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O clubinho masculino do Vale do Silício

Uma jornalista de tecnologia revela as histórias picantes e as regras não escritas que tornam o jogo da tecnologia tão árido para as mulheres

Travis Kalanick: ele investiu 150 milhões de dólares em seu novo empreendimento (Stephen Lovekin for OurTime.org/Getty Images)

Travis Kalanick: ele investiu 150 milhões de dólares em seu novo empreendimento (Stephen Lovekin for OurTime.org/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 19 de maio de 2018 às 10h12.

Última atualização em 19 de maio de 2018 às 10h59.

 Brotopia: Breaking Up the Boys’ Club of Silicon Valley

Autora: Emily Chang

Editora: Penguin Publishing Group

320 páginas

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Vamos começar pelas partes que mais interessam: os exemplos picantes. É isso, afinal de contas, que compõe o cerne da cultura machista e adolescente do Vale do Silício. E, embora espalhados para esboçar uma tese sobre como consertar os abusos da elite tecnológica, os exemplos estão lá, no livro da jornalista Emily Chang, uma âncora da TV Bloomberg.

Os casos não chegam a horrorizar, porque sabemos todos que o machismo grassa no planeta, e que a vida das mulheres no mercado de trabalho é mais difícil que a dos homens em praticamente todos os aspectos. Mas representam um fenômeno ainda mais preocupante que o já alto nível de desigualdade de gênero, principalmente por dois motivos: primeiro, porque o Vale do Silício se tornou um centro de difusão cultural, com enorme influência sobre os rumos da sociedade; em segundo lugar, pela patente contradição – o discurso dos devotos da tecnologia é o da modernidade, da transformação do mundo, do idealismo, da meritocracia. Um ambiente assim não deveria ter episódios como esses, retratados por Emily:

  • Uma jovem, que ambicionava ser gerente de produtos na Cooliris, uma firma que desenvolve produtos para visualizar fotos digitais, foi aconselhada a criar alianças com os engenheiros da empresa. Num dos almoços, um engenheiro lhe disse apostar que podia ofendê-la. Ato contínuo, aproximou o rosto do seu e disse: “Você é uma besta completa, e não entende nada. Você só presta para ser arrastada até o estacionamento e estuprada.” Claro, é possível encontrar loucos em qualquer lugar, mas é mais provável encontrar um abuso desses numa empresa em que o CEO distribuiu cópias do Kama Sutra aos funcionários e costumava dizer “graças a Deus nós não temos um departamento de RH por aqui”.
  • O executivo Eric Schmidt, trazido para o Google pela dupla de fundadores para servir como “supervisão adulta” para o negócio, foi apontado em 2013 como um mulherengo contumaz, que tinha casos extraconjugais em série, incluindo uma mulher (que teria inspirado a personagem Samantha, a mais liberada sexualmente da série Sex and the City) que lhe deu o apelido de Dr. Strangelove – referência ao cientista louco do filme de Stanley Kubrick (que no Brasil se chamou Dr. Fantástico).
  • No primeiro dia em uma nova equipe no Uber, a engenheira de software Susan Fowler recebeu uma mensagem do seu chefe dizendo que ele estava num relacionamento aberto, mas se incomodava porque a namorada tinha muito mais sucesso que ele em conseguir parceiros, e sugeria que eles poderiam ter um caso. Fowler reportou o assédio ao RH, mas lhe responderam que ele era um talento valioso e que não valia a pena puni-lo pelo que provavelmente era apenas um “erro inocente”. (O post em que Fowler contou essa história precipitou uma série de ataques à cultura do Uber e, algum tempo depois, a queda do seu CEO, Travis Kalanick).
  • O próprio Kalanick era uma fonte de disseminação desses comportamentos. Quando namorava a violinista Gabi Holzwarth, ele a encorajava a encontrar outras mulheres para fazer sexo a três. Também ficou famosa a ocasião em que levou um grupo de executivos do Uber a um bar de karaokê em Seul, na Coreia do Sul, onde as atendentes, todas de minissaia, usavam números nas costas para que os clientes as chamassem para conversas mais reservadas. Uma executiva do Uber fez parte do grupo e reportou depois ao RH que se sentiu “péssima”.
  • E, quando uma funcionária, Ana Medina, disse a Kalanick que o ambiente no Uber era tão sexista e tóxico que o único modo que ela encontrou para não entrar em colapso foi fumando maconha todos os dias, a resposta dele foi: “puxa, Ana, eu nunca fumei maconha; talvez você devesse me fazer experimentar pela primeira vez”.
  • Em outra empresa, uma jovem relatou que o local oficial para o happy hour era o Hooters, a rede de lanchonetes conhecida por suas garçonetes peitudas. Numa outra firma, uma mulher relatou ter sido atacada perto dos arbustos em um encontro da empresa, por um colega casado. Em outro relato, um homem apareceu na porta do quarto de hotel de uma colega, dizendo “cinco minutos, eu só quero cinco minutos” e, quando ela se recusou a fazer sexo, ele começou a se masturbar na sua frente.
  • Emily também fala sobre as festas do Vale do Silício. Mais ou menos uma vez por mês, numa sexta ou num sábado, um seleto grupo da elite da tecnologia se reúne para festas com muitas drogas e muito sexo. As relações poliamorosas, diz ela, são razoavelmente comuns no Vale do Silício. A droga mais usada nessas festas é o MDMA, o Ecstasy, que reduz inibições afetivas e é conhecido como “droga do amor”. Nas E-parties, como são chamadas, é comum que as pessoas se engalfinhem numa “concha coletiva”, diz ela, citando fotos de eventos do tipo que circularam em redes sociais.
  • Uma das primeiras empresas a estabelecer a “cultura bro” (o termo vem de brother, irmão, um modo comum de jovens recém-saídos da adolescência se tratarem) foi a Trilogy, uma companhia de softwares. O mote era trabalhar duro, e cair na farra com tudo. O tudo incluía jogatina e strippers. Para atrair talentos recém-saídos da universidade, a Trilogy usava recrutadoras “gostosas e de 22 anos”, de acordo com um ex-empregado. O fundador da empresa, Joe Liemandt, era conhecido como Joe Cem Dólares, pelas notas que apostava no pôquer, para onde levava os empregados. Não exatamente um ambiente que atraísse muitas mulheres.

