Afonso: "Nunca fiz sociedade com quem só traz dinheiro para o negócio" (Leo Neves)
Da Redação
Publicado em 18 de junho de 2013 às 09h56.
São Paulo - O empreendedor Humberto Salvador Afonso, de 58 anos, passou boa parte da infância nos bares e lanchonetes abertos por seu pai, um imigrante português que chegou ao Brasil na década de 50.
"Cresci no comércio e acho que foi assim que comecei a acalentar o sonho de ter meu próprio negócio", diz ele. Sua primeira empresa, uma fabricante de ingredientes para a indústria de alimentos, foi vendida no ano 2000 para uma multinacional irlandesa.
Hoje, Afonso é dono do Kairós, grupo formado por 11 fábricas de alimentos, que juntas faturaram 251 milhões de reais no ano passado — a principal delas, com sede em Campinas, é a Alibra, fabricante de compostos lácteos. Nesta entrevista a Exame PME, ele conta um pouco de sua trajetória.
"Sou filho de um casal de portugueses que imigrou para o Brasil nos anos 50. Ao chegar, meus pais se instalaram no Rio de Janeiro, onde ao longo dos anos abriram pequenos comércios, como bares e lanchonetes. Quando não estava na escola, passava boa parte do meu tempo nesses estabelecimentos da família. Eu me criei no comércio, literalmente.
Quando completei o ensino médio em Campinas, chegou a hora de escolher uma faculdade, então decidi cursar engenharia de alimentos. Nessa época, tinha o sonho de abrir meu próprio negócio. Mas antes disso achava fundamental ganhar experiência. Por isso comecei a procurar emprego na indústria de alimentos.
Cheguei a trabalhar na área técnica de duas indústrias alimentícias, mas queria mesmo ter a chance de conhecer melhor a área comercial de uma grande empresa. Essa oportunidade apareceu quando fui convidado para trabalhar na Danisco, fabricante de ingredientes para a indústria alimentícia de origem dinamarquesa. Nesse emprego, além de vender, passei a cuidar também da compra de matérias-primas.
Aprendi muito na Danisco e, enquanto estava lá, cursei pós-graduação em finanças. Nessa época, tinha economizado algum dinheiro e comecei a achar que era hora de empreender. Pedi demissão e convidei um colega para ser meu sócio. Juntamos o equivalente a 50.000 dólares e abrimos a Star e Arti, pequena empresa de ingredientes usados por panificadoras e fabricantes de sorvetes.
A primeira fábrica ficava num barracão. O começo foi muito difícil. Além de cuidar das compras de matérias-primas, atender os clientes e ajudar na produção, eu mesmo fazia as entregas. Os contatos que fiz enquanto trabalhava para outras empresas ajudaram a conquistar mercado. Entre nossos compradores havia desde pequenas padarias até grandes fabricantes de alimentos.
A Star e Arti cresceu rapidamente. Em 1998, fui procurado pela Kerry, empresa de origem irlandesa que produz ingredientes para a indústria alimentícia. Ela ainda não tinha muita presença na América Latina e fez uma proposta para comprar a Star e Arti. A negociação demorou alguns meses. Eu e meu sócio acabamos vendendo a empresa por cerca de 12 milhões de dólares.
Depois da venda, não deixei o negócio imediatamente. Durante dois anos, trabalhei como diretor comercial da Kerry no Brasil. Em 2000, achei que era momento de empreender novamente. Foi quando fundei a Alibra. Havia uma dificuldade.
Ao vender minha primeira empresa, tinha concordado com uma cláusula que me impedia de abrir um negócio que concorresse com a Kerry durante determinado prazo. Por isso, ao planejar meu novo negócio, decidi me concentrar na produção de alimentos para vender no varejo.
Comecei a nova empresa produzindo compostos lácteos, uma espécie de mistura mais barata para substituir o leite em pó integral. Nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, esse tipo de produto é bastante vendido como ingrediente para fabricantes de alimentos. Percebi que os compostos lácteos poderiam ter espaço para crescer no varejo brasileiro.
