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Com o Talibã no poder, como ficam as empresas do Afeganistão?

Com o grupo extremista de volta ao poder, incerteza toma conta do cenário empresarial do país e extremismo ameaça avanço de pequenas empresas afegãs

Combatentes do Talibã, em agosto de 2021: depois do grupo tomar o poder, incerteza toma conta do cenário empresarial do Afeganistão (HOSHANG HASHIMI/AFP/Getty Images)

Combatentes do Talibã, em agosto de 2021: depois do grupo tomar o poder, incerteza toma conta do cenário empresarial do Afeganistão (HOSHANG HASHIMI/AFP/Getty Images)

Depois de 20 anos, o grupo extremista Talibã voltou às ruas de Cabul, capital do Afeganistão, para reivindicar o poder político e social do país. A ação coloca em xeque diversos direitos sociais conquistados nas últimas décadas, sendo os principais deles relacionados à liberdade individual de mulheres afegãs, que agora correm o risco de serem proibidas de estudar, trabalhar e andar desacompanhadas.

Longe dos impasses sociais, o retorno do Talibã também pode impactar o desenvolvimento econômico de empresas emergentes do Afeganistão.

Em debandada, mais de 2.000 diplomatas, civis, militares e funcionários do governo norte-americano já deixaram o país. Sem as tropas, embaixadas e financiamentos americanos, é provável que startups também enfrentem uma desaceleração frente à falta de estímulos.

O ecossistema de inovação afegão

A intervenção dos Estados Unidos na região não serviu apenas de insumo para uma revolta tardia do grupo, como inflamou o potencial econômico e tecnológico de empresas nos últimos anos. Parte disso se deve ao fato de que o país gastou mais de 1 trilhão de dólares nos últimos anos para sustentar sua permanência em terras afegãs.

Fato é que desde o início da última década, o país estava às vistas de uma revolução digital responsável por impulsionar o cenário de startups. Mais de um terço do orçamento do governo vem de ajuda externa, e o auxílio dos Estados Unidos também mantinha a principal aceleradora de startups do país, a Startup Valley.

Subsidiada pela Agência Nacional de Desenvolvimento dos Estados Unidos (USAID), a Startup Valley já acelerou ao menos 55 startups, entre restaurantes, escolas de idiomas e empresas de food service. Por lá, o aconselhamento vai desde a fase de ideação da empresa e conexão com empresas, até a divulgação dos produtos e serviços. O valor investido pela aceleradora nesses negócios já atingiu os 28 milhões de dólares.

“À medida que o dinheiro da ajuda geral ao Afeganistão diminuiu, uma nova mentalidade de empreendedorismo se instalou”, disse em entrevista ao jornal The New York Times Ahmad Fahim Didar, presidente da Aghaez Professional Services, principal consultoria de negócios e impacto social do país.

A influência americana no ecossistema de inovação afegão também se dá na aposta do Google, big tech estadunidense, em ampliar seu programa voltado a startups também para o país, em uma iniciativa batizada por representantes locais como Startup Grind, em 2016. Apenas cinco anos depois, tudo isso pode estar a um fio de terminar.

Empreendedorismo feminino

Destaque nas últimas edições do Startup Valley, o incentivo à participação feminina nos negócios emergentes também parece estar comprometido. A primeira fase do programa teve 30 mulheres inscritas, das quais 17 concluíram o programa de aceleração e incubação e dez pivotaram seus negócios no mercado.

Com a nova fase política do país e às sombras do autoritarismo da sharia, lei islâmica seguida pelo Talibã, a presença de mulheres no ecossistema de inovação  —  e no mercado de trabalho afegão como um todo —  pode deixar de ser uma realidade.

Em entrevista ao jornal britânico The Daily Mirror, a afegã Zahra Nazari, uma empreendedora famosa por defender os direitos das mulheres, afirmou temer o futuro de sua família a partir de agora. “O Taleban disse que vai nos matar porque fizemos coisas que eles dizem que as mulheres não têm permissão para fazer”, disse.

Além da representatividade feminina nos negócios, um primeiro impacto já pode ser sentido no Afeganistão no que diz respeito à economia. Os bancos fecharam as portas na medida em que as pessoas corriam às agências para sacar suas economias. A justificativa foi de que não havia dinheiro ou liquidez disponível. Em uma análise simples, é possível afirmar que onde não há capital acessível, também não há estímulo para a criação de novos negócios.

Toda essa corrida também reflete nas políticas monetárias: com a queda do governo, a fuga do presidente do país e a saída do presidente do Banco Central afegão do cargo, a moeda local, o Afghani, fechou em queda de 4,6% na última terça-feira, 17, cotado a 86,0625 por dólar, depois de quatro dias consecutivos de queda, de acordo com dados da Bloomberg.

As startups do Afeganistão

Não há muitos relatos de startups promissoras fundadas em território afegão. O exemplo mais famoso de que se tem conhecimento é de uma empresa fundada em 2014 por ex-militares americanos que serviu durante a Guerra no país. A startup Rumi Spice comercializa internacionalmente o açafrão cultivado por moradores locais.

A oportunidade era nítida: o país tem cerca de 80% da sua população trabalhando na agricultura, ao passo em que o açafrão é um dos temperos mais valorizados do mundo custando de  2.500 a  30.000 dólares o quilo.

Ainda nos campos afegãos, a empreendedora Zarifa Razaee expandiu sua produção caseira de orgânicos para uma fábrica de alimentos, inaugurada em 2019. A startup, batizada de Bushra Tranum, surgiu após um período de incubação e aceleração no programa da Aghaez Professional Services.

Fora da agricultura, outra indústria bem-sucedida no país é a de telecomunicações. Entre os anos de 2006 e 2016, as empresas investiram mais de 2 bilhões de dólares no país, grande parte em infraestrutura como torres de celular, segundo o The New York Times.

A interrupção do acesso à internet pela população, um dos pontos exigidos pela sharia, é a premissa básica de um possível retrocesso no desenvolvimento tecnológico dessas empresas. A saída gradual (e agora total) dos soldados e outros funcionários do governo americano podem, porém, impactar o bom desempenho dessa indústria, que agora disputará pela atenção de um número reduzido de pessoas, e com recursos escassos.

Uma outra incerteza está relacionada ao que deve acontecer sobre políticas fiscais e monetárias. O Talibã ainda não se pronunciou sobre o assunto, mas o cenário não inspira otimismo das empresas, que há muito já se queixavam da alta carga tributária para o desenvolvimento de negócios.

Há 5 anos, o cenário era otimista e a retirada gradual de tropas e menor injeção de capital estrangeiro serviram de alavanca natural para o empreendedorismo. “Embora a situação não tenha mudado muito até hoje, os países estrangeiros estão gradualmente retirando suas tropas do país. Onde esse ato reduziu a ajuda financeira que o Afeganistão vinha recebendo ao longo dos anos, o que é digno de comemoração é o fato de que, agora, os afegãos têm a chance perfeita de moldar e transformar o Afeganistão em um país próspero por dentro”, escreveu Didar, em um artigo publicado na época.

As lacunas de educação, de infraestrutura, acesso à energia e internet continuarão sem empecilhos e oportunidades. Infelizmente, pautas mais urgentes, e graves, se instalaram com a volta do Talibã. É um atraso que definitivamente não combina com empreendedorismo.

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