Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta (Renato Stockler/Feira Preta/Divulgação)
Mariana Desidério
Publicado em 29 de fevereiro de 2020 às 06h00.
Última atualização em 29 de fevereiro de 2020 às 06h00.
É o empreendedorismo que faz a população negra emergir 132 anos após a abolição da escravidão no Brasil. A afirmação é de Adriana Moreira, criadora da Feira Preta, iniciativa que começou há 18 anos como uma alternativa para ela e uma amiga “se virarem” e hoje reúne empreendedores e consumidores negros em um ambiente de produção cultural, artística e circulação de ideias. A edição mais recente, no final de 2019, foi visitada por mais de 35 mil pessoas e contou com 170 expositores – majoritariamente negros.
Adriana celebra agora a criação da PretaHub, plataforma de aceleração e incubadora de negócios que passa a concentrar todas essas iniciativas. A empreendedora social, eleita em 2017 uma das 51 pessoas negras mais influentes do mundo pela Mipad (Most Influential People of African Descendent, ou pessoas afrodescendentes mais influentes do mundo), conta sobre sua trajetória e como é empreender sendo negro no Brasil.
Como surgiu a Feira Preta?
Em 2002, eu estava fora do mercado de trabalho formal. Eu e uma amiga na mesma situação resolvemos empreender para sobreviver. Formamos uma dupla do que chamamos de “sevirologia”, que é a arte de “se virar”. Começamos a circular por feiras. Minha amiga vendia pastel e eu vendia as minhas roupas, em um brechó de troca. Na época, a Vila Madalena fervia de casas de black music e éramos frequentadoras. Observamos o deslocamento de jovens negros de regiões periféricas para lá para o consumo e também para a produção, como DJs, bandas e técnicos de som. Era uma cadeia de produção e consumo negros. O que me deixava incomodada era que, no fim da noite, quem colocava a mão no dinheiro eram os homens brancos. Foi assim que decidimos criar a Feira Preta.
A primeira edição foi em 2002 na praça Benedito Calixto, em Pinheiros. A ideia era justamente fazer o mapeamento do afroempreendedorismo. Depois de todo o nosso percurso em feiras, decidimos fazer a nossa própria. Conseguimos um patrocínio e uma parceria com a prefeitura. No primeiro ano, atraímos 5 mil pessoas. A feira começou a peregrinar por vários espaços até chegar ao Anhembi, em 2006. Em 2016, quebramos, e no ano seguinte nos remodelamos em formato de festival, atraindo diversas expressões culturais. Treze décadas após a abolição da escravidão, o que fez a população negra emergir foi o empreendedorismo.
Estudo do Sebrae mostra que os pequenos negócios de donos brancos têm o dobro de formalização do que os de donos negros. A que a senhora atribui isso?
Atribuo ao contexto histórico do Brasil. Temos mais de 400 anos de período escravocrata no Brasil e esse ano completamos 132 anos da abolição. Esse ponto de partida da população negra define o que temos hoje. Se tem algo que fez com que a população negra sobrevivesse ao colonialismo e ao racismo estruturado e muitas vezes institucionalizado foi o ato de empreender. Em função desse processo histórico, a população negra teve menos acesso à educação e renda, ocasionando um grande número de ocupação em subemprego e também de desemprego, fazendo com que essas pessoas empreendam por necessidade.
Quais são os desafios do empreendedorismo negro no Brasil?
Em 2019 realizamos o terceiro estudo sobre as dores e amores do empreendedorismo negro no Brasil. Destaco alguns dados: há um número expressivo de empreendedores por vocação, que vislumbram oportunidades. E o empreendedor engajado, que se autodeclara negro e empreende em produtos e serviços voltados à questão racial. O desafio é o empreendedor por vocação se transformar em um empreendedor engajado, porque assim consegue fazer o black money trazer desconcentração de renda. Teremos mais empreendedores negros para atender à demanda de consumo da população negra. O segundo destaque é sobre acesso ao crédito. A grande maioria tem dificuldade de acessar investimentos de bancos. Há relatos de casos de racismo institucionalizado. O terceiro destaque são as questões da subjetividade. O empreendedor muitas vezes não se reconhece nesse lugar de empreendedorismo e de potência. É preciso falar de autoestima. E, por fim, destaco a ausência de um número maior de empreendedores negros nas áreas da tecnologia e da indústria, que têm a maior possibilidade de crescimento e escala.
Qual a relação entre cultura negra e empreendedorismo? Isso influencia o consumo?
A cultura negra influencia na demanda e no consumo. A população negra só chega como maioria populacional por um processo de autodeclaração. Na medida em que a população negra se autodeclara, passamos a ter uma crescente demanda por produtos e serviços que atendam às especificidades dos negros. E o empreendedor negro, por viver as mesmas dores, consegue sair na frente e ofertar produtos e serviços de maneira mais efetiva. Há uma ideia de que negócio e combate ao racismo e valorização da identidade negra estão ligados.
Como funciona a PretaHub?
PretaHub é o resultado de 18 anos de atividades do Instituto Feira Preta no trabalho de mapeamento, capacitação técnica e criativa, aceleradora e incubadora do empreendedorismo negro no Brasil. Com atividades em todo o país, PretaHub é um hub de inventividade, criatividade e tendência pretas, com uma série de produtos sob o mesmo guarda-chuva.
Qual a sua recomendação para um negro que está começando a empreender?
Vale muito a pena procurar por oportunidades de mercado de produtos e serviços direcionados à população negra. Há muitas possibilidades, mas a dica principal é saber quem são esses clientes, onde estão, qual o comportamento e estilo de vida. Por fim, venda para todos, não foque apenas no consumidor negro.