Cunha, Carvalho e Salvador: a fabricante de mísseis do interior de São Paulo quer abrir seu capital em cinco anos para ganhar o mercado externo (--- [])
Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 03h34.
Desde 1991, quando foi fundada na cidade de São José dos Campos, no interior de São Paulo, a Mectron, fabricante de mísseis e equipamentos para satélites e aviões, sempre cresceu com recursos próprios. Seus criadores -- cinco engenheiros que cursaram a faculdade juntos -- construíram um negócio de 32 milhões de reais de faturamento anual, tendo o governo federal como grande cliente. É improvável que a empresa possa se expandir rapidamente dessa forma nos próximos anos. "Aqui no Brasil, já conquistamos nosso espaço", diz o pernambucano Azauhry da Cunha Filho, de 49 anos, diretor da Mectron. Os sócios acreditam que o mercado externo ofereça muito mais oportunidades. "Mísseis mais baratos, como os que produzimos, estão escassos lá fora", diz Cunha. Se ele estiver certo, o acesso ao exterior poderia fazer a Mectron ter um crescimento de 50% ao ano.
Desta vez será preciso dinheiro de fora dos muros da empresa para a empreitada. Durante meses, os sócios discutiram sobre onde buscar recursos. Financiamento bancário? Muito caro. Fundos de capital de risco? A busca poderia levar anos e nada garantiria que esses investidores seriam encontrados. Vender parte da Mectron para uma empresa maior? O controle poderia ser perdido. No ano passado, os donos da empresa decidiram-se por um caminho que, nos últimos tempos, vem atraindo o interesse de um número cada vez maior de empresas pequenas e médias -- a bolsa de valores. "Vamos abrir o capital em até cinco anos", diz Cunha. "Mas estamos nos preparando desde já."
Por décadas, a bolsa brasileira foi uma praia para empresas grandes, como Petrobras, Vale do Rio Doce e Gerdau, que têm faturamento anual de mais de 10 bilhões de reais. Nos últimos anos, uma série de transformações no país, como aumento de investimentos estrangeiros, estabilização da economia e perspectiva de queda na taxa de juro, está mudando essa situação. Desde 2005, companhias menores também vêm participando desse mercado. Das 26 empresas que estrearam na bolsa no ano passado, sete faturavam menos de 200 milhões de reais por ano. Os analistas esperam mais de uma dezena de emissões de companhias desse porte -- ou ainda menores -- até o fim de 2007. "Fomentar o crescimento de bons empreendimentos é uma vocação forte do mercado acionário", diz Raymundo Magliano Filho, presidente da Bovespa, a bolsa paulista, que criou o Bovespa Mais -- um espaço especial para receber as pequenas empresas.
As companhias hoje na bolsa não fizeram seu primeiro lançamento -- ou, como o pessoal do mercado gosta de dizer, IPO (sigla em inglês para oferta inicial de ações) -- da noite para o dia. Em muitos casos, foi resultado de uma decisão tomada anos antes, quando tinham metade do tamanho -- estágio em que empresas como a Mectron se encontram agora. "As regras do mercado acionário são rígidas e muitas companhias passam por profunda transformação cultural para se adaptar à nova realidade", diz Eduardo Monteiro da Silva Filho, advogado especializado em abertura de capital. "Essas mudanças podem levar muito tempo, e nunca é cedo demais para começar."
A lição de casa é grande e difícil. Para entrar no Novo Mercado, o pedaço da Bovespa mais desenvolvido e que concentra grande parte dos IPOs recentes, é preciso cumprir uma extensa lista de exigências. O objetivo é garantir transparência das informações divulgadas e profissionalização do relacionamento da empresa com analistas e investidores -- a chamada governança corporativa. Empresas no Novo Mercado precisam ter, por exemplo, conselho de administração independente, gestão profissional e balanços dos últimos três anos chancelados por uma auditoria de padrão internacional.
Pode acontecer de, no meio do processo, um fato novo fazer o empresário suspender os planos de abrir o capital. "Isso não significa que todo o trabalho de preparação tenha sido perda de tempo", diz José Eduardo Carneiro Queiroz, sócio do escritório de advocacia Mattos Filho, freqüentemente contratado para assessorar IPOs. "A transparência aumenta o interesse de fundos de investimento que colocam dinheiro em empresas promissoras e melhora a avaliação dos bancos na hora de dar empréstimos." Por causa disso, muitas pequenas e médias empresas estão empenhadas em cumprir os requisitos exigidos pelo mercado -- mesmo que a decisão final de abrir ou não a empresa nem tenha sido tomada.
O matemático Gilmar Batistela, de 46 anos, cogita um dia abrir o capital de sua empresa, a Resource, integradora de soluções de tecnologia da informação que colheu uma receita de 58 milhões de reais em 2006. "Não tenho certeza ainda se é a melhor estratégia para nós, mas quero estar preparado para essa possibilidade, que é real", diz Batistela. Recentemente, a Resource contratou um diretor financeiro com mais de 15 anos de experiência. Sua missão é levar as práticas contábeis da empresa a níveis máximos de profissionalização.