Nossos primeiros clientes foram empresas que compravam o composto lácteo para montar cestas básicas para vender em redes de supermercados. Também busquei distribuidores no interior do país.
Nossos produtos conquistaram consumidores em regiões do Brasil onde menos consumidores tinham geladeira, como no Norte, no Nordeste e no Centro-Oeste. Nesses locais, por falta de refrigeração, os consumidores preferem leite em pó.
Pouco tempo depois de abrir a Alibra, surgiu uma boa oportunidade. Os fabricantes de queijo estavam com um problema grave para resolver. Muitos deles não davam o destino correto ao soro, um dos principais subprodutos do queijo, e por isso estavam sujeitos a tomar multas dos órgãos de fiscalização ambiental.
Acontece que o soro do queijo, rico em proteínas, lactose e minerais, pode ser usado como matéria-prima dos compostos lácteos. Tive a ideia de abrir uma fábrica no oeste do Paraná, onde há muitas queijarias, e poderia comprar o soro a um preço competitivo.
Foi assim que, em 2004, abrimos uma unidade no município paranaense de Marechal Cândido Rondon. Para construí-la, pedi um financiamento ao BNDES. Não sou contra tomar empréstimos e fazer dívidas para impulsionar o crescimento, desde que esse tipo de operação seja feito de forma criteriosa para manter o equilíbrio financeiro do negócio.
Nessa mesma época, chegou ao fim o período em que, por contrato, eu ficara proibido de atender clientes industriais. Retomei, então, meus antigos contatos e fui à busca da clientela. Atualmente, cerca de 65% do faturamento provém de clientes industriais dos mais diversos segmentos, como fabricantes de pães, sorvetes, chocolates e sobremesas. O restante vem, principalmente, das vendas de varejo e de exportações.
Com o tempo, foram surgindo novas oportunidades de abrir outros negócios para atender os mesmos clientes, muitas vezes em sociedade com outros empreendedores. A Alibra se tornou o embrião do grupo Kairós, atualmente formado por fabricantes de pescados enlatados, bebidas, sucos, energéticos e queijos processados, por exemplo.
Uma dessas empresas vai começar a produzir, ainda neste ano, um equipamento de refrigeração que consome menos energia elétrica, usando uma tecnologia desenvolvida por pesquisadores que se tornaram meus sócios.
Costumo investir em negócios nos quais vejo possibilidade de aproveitar sinergias. Um exemplo: os mesmos varejistas que compram os produtos da Alibra também podem ser clientes para os pescados enlatados. A equipe comercial, nesse caso, é a mesma. Ao todo, o faturamento do grupo Kairós deve chegar a 280 milhões de reais em 2013.
Tenho sócios em praticamente todas as empresas. Nunca fiz sociedade com ninguém que entrasse no negócio apenas com o capital. Sempre procuro pessoas com experiência e conhecimento na área em que vão atuar e que possam trabalhar na empresa.
Até agora, administrei cada empresa de forma independente, mas chegou a hora de mudar. Por isso, estou criando uma holding para reunir todos os negócios. Considero essa reorganização um movimento muito importante para o futuro das minhas empresas.
A criação da holding pode, inclusive, facilitar um futuro processo de sucessão no comando dos negócios da família, embora eu ainda não pense muito nisso. Hoje, conto com o apoio da minha mulher, que participa da administração — ela é nutricionista e uma profissional muito dedicada e competente. Dos meus três filhos, só um trabalha comigo. Além disso, soube me cercar de funcionários qualificados, capazes de ajudar na gestão das empresas.
Discordo daqueles que chamam os empreendedores brasileiros de heróis. Parece até que o dono de uma empresa abre um negócio por obrigação. Para mim, o empreendedor deve fazer o que gosta e ter prazer no que faz. Além disso, deve estar preparado para enfrentar os mais diversos problemas e ter uma dedicação extrema. Ainda hoje, muitas vezes levo serviço para casa e trabalho em muitos fins de semana. Quer saber? É a vida que escolhi — e adoro fazer isso."
Com reportagem de Antônio Carlos Santomauro