Fabricação do óleo de soja Liza, da Cargill: no Brasil, empresa é dona de marcas conhecidas, como os óleos Liza e os molhos Pomarola, mas isso é uma exceção (Cristiano Mariz/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 18 de novembro de 2013 às 18h19.
Com pouco mais de 8.000 habitantes e cercada de plantações de milho até onde a vista alcança, a cidadezinha de Blair, no estado do Nebraska, é um daqueles fenômenos que ajudam a entender como os Estados Unidos se transformaram na maior potência agrícola do mundo. O solo é fértil, o clima ajuda e, sobretudo, a “agricultura familiar” da região nada tem a ver com seu equivalente romântico e anacrônico que ainda habita certas cabeças no Brasil - o investimento em tecnologia dos agricultores do cinturão do milho, como esse pedaço do Meio-Oeste americano é chamado, faz com que sua produtividade média seja duas vezes maior que a brasileira.
Mas talvez o maior símbolo da força agrícola americana em Blair não seja o dourado do milho nas fazendas, mas a fábrica para onde é levada essa produção toda. A cidade abriga um dos maiores centros de processamento de grãos do mundo, um complexo que custou o equivalente a 2,5 bilhões de reais para ser erguido, abriga seis linhas de trem e transforma 2,5 milhões de toneladas de milho por ano - são 180 000 caminhões e quase 30 000 vagões lotados de grãos a cada doze meses.
Ali, o milho de Blair se transforma em dezenas de produtos, de ração animal a etanol. É uma demonstração da pujança do cinturão do milho. Mas é, também, uma pequena amostra do papel da empresa mais poderosa do agronegócio no mundo - a americana Cargill.
A empresa foi fundada em 1865 por três irmãos que queriam ganhar dinheiro armazenando a produção de grãos do Meio-Oeste - justamente quando a região começava a cultivar milho.
Hoje, a Cargill é, disparado, a maior empresa de alimentos do mundo. Seu faturamento, de 137 bilhões de dólares, é 30% maior que o da suíça Nestlé e 50% superior ao de sua principal concorrente, a também americana ADM. A brasileira Vale, por exemplo, tem um terço do tamanho da Cargill. Com 1 400 fábricas em 67 países, seus tentáculos se espalham por todos os cantos da indústria mundial de alimentos.
A Cargill não tem fazendas, não planta nada, vende muito pouco diretamente ao consumidor - no Brasil, é dona de marcas conhecidas, como os óleos Liza e os molhos Pomarola, mas isso é uma exceção. A empresa se tornou o gigante que é operando fora dos olhos do público. Uma de suas principais atividades ainda é comprar, armazenar e revender commodities agrícolas como soja, milho, trigo e basicamente todas as outras.
No último ano, transportou 185 milhões de toneladas de grãos, um volume equivalente ao da safra brasileira (a Cargill é, aliás, a segunda maior exportadora de soja do país). A empresa também processa e fabrica adoçantes, chocolates, óleos, rações para animais e álcool combustível – além de corantes e substâncias usadas para conservar iogurtes, pães, cervejas e refrigerantes. Seus ingredientes estão nos sanduíches do McDonald’s, nos refrigerantes da Coca-Cola, na comida de cachorro da Nestlé, nos sorvetes da Unilever.
Desde que foi fundada, em 1865, a Cargill fez o que pode para manter tudo isso em segredo. Seus donos nunca viram muita vantagem em se expor. Para eles, quanto menos os concorrentes – e, até certo ponto, os clientes e fornecedores – soubessem, melhor. Como não tem capital aberto - é a maior companhia fechada dos Estados Unidos -, a Cargill passou décadas divulgando só o mínimo necessário sobre seus negócios.
Recentemente, porém, isso começou a mudar. “No passado, fazíamos o que achávamos certo e deixávamos o mundo julgar. Não havia uma preocupação em nos explicar. Mas, agora, precisamos nos tornar mais globais, para atuar nos mercados em que o consumo continua crescendo. E, para isso, governos e consumidores precisam nos entender”, disse a EXAME Greg Page, presidente da companhia. “Nosso maior desafio é nos internacionalizar da matéria correta.”
Nessa nova fase, governos protecionistas e consumidores que acham que a empresa manipula o mercado global de alimentos são o maior problema da Cargill.
Os hábitos alimentares nos Estados Unidos, que respondem por quase 40% das receitas da empresa, estão mudando e, para continuar crescendo, ela precisa crescer em novos mercados. Os americanos estão comprando quantidades cada vez menores de alguns dos principais produtos feitos, processados ou distribuídos pela empresa, como carnes, ovos e adoçantes usados para fazer refrigerantes e sucos prontos. Pesquisas indicam que isso tem a ver com a busca por uma alimentação mais saudável.
Nos países emergentes, ainda que a preocupação com a saúde também esteja aumentando, proteínas, doces e refrigerantes ainda não fazem parte da dieta de boa parte da população. O consumo per capita de carnes (boi, porco e peru) é de 120 quilos por ano nos Estados Unidos, o dobro da média dos países da América Latina (no Brasil, o consumo anual é de 85 quilos por pessoa). O número que está na cabeça dos executivos da Cargill é: 2 500 dólares de renda per capita média.
“Quando um país passa desse patamar, as pessoas podem não ter dinheiro para comprar um carro, mas melhoram a alimentação. É a classe média do ponto de vista nutricional”, diz Greg Page. “Os Estados Unidos já passaram desse ponto há muito tempo. Buscamos mercados menos maduros.”
Os executivos da Cargill dizem que o que explica o crescimento da companhia ao longo dos anos não é a capacidade de antever novos cenários, mas de se adaptar a eles. Por isso, faz parte de seu plano estratégia diversificar a atuação. “Se, há dez anos, alguém tivesse dito que a safrinha brasileira de milho seria tão grande quanto é hoje, teria achado absurdo”, diz Page.
Graças a inovações que permitiram que agricultores brasileiros plantassem milho nas mesmas lavouras de soja (em épocas diferentes). a safrinha cresceu seis vezes desde 2002. Hoje, a Cargill está prestes a inaugurar uma nova fábrica para processar milho no país. Foi feita nos mesmos moldes da gigantesca unidade de Blair (sem as linhas de trem, claro), com um investimento inicial de 210 milhões de dólares e mais 50 milhões de dólares já planejados para 2014.
CERVEJA QUE DURA MAIS
A empresa também vem investindo para ampliar a participação da área de alimentos em suas receitas. Para lançar novos produtos, próprios e para clientes, inaugurou centros de pesquisa no Brasil e na Índia e reformou unidades que já tinha na Bélgica e na Malásia. A cervejaria japonesa Saporo está vendendo uma marca fabricada com um novo malte desenvolvido pela Cargill que faz a cerveja durar mais e resistir ao transporte em navios para exportação.
Para a rede de lanchonetes McDonald’s no Brasil, a companhia americana desenvolveu um óleo sem gordura trans (um tipo de gordura relacionada ao aumento da incidência de diabetes e doenças cardíacas). “Passamos um ano e meio fazendo testes até encontrar um óleo que mantivesse a batata crocante e fosse mais saudável”, diz Celso Cruz, diretor de suprimentos da Arcos Dourados, que representa o McDonald’s na América Latina.
A obsessão das empresas em ter alimentos mais saudáveis – ou que pareçam saudáveis – tem gerado receitas para a Cargill. Carnes com menos gorduras, adoçantes feitos com ingredientes naturais, cereais com mais vitaminas – tudo isso pode ser desenvolvido nos laboratórios da companhia. Mas o objetivo dessas pesquisas não é melhorar a qualidade da comida.
A visão é bem mais pragmática. “Nosso conceito de inovação é fazer nossos clientes venderem mais. Queremos dar opções a eles”, diz Christopher Mallett, vice-presidente de pesquisa e desenvolvimento. “Se as empresas querem alimentos mais naturais, vamos pesquisar. Se quiserem reduzir custos, também tentamos ajudar.”
Adoçantes, cervejas e sorbets têm pouquíssimo ver com as origens da Cargill. A companhia foi fundada em 1865 por William Cargill e, nos primeiros anos, foi comandada por ele e seus dois irmãos.
Sua principal atividade era comprar, armazenar e transportar a produção dos fazendeiros do Meio-Oeste americano. Para a operação dar lucro, era preciso ter uma logística eficiente e, claro, conseguir comprar barato e vender caro. “Naquele tempo, nem todo mundo tinha acesso às informações, ou demorava para consegui-las. Ter os dados, e mantê-los em segredo, fazia diferença”, diz David MacLennan, vice-presidente de operações da Cargill. A empresa chegou a desenvolver um sistema próprio de comunicação via telex.
Ainda naquela época, a Cargill começou a montar uma área financeira que se tornou altamente sofisticada. Hoje, tem 1 400 operadores de mercado em diferentes países, além de duas gestoras de recursos que administram 13 bilhões de dólares. As principais mesas de negociação de commodities - de soja a nafta - ficam em