A transição pela qual a Resource está passando não costuma ser fácil nos pequenos e médios negócios -- sobretudo naqueles de estrutura familiar, que nem sempre têm gestão profissionalizada. "Para esses empresários, abrir o capital significa sair da condição de dono para virar sócio e compartilhar o poder", diz o consultor Renato Bernhoeft, um dos maiores especialistas em empresas familiares. "Para quem sempre reinou soberano e resolvia tudo sozinho, ir à bolsa requer determinação."
Os sócios da Mectron vivem esse momento agora. Desde os primórdios da companhia, eles esforçaram-se para repartir o poder em partes iguais. "Nós adequávamos o organograma a cargos às vezes desnecessários para evitar desequilíbrio de poder", diz o sócio Rogerio Salvador, de 49 anos. Mais recentemente, quando eles começaram a buscar informações sobre o funcionamento das bolsas, ficou claro que esse tipo de raciocínio não tinha nenhuma lógica para os investidores. Nessa época, a Mectron despertou o interesse do BNDESPAR, fundo de participações do BNDES. Em dezembro de 2006, a empresa assinou um acordo para receber um aporte de 15 milhões de reais desse fundo.
A entrada do BNDESPAR é um passo importante no processo da Mectron rumo à bolsa -- a cláusula de saída do fundo prevê a abertura de capital da empresa em, no máximo, cinco anos. No contrato, ficou estabelecido que a Mectron só receberia o dinheiro depois que implantasse algumas práticas de governança. A primeira grande novidade aconteceu no início deste ano, quando foi criado um conselho de administração, formado por um dos sócios e dois especialistas externos. "Foi difícil aceitar que pessoas de fora decidissem sobre questões internas da empresa", diz o sócio Carlos Alberto Carvalho, de 44 anos. As missões do conselho estão quebrando tabus na Mectron. A primeira foi a contratação de um diretor financeiro experiente -- antes, os sócios revezavam-se no comando das finanças. Depois, Cunha foi eleito presidente, algo inconcebível pouco tempo atrás.
O caminho que a Mectron está percorrendo -- receber aporte de um fundo para ganhar musculatura e depois ir à bolsa -- é comum nos Estados Unidos. "Aqui no Brasil, isso também começa a acontecer", diz Marcus Regueira, presidente da ABVCAP, associação que reúne fundos de venture capital, que injetam dinheiro em empresas promissoras. Foi assim com a paulista Odontoprev, de planos odontológicos, e com a gaúcha Lupatech, que fabrica equipamentos industriais. Ambas entraram na bolsa em 2006, depois de ter sido contempladas com aportes de fundos de venture capital.
Ir aos pregões pode fazer parte de uma estratégia de expansão mais complexa do que apenas captar recursos para financiar projetos. Adquirir outras empresas concorrentes, por exemplo, é um destino possível para o dinheiro dos investidores. Menos de um mês após abrir o capital, a Odontoprev, que fatura 143 milhões de reais por ano, fez uma oferta de compra da concorrente paulista DentalCorp, de 22 milhões de reais de faturamento. "A incorporação de outras empresas faz parte de nossa estratégia de crescimento", diz José Roberto Pacheco, diretor de relações com investidores da Odontoprev. A Lupatech, por sua vez, já adquiriu cinco empresas desde que abriu o capital.
A gaúcha Memphis, fabricante do sabonete Alma de Flores, teve 100 milhões de reais em receita em 2006. Avançar num mercado ocupado por empresas globais, como Unilever e Colgate-Palmolive, nunca foi fácil. E, nos últimos tempos, novos concorrentes entraram no setor, como os frigoríficos Friboi, que produz sabonetes da marca Albany, e Bertin, dono da OX. Até há pouco tempo, Carlos Alberto Kroeff, de 56 anos, presidente da Memphis, sentia orgulho ao dizer que a empresa nunca precisara de dinheiro dos outros para ir em frente. Não é mais assim. "A companhia continua capitalizada e rentável, mas estamos estudando aquisições de marcas menores para crescer num mercado muito concorrido", diz Kroeff. "A bolsa pode ser uma grande oportunidade de buscar recursos para fechar esses negócios", diz Clóvis Cortesia, diretor comercial da Memphis. Segundo ele, a decisão será tomada no máximo daqui a um ano.
Das razões para uma pequena ou média empresa abrir o capital, a mais elementar é a busca por financiamento para algum tipo de expansão. Mas há outros motivos válidos. Na área do marketing pode estar a intenção de projetar uma marca. No âmbito de RH pode haver a estratégia de reter os melhores funcionários, recompensando-os com planos de opções de ações. Há ainda a possibilidade de encontrar saídas para enroscos societários ou questões sucessórias.
