidades que possui. O aluno pode trabalhar com equipes? Entende balanços financeiros? Possui inteligência emocional? As universidades não costumam focar nesses requisitos, preferindo as hard skills, e poderiam assumir um papel mais genérico de prepará-los para um próximo passo, a ser complementado por empresas dispostas a desenvolver seus funcionários.

Como a universidade pode preparar os estudantes para atenderem a esse requisito, incluindo o desenvolvimento de uma mentalidade empreendedora?

Se esta conversa tivesse acontecido há dez anos, provavelmente não estaríamos conversando sobre como tornar os estudantes mais empreendedores. Mais e mais, as companhias que dominarão o futuro ainda não foram criadas. Aqueles que as fundarão são nossos estudantes de hoje.

Nós, educadores, devemos reconhecer aqueles estudantes que querem ter um papel empreendedor e aqueles que querem fazer isso de forma diferente. Eu mesmo sou um exemplo. Recém-formado, fui fazer uma entrevista de emprego e dei a clássica resposta de que, daqui a cinco anos, queria ser gerente da empresa. E ouvi que eles precisavam de mais engenheiros, que de fato desenvolvessem produtos, do que gerentes que mandassem nos outros.

Nem todo mundo é um empreendedor do jeito clássico e a universidade precisa entender como apoiá-los de diferentes formas. Não podemos cair na armadilha de treinar todos para serem líderes de equipes quando alguns podem se tornar ótimos técnicos e, depois, até podem criar projetos inovadores dessa forma.

Poderia dar alguns exemplos de como as parcerias com a indústria se dão?

A empresa de energia australiana AusNet procurou a Deakin University porque tinha como meta aumentar a participação feminina no seu negócio. O mais óbvio seria esperar que as melhores estudantes se formassem para fazer ofertas de emprego. Mas criamos bolsas de estudo para mulheres em cursos como engenharia elétrica, associadas a estágios nas férias e mentorias por executivos da companhia patrocinadora, e dessa forma elas conseguem desde cedo se envolvem com o curso e permanecer nessa profissão.

Com essa mesma companhia, percebemos um interesse em experimentar tecnologias para o futuro. Por meio de uma parceria, que envolveu um investimento de 30 milhões de dólares australianos por parte da Ausnet, estabelecemos um campus inteligente. O espaço possui painéis com células solares, geração de energia eólica e sistemas de esvaziamento de lixo e trocas de lâmpadas. Tudo é controlado por equipamentos remotos, baseados na internet das coisas (IoT).

Como tais associações podem trazer benefícios para além da universidade e da empresa envolvida?

Obviamente, esse tipo de parceria traz benefícios financeiros, empregatícios e de relevância para o setor envolvido. As universidades também possuem mais formas de garantir sua sustentabilidade, o que traz segurança aos seus stakeholders, incluindo estudantes e a própria população. As associações empresariais desmistificam a universidade para aqueles que estão fora dela.

No nosso caso, as parcerias também fazem parte de um esforço maior, de colocar Auckland como uma cidade inteligente e futurista e não apenas como um destino cheio de paisagens. Estamos em uma posição privilegiada, ligando a Ásia com a América Latina. Estamos nos tornando um hub, inclusive financeiro, e acho que a AUT pode assumir protagonismo em iniciativas de inovação que logo ganharão destaque internacional.

Quais obstáculos o Brasil pode enfrentar ao adotar uma estratégia similar?

O Brasil é parecido com outro país no qual trabalhei e lecionei nesse sentido: a Austrália. Diferente da Nova Zelândia e de locais como Israel, Austrália e Brasil são economias que podem ser bem-sucedidas se focarem em exploração de recursos primário e em seu mercado interno. O Brasil possui uma população enorme para ser atendida.

Com as devidas exceções, esse potencial interno cria uma falta de política de incentivo para o fomento de um ecossistema de inovação com mentalidade global, seja nas indústrias ou nas universidades.

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