Com uma cultura assim, não é de espantar que haja tão poucas mulheres no mundo do trabalho do Vale do Silício. No ano passado, o Google tinha 31% de mulheres em sua força de trabalho, e só 20% nos cargos técnicos vitais. No Facebook, as taxas eram de 35% no total, 19% nos cargos técnicos.
A situação só piora para as minorias: mulheres negras ocupam só 3% dos cargos em computação, e latinas apenas 1%.

Não era assim no início. As mulheres foram pioneiras em programação de computadores – mas numa época em que a profissão era encarada como similar ao trabalho de secretária. Quando passou a adquirir status, as mulheres foram sendo deixadas de lado.

É um fenômeno conhecido. A elevação da quantidade de mulheres em uma determinada área é concomitante à perda de poder e influência dessa área. Profissões antes tidas como humanistas e futuristas, como arquitetura, eram quase exclusivamente masculinas; a entrada das mulheres coincide com sua perda de prestígio – o campo ficou mais técnico, mais assalariado, menos influente.

Isso quando o campo não se subdivide. Em medicina, por exemplo, as mulheres conquistaram a paridade em várias sociedades. Mas elas são maioria em especialidades não-invasivas, de cuidados mais “suaves”, como dermatologia ou nutrição, e os homens são esmagadora maioria nas especialidades mais incisivas, como a cirurgia, ligada a estereótipos masculinos de assertividade, racionalidade, agressividade. E adivinhe quais são as especialidades mais bem pagas?

As origens da cultura “bro”

Em seu livro, Emily traça um bom histórico de como o Vale do Silício desenvolveu sua cultura “bro”. Alguns pontos parecem um pouco exagerados, como a identificação do início de todos os problemas na escolha de uma fotografia de uma modelo da Playboy para um teste de transmissão de cores.

A foto se disseminou como padrão, e é verdade que num ambiente com mulheres ela provavelmente não teria sido escolhida, mas a foto parece ser um sintoma, e não tão forte, em vez de uma causa.

Mais importante foi o fato de que, em 1960, com a computação ganhando importância, uma companhia de software contratou dois psicólogos para determinar os perfis de pessoas que melhor se adaptariam a essa profissão. Uma pesquisa com 1.378 programadores, dos quais apenas 186 mulheres, concluiu que as pessoas que teriam mais satisfação com esse trabalho seriam jovens do sexo masculino que “não gostam de gente”.

Ora, uma pesquisa com um universo já enviesado para o público masculino acabou se disseminando e criando o estereótipo dos nerds, jovens desajustados que se encontram no universo tecnológico.

Como bem aponta Emily, há pouca evidência de que pessoas antissociais sejam mais capazes em matemática do que gente que gosta de gente. Faz algum sentido que, ao não gostar de atividades sociais, alguém acabe por se dedicar mais a tarefas solitárias, e a matemática poderia oferecer um refúgio (embora, como qualquer campo do conhecimento, o contato com outras pessoas seja imprescindível). Mas isso apenas significa que os tímidos podem gostar da área, não que os extrovertidos não se deem bem nela.