É esse o caso da fabricante gaúcha de componentes de freios Controil, com receita de 92 milhões de reais em 2006. O capital social da empresa é dividido entre três famílias. Em 2001, a morte de um dos sócios alertou o administrador de empresas Leonildo Bernardon, de 63 anos, presidente da Controil, para a dificuldade sucessória. "Percebi que abrir o capital poderia ser uma forma de resolver a questão", diz ele. "Com ações em bolsa, o sócio que quiser sair tem uma visão realista do valor do negócio." A decisão de abrir a empresa ainda não foi tomada, mas a Controil já avançou nessa direção. As famílias fizeram um acordo para que parentes não assumam cargos executivos e, em 2005, um conselho de administração foi organizado. A Controil também contratou os serviços de uma auditoria, que divulga mensalmente um demonstrativo de resultados para seus 529 funcionários.
Ir ou não à bolsa é algo que deve ser definido pelo conselho de administração da Controil neste ano. "Uma vez tomada a decisão, estaremos prontos em seis meses", diz Bernardon. Um dos aspectos que estão sendo avaliados é o tamanho da companhia. "Acho a empresa pequena, embora a Bovespa diga que não", diz. Especialistas consideram essa preocupação pertinente. "Tamanho é um fator que deve ser bem avaliado ao abrir o capital", diz Marcelo Tommasi, sócio da consultoria Terco Grant Thornton, especializada em empresas médias.
Uma conta relacionada a tamanho diz respeito aos custos. Segundo a Bovespa, numa emissão de ações de 100 milhões de reais, uma companhia com faturamento de até 200 milhões de reais gasta, em média, 4,3 milhões de reais. E, uma vez aberta, ela tem custo anual de 537 000 reais para continuar no pregão. "Esses valores praticamente inviabilizam a entrada de empresas com faturamento muito baixo", diz Ricardo Rochman, professor de finanças da FGV.
Desse valor, 80% podem ficar com os bancos responsáveis pela emissão -- se a empresa optar por instituições experientes, como Credit Suisse e UBS Pactual, que, com o Itaú BBA, responsabilizaram-se pelos papéis da Odontoprev. "Os bancos apresentam a empresa aos investidores e ajudam a decidir detalhes importantes", diz Pacheco, da Odontoprev. "Não vale a pena economizar nesse item." É possível que, nos próximos anos, esse custo diminua. "Há instituições entrando com força nesse pedaço do mercado, como o Bradesco", afirma um consultor do setor. "A competição vai derrubar os preços cobrados pelos bancos."
Além dos custos, a preocupação dos pequenos e médios empresários é quanto, do capital total, despejar na bolsa. "Não há uma regra clara, mas emissões abaixo de 200 milhões de reais são mais difíceis de ser bem recebidas", diz Caetano Fabrini, superintendente de mercado de capitais do banco Fator. O grande comprador das ações dos últimos IPOs brasileiros foram fundos de investimentos americanos e europeus, que arremataram 70% do volume ofertado. "Com tantas oportunidades para estudar pelo mundo, esses investidores nem se dão ao trabalho de analisar uma oferta muito pequena", diz Fabrini. Isso explica, em parte, o que ocorreu com a catarinense Renar Maçãs no início de 2005. Com faturamento anual na casa dos 50 milhões de reais, a emissão de 16 milhões não despertou o interesse dos estrangeiros. "Não buscamos os grandes investidores e isso prejudicou o valor dos papéis logo após a abertura", diz Gelmir Antonio Bahr, diretor de relações com investidores da Renar.
Para fazer emissões mais atraentes, muitas companhias de menor porte têm colocado à venda fatias bem maiores do que os 30% do total de papéis com direito a voto, praticados na maioria dos IPOs. Foi o que fizeram a fabricante de softwares catarinense Datasul, de 129 milhões de reais de faturamento anual, e a incorporadora paulista Klabin Segall, de 100 milhões. Após ir à bolsa, seus antigos donos agora controlam menos de um terço da companhia. Para o analista Marco Aurélio Barbosa, da corretora paulista Coinvalores, aumentar o volume de ações para melhorar a liquidez pode ser feito, mas não é bom que o objetivo se resuma a isso. "Uma empresa pequena não deveria fazer uma emissão grande demais para seu tamanho e depois não ter onde usar o capital arrecadado", diz Barbosa.
No mercado acionário, em que a percepção que os investidores têm de uma empresa pode pesar tanto ou mais que seu valor intrínseco, a opinião de gente como Barbosa importa -- e muito. Um dos maiores desafios de uma empresa aberta, de qualquer tamanho, é fazer com que suas estratégias sejam bem compreendidas pelo mercado. Mas nem sempre os investidores interpretam os movimentos de uma empresa com a mesma lógica de seus donos ou executivos. É o que pode estar ocorrendo com a corretora de imóveis Lopes, de São Paulo, que abriu o capital no fim de 2006. Ela emitiu 475 milhões de reais em ações. "Quisemos elevar a Lopes a um patamar de profissionalização mais alto", diz Roberto Martins Amatuzzi, diretor financeiro da corretora. Muitos analistas, porém, acharam que o objetivo era mais trivial. Desde o início de 2006, mais de uma dezena de construtoras e incorporadoras entraram na bolsa. Na visão desses analistas, a Lopes aproveitou a onda favorável no setor para fazer o que uma corretora sempre tenta, que é obter o melhor preço possível numa venda -- no caso, o melhor preço para ela mesma.