(Editora Gente/Divulgação)
Redação Exame
Publicado em 23 de outubro de 2023 às 12h13.
Última atualização em 24 de outubro de 2023 às 11h53.
A inteligência artificial é um meio criado para nos ajudar a alcançar as nossas próprias faculdades, mas como colocar tudo isso em prática? Essas são as mensagens centrais do livro "O cientista e o executivo", lançado em outubro deste ano por Diego Barreto, uma das lideranças do delivery de bares e restaurantes iFood, e por Sandor Caetano, cientista de dados.
A obra é uma das pioneiras no Brasil a abordar a aplicação de inteligência artificial num negócio de grande porte como o iFood. Hoje, são mais de 100 modelos de IA para deslanchar 80 milhões de pedidos por mês. Por ali, a tecnologia já tem ajudado a resolver problemas entre os mais de 200.000 entregadores e a base de 40 milhões de usuários.
Do lado dos consumidores, por exemplo, a IA tem melhorado os mecanismos de recomendação de pratos dentro da ferramenta. Olhando sob prisma do negócio em si, a tecnologia já está sendo usada para detecção de fraudes e na digitalização dos restaurantes conectados ao ecossistema do iFood.
Tudo isso saiu do papel depois de muita tentativa e erro. Agora, com o livro, o objetivo dos autores é a de ajudar empreendedores a criar uma estratégia coerente para lidar com a tecnologia em menos tempo. No fundo, o que os autores querem é fazer o leitor pensar sobre como transformar a nova tecnologia numa vantagem competitiva ao negócio. Veja a introdução do livro que a EXAME publica, com exclusividade.
Nuvens escuras moviam-se sobre o horizonte recortado da cidade, enquanto os carros faziam fila para tentar avançar nas muitas pistas da marginal Pinheiros. Tudo parado, uma teia de linhas vermelhas no Waze. Dados coletados de todos os smartphones da
área davam nisso, três quilômetros por hora de projeção. De onde estava, embarcado em um 99, Diego podia dizer com segurança que sua velocidade era zero. Nessas circunstâncias, era uma margem de erro aceitável.
Era novembro de 2019. Fazia semanas que aquela antiga imagem tinha voltado a martelar a sua cabeça: um comboio de Land Rovers, branquinhos e limpinhos, atravessando as pistas vazias da marginal em direção ao rio, onde afundavam, um a um. Esse era o tamanho do prejuízo no iFood com os fraudadores, 20 milhões de reais – uns sessenta carros de luxo submersos na sujeira e na lama. Todo mês. E isso era apenas parte do prejuízo. Toda vez que uma fraude era identificada, o banco não só fazia o estorno da com- pra, mas também cancelava o cartão do consumidor e enviava um novo.
Ou seja, a empresa estava compartilhando seu problema com os clientes – o que era bem pior.
Verdade que tudo isso, em grande parte, acontecia porque o iFood havia crescido muito rápido – como deveria ser, claro. E o crescimento tinha essas dores. Mas as perspectivas vinham melhorando com a evolução dos modelos antifraude de inteligência artificial, cuja nova versão Sandor apresentaria na reunião daquele dia. A pressão era grande. O que estava acontecendo e o que iria melhorar? Era hora de o iFood acelerar para se tornar uma verdadeira empresa de inteligência artificial, com todos os processos automatizados incorporados ao coração do negócio. De todas as coisas que Diego insistia em falar nas aulas que ministrava, em paralelo ao trabalho como executivo, sobre Nova Economia, essa era uma das mais básicas.
Inteligência artificial é o campo da ciência da computação que estuda como criar máquinas e sistemas capazes de realizar tarefas que normalmente exigem inteligência humana, como reconhecimento de voz, visão computacional, tomada de decisão e aprendizado de máquina.
Modelo é um conjunto de parâmetros e funções que representam uma aproximação de algum fenômeno ou processo. Um modelo pode ser treinado com dados para aprender a fazer previsões ou classificações.
A inteligência artificial dá escala e agilidade aos negócios. Os antigos processos físicos são lentos demais. A coordenação de toda a cadeia permite ganhar tempo e aplicá-lo no que realmente interessa, descobrir como prestar o melhor serviço, explorando tudo o que a sociedade conectada tem a oferecer.
Ponto que quase sempre era seguido por seu otimismo fundamentado no uso de ferramentas digitais que estão à disposição de todos.
O ganho com a tecnologia proprietária acaba transformando todos os atributos do negócio. É fundamental não ficar parado.
Mas, naquele instante, Diego tentava ver quanto tempo ainda ficaria preso no trânsito. Todo mundo gostava de ouvir a história de que Mark Zuckerberg cultivava o lema “mova-se rápido e quebre as coisas”, quando o Facebook era aquela festa. Anos mais tarde, reformulou: “Mova-se rápido com uma infraestrutura estável”. Do ponto de vista do impacto, a primeira frase era melhor, mas a segunda era bem mais realista e responsável.
Tudo tinha mudado muito desde aqueles primeiros tempos. Tudo mudava rápido, e Diego sentia zero saudades da experiência na Velha Economia.
Os carros finalmente ganhavam um pouco mais de velocidade, e o sol dava indícios de que ia aparecer. Então, era isto: bastava tentar adivinhar, ou quase, a diferença entre uma pessoa atrás de um almoço honesto e uma quadrilha que arrasta prejuízos em série para toda a cadeia, dos entregadores e consumidores aos restaurantes.
Já estava evidente a necessidade de preparar o terreno para as mudanças. O investimento era alto, mas a parede a escalar logo à frente ficaria menos íngreme. O objetivo era transformar o iFood, dizia Diego aos estudantes, em uma empresa que baseia em dados a construção de hipóteses, a tomada de decisão e a automação. O foco, explicava, eram as informações caracterizadas pelo alto volume, velocidade e variedade, que requerem tecnologias e métodos analíticos específicos para a sua transformação em valor. E continuava:
Uma das abordagens comuns é o uso de algoritmos para criar regras a partir da análise de dados, em vez de você criar as regras. Os algoritmos de IA podem ser alimentados com grandes volumes de dados e, em seguida, aplicar técnicas de aprendizado de máquina para extrair informações úteis desses dados. Após o treinamento, o algoritmo de IA é capaz de aplicar as regras aprendidas a novos conjuntos de dados, para fazer previsões, classificações ou tomar decisões com base nas informações presentes nesses dados. Por exemplo, um algoritmo de IA treinado para reconhecimento de fala pode analisar um áudio de entrada e transcrever o que foi dito com base no conhecimento adquirido durante o treinamento.
Ou seja, não tinha a ver com adivinhação. Ou intuição. Ou experiências esparsas. Era, em poucas palavras, a aplicação do método científico em um contexto bem diferente da academia.
Experiências todos têm, mas as melhores são aquelas que marcam pelo aprendizado. A primeira vez que a imagem dos Land Rovers afogados surgiu na cabeça de Diego foi nos tempos em que trabalhava na Ingresso Rápido, um dos investimentos do grupo Movile, que também inclui o iFood. Já tinha contado essa história toda em uma palestra, não fazia muito tempo.
Lá pelo fim de 2016, eu tinha uma carreira no mundo físico, que falava muito pouco com a tecnologia, em especial a tecnologia proprietária. A digitalização se resumia aos sistemas de terceiros que você usava no dia a dia. Como tudo era físico, tudo era mais lento. Uma das minhas primeiras experiências no digital foi enfren- tar os golpistas na Ingresso Rápido. E, principalmente, tentar não negar uma compra a um bom pagador. Imagine o camarada que quer comprar um ingresso para o show do Aerosmith e tem a com- pra negada por uma falha do marketplace de venda. No caso, nós. Uma das minhas responsabilidades era a área de fraudes. Ali, os maio- res riscos estavam nas transações on-line. Por exemplo: a pessoa fazia uma compra com o cartão de crédito roubado, recebia e revendia o ingresso. Por mais que depois eu visse o roubo e cancelasse aquela transação, o fraudador já tinha obtido sucesso, e o prejuízo era irre- versível. E, nesse momento, a solução que se apresentava na Ingresso Rápido era terceirizada. Eu, vindo do mundo off-line, ignorava acomple- xidade do problema, e é a ignorância que faz você olhar para as solu- ções de mercado. Que são muito simplórias. São as soluções baseadas em uma “média”, ou seja, criadas a partir de regras que, “na média”, fazem com que o resultado da filtragem de fraudes seja razoável.
Quando você evolui e descobre que trabalhar de modo específico para o seu negócio, dentro de casa, torna tudo mais eficiente, naturalmente começa a considerar sair do mundo terceirizado e vir para o proprietário. O que significa construir soluções ou organizar as já existentes visando às suas demandas. Foi esse o movimento que fizemos. Trouxemos pessoas, criamos o nosso modelo, testamos. E passamos a ter dentro de casa um motor que controlava se uma transação deveria ser aprovada ou não. Então, em vez de recorrer a um terceiro – que, baseado em uma “média”, dizia sim ou não, pode ou não concluir essa transação –, o problema da fraude passou a ser nossa responsabilidade, internamente.
Acontece que todas as vezes que você internaliza algo que envolve risco, tende a adotar uma atitude mais conservadora. Por quê? Porque o prejuízo é muito grande em um modelo como o da Ingresso Rápido – que é bastante parecido com o do iFood: existe um produtor de evento ou um restaurante que faz a venda do ingresso ou da comida. Digamos que esse ingresso ou essa comida custe 100 reais e a Ingresso Rápido ou o iFood receba um percentual por ter encontrado o cliente – por exemplo, 10%. Dos 100 reais, então, ficamos com 10 reais. Quando acontecia uma fraude, o ingresso roubado gerava uma perda para o produtor do evento. A cadeira, vendida para um fraudador, deixava de ficar disponível na plataforma. Mas, até percebermos, o evento já havia passado, e o que restava eram os 100 reais a menos. Nesse cenário, nós tínhamos de reembolsar o valor, assim como o iFood reembolsa o restaurante. Mandamos preparar uma comida, entregar, e depois aparece uma pessoa dizendo “Opa! Eu não fiz esse pedido que passou no meu cartão”. Mas a comida foi preparada. É preciso pagar por ela. Funciona assim na Ingresso Rápido, no iFood e em vários outros market places. Usando esse exemplo, para cada fraude, o negócio perde os 10 reais que recebe- ria em custo de oportunidade pela cadeira vazia, mais os 100 reais de reembolso. O que significa que vai ser preciso fazer 11 outras boas vendas para compensar o prejuízo.
É muito dinheiro! E a tendência natural é adotar um comportamento extremamente conservador no início, aumentando a rigidez das regras de triagem, o que acaba restringindo a carteira apenas a perfis mais propensos a serem considerados não fraudadores. Em seguida, entra outro movimento, porque a empresa passa a confiar mais no modelo, a fazer testes e, aos poucos, vai abrindo as regras para poder aumentar as vendas. Quando o modelo é muito rígido, gera o famoso falso positivo, ou seja, bloqueia alguém que não é fraudador e, com isso, perde um bom cliente.
O mais legal é que os estatísticos, em sua sabedoria, já chamavam isso de “matriz de confusão” – o que, no caso das fraudes, é uma grande confusão mesmo! A expressão se refere a uma maneira de mostrar o desempenho de um sistema que tenta classificar algo em duas categorias, por exemplo, se uma transação é fraudulenta ou não. Ela tem quatro partes:
A matriz de confusão ajuda a avaliar se o sistema está funcionando bem e também a identificar onde ele precisa melhorar. Por exemplo, se há muitos falsos positivos, isso significa que o sistema está sendo muito rigoroso e bloqueando transações legítimas; se há muitos falsos negativos, significa que o sistema está sendo muito relaxado e deixando passar transações fraudulentas.
Vamos imaginar a Ingresso Rápido com milhares de vendas. Na hora em que cada uma é feita, o modelo faz uma previsão: “0”, se ele acha que não é uma fraude, ou “1”, se ele acha que é uma fraude – representados na horizontal na figura a seguir. (Mais adiante, vamos falar sobre previsões, julgamentos e decisões, mas por ora vamos assumir que é o modelo quem decide isso.)
Algum tempo depois, vão começar a chegar as notificações dos clientes que foram fraudados e vamos popular a matriz na vertical com “0”, se não houve notificação, ou “1”, se foi de fato uma fraude. Com isso conseguimos calcular nossas métricas.
O grande problema é o que os estatísticos, novamente em sua infinita sabedoria, chamam de censura: se um pedido foi bloqueado, nunca sabe- remos se ele será ou não uma fraude, por isso ele foi “censurado”, o que faz de todo o processo de antifraude uma luta de gato e rato, necessitando de uma abordagem bem disciplinada, como conta Diego.
Foi o que aconteceu na Ingresso Rápido. Fomos ajustando aos poucos o modelo para ganhar eficiência. Até surgir outro ponto importante: a pressão do cliente. Quanto mais conservador o modelo, maior a pressão, uma vez que pessoas idôneas barradas no antifraude são potenciais compradores jogados no lixo. O produtor alegava perder vendas por causa do sistema; e o consumidor, barrado injustamente, tinha uma péssima experiência de compra.
Chegamos então a 2017, quando aconteceu o maior e mais importante festival de rock do ano, com a estreia do The Who no Brasil e nomes como Guns N’ Roses, Aerosmith, Bon Jovi, entre outros. Todo mundo voltado para esse evento. Havia uma pressão muito grande.
Isso, somado ao bom desempenho que a Ingresso Rápido vinha tendo até então, nos fez trabalhar com regras mais flexíveis.
A complexidade desse problema ganhou força porque trocamos o sistema de bilhetagem da Ingresso Rápido, que era o ambiente em que os clientes colocavam todos os seus eventos para que os consumidores pudessem escolher. O sistema armazenava, organizava e processava tudo referente à compra e à venda de ingressos. Mas essa troca nos deixou expostos aos golpistas. Veio então um grande aprendizado no mundo das fraudes de pagamentos on-line: você só descobre o impacto do golpe semanas depois. Via de regra, não dá para pegar o problema na origem.
Murilo Mascaro, Gerente Financeiro e de Riscos à época, trocou mensagens alarmadas comigo. “Estou preocupado com as fraudes, estamos virando Bileto, e TI está dando zero atenção para nós”, escreveu. Bileto era a nova plataforma da Ingresso Rápido. “Várias travas que tínhamos no legado não estão sendo implementadas no Bileto”, ele acrescentava. Os números diziam que era, sim, caso de preocupação. Em abril daquele ano, tinham sido 320 casos de fraudes; em junho, haviam saltado para 1195. Esse mesmo número se repetiria em agosto, só que apenas na primeira quinzena…
A fraude só aparece quando explode. E é certo que os dois ou três meses seguintes ao momento de descoberta serão piores que o primeiro. Sempre tem um efeito de backlog, muita coisa ainda vai surgir. O fraudador, quando encontra uma janela, acelera a 100 por hora, porque vê ali uma oportunidade muito grande de fazer dinheiro rápido. Foi assim que aconteceu. Começamos a receber o chamado chargeback, ou seja, a contestação da compra, e as notificações de cancelamento. A Ingresso Rápido tinha de arcar com todo o prejuízo.
Para esse momento, os estatísticos possuem outro termo interessante: “variável de confusão” (que vem de confounding variable, nada a ver com a matriz de confusão mencionada nas páginas anteriores). Uma variável de confusão é algo que influencia tanto a causa como o efeito de uma situação, mas não faz parte da relação direta entre eles.
Com todos os números do site subindo ao mesmo tempo, não era possível diferenciar se tinha havido um aumento nas fraudes em meio a um aumento brutal da demanda.
Backlog refere-se a um acúmulo de pedidos, trabalhos ou problemas em um determinado intervalo de tempo. Nesse caso, seria uma “pilha de fraudes” em espera.
Variável é o conjunto de dados usado para estudar um grupo de coisas ou pessoas. Por exemplo, se quero saber se um pedido é ou não fraudulento, posso usar uma variável chamada “número de pedidos anteriores” e contar quantas fraudes tivemos de clientes que tem 0, 1, 2,…, 10 pedidos anteriores.
A crise é avassaladora. Não permite que você durma, porque a quantidade de dados, de hipóteses, o valor financeiro, tudo é tão grande, que simplesmente impede qualquer um de respirar. O fato de falar “amanhã eu volto” significa ficar com o sistema aberto por oito horas. Impossível. A partir do momento em que a crise surge, começa um intenso processo de discovery sem freio. Na Ingresso Rápido, a bomba explodiu em uma sexta-feira. Vale frisar a impor- tância de ter um time talentoso, com olhar empreendedor e autono- mia, que efetivamente mergulha quando é necessário resolver algo importante. Não era uma situação em que dava para simplesmente “meter a mão” e rapidamente criar a saída.
O responsável pela área se afundou em planilhas, e todos nós fica- mos em volta, levantando hipóteses para achar a origem do pro- blema, cada um com uma sugestão diferente de recorte, o que deixava aquele profissional completamente tenso. Até então, ele era a pessoa mais tranquila do time. A cena me levou a pensar: qual o espaço que devemos dar para que o especialista possa trabalhar? A questão era que não tínhamos tempo. Passamos quatro dias debruçados em tabelas, dormindo pouco, tentando encontrar a raiz do problema para arrumar a casa. Feito isso, veio o pior: sentar e esperar os efeitos em números simplesmente monstruosos que che- gavam sem parar nos dias seguintes.
Normalmente, a empresa acompanha sua perda diária ao longo do tempo em um gráfico. Costuma se dar em um nível razoável, sobe um pouquinho, desce outro, mas nos dias seguintes à descoberta da fraude, a perda cresce muito, e mais, e mais, chegando a patamares absurdos. Depois, ela estabiliza em um platô alto. Você vê o dinheiro indo embora, o caixa escoando, e não sabe quanto tempo aquilo vai durar. A paranoia sobre o possível impacto é grande. No caso da Ingresso Rápido, a empresa perdeu cerca de 10 milhões de reais em quatro meses, em um ano em que faturou cerca de 50 milhões de reais.
Era mais ou menos isso que Diego costumava contar sobre o seu início no mundo digital, já lidando de cara com a fraude. O prejuízo dava para afogar muitos Land Rovers no rio. Às vezes, ele sonhava que estava se afo- gando em planilhas de Excel e volta e meia sentia nas têmporas a pressão de um pisca-pisca, um luminoso em letras vermelhas formando a palavra CHARGEBACK, como se fosse o alerta de um caminhão quebrado na pista central da marginal Pinheiros.