De qualquer forma, o estereótipo se firmou a ponto de alcançar Hollywood nos anos 1980, e entrou no imaginário popular com filmes como A vingança dos nerds. A busca por gente desse perfil, baseada no estereótipo, criou uma realidade que reforçou o estereótipo, num ciclo vicioso que alimentou mais restrições a mulheres e mais filmes e séries sobre jovens socialmente incompetentes que fazem sucesso no setor.

Parte dos exageros sexuais, segundo alguns dos entrevistados por Emily, tem a ver com esse perfil: jovens que não faziam sucesso na faculdade e agora, com muito dinheiro, querem “tirar o atraso”. E tratam o sexo oposto como objetos de conquista e de consumo.

A figura e o sucesso da Apple acrescentaram um novo elemento ao estereótipo: na dupla de Steves, Wozniak era o gênio da programação e Jobs era o visionário autoconfiante. E esse passou a ser o padrão buscado por investidores para financiar empreendedores de tecnologia.
Com o tempo, criou-se o padrão de arrogância do Vale. E uma identificação triplamente equivocada entre “macheza” e coragem, coragem e capacidade de tomar riscos de negócios, e entre esta e o sucesso.

Assim, o investidor Chris Sacca disse a Emily, em 2015, que considerava impressionante a resiliência de Travis Kalanick. Seu exemplo: ele conseguia passar de oito a dez horas numa banheira de água quente. “Eu nunca vi um ser humano com esse tipo de poder”, afirmou Sacca.

À parte o fato de ser estranho um encontro entre investidor e empreendedor numa banheira (outra prática que afasta mulheres da elite da tecnologia), o que essa resistência ao calor diz sobre a capacidade de criar um negócio lucrativo?

Talvez diga algo. Afinal, a banheira precisou esquentar muito para que Kalanick concordasse em deixar seu posto de CEO do Uber, no ano passado.
Emily também aceita tacitamente a ligação, mas a considera desastrosa, em vez de auspiciosa. No que parece ser outro exagero, ela sugere que, se houvesse mais mulheres em cargos executivos no Vale do Silício, haveria menos falências, como aquela onda generalizada de fracassos na virada do milênio.

O problema de aceitar essa opinião é que ela provavelmente levaria à conclusão de que, por outro lado, haveria também menos rupturas de negócios estabelecidos. Afinal, os riscos (que segundo essa interpretação seriam uma característica mais masculina) valem tanto para os erros quanto para os acertos.

No geral, porém, o recado dela está muito bem amparado por evidências. Não só as estatísticas: 90% das mulheres do setor dizem já ter sido vítimas de assédio, 84% dizem já ter sido consideradas agressivas demais no trabalho, 66% já se sentiram excluídas de atividades de networking, 59% acreditam não ter recebido as mesmas oportunidades que colegas do sexo masculino.

Numa inspirada provocação, Emily entrevistou uma profissional transgênero. Assim como o mítico profeta grego Tirésias, que foi transformado pelos deuses e viveu como mulher durante sete anos, Lydia Fernandez tem as duas perspectivas sobre o mercado de trabalho no Vale do Silício. E a diferença, afirma, é “como da noite para o dia”.

Quando se apresentava como homem, Fernandez raramente sofria interrupções. Quando passou a se apresentar como mulher, os homens subitamente começaram a interrompê-la no meio das frases.
Não é que essa cultura seja insuportável. Mas provoca um estresse extra – de resistir a cantadas várias vezes ao dia, todos os dias, de ser levadas menos a sério que os homens, de ser menos reconhecidas.

O fenômeno se repete no mundo dos investidores – que financiam muito menos mulheres que homens. E se intensifica em setores como o de games, onde a situação facilmente desemboca para ameaças de estupro e morte.
Não é à toa que tantas mulheres se sintam menos atraídas pelo jogo da tecnologia, e tantas o abandonem depois de poucos anos de prática.
E isso provoca efeitos para todos. Um exemplo: a primeira versão do aplicativo de saúde da Apple, tão bem recebido pelas críticas, tinha a capacidade de verificar o seu nível de álcool no sangue… mas não tinha nenhuma menção à menstruação.

O aplicativo foi corrigido, mas no ano passado, quando abriu seu novo campus, o Apple Park, o prédio tinha maravilhas como uma sala de yoga de dois andares, elevadores rotativos, 9.000 árvores resistentes à seca… mas nenhuma creche.

Um ambiente de trabalho voltado para jovens com poucas habilidades sociais e uma dose acima do normal de arrogância não é apenas prejudicial às mulheres. É um problema para todo mundo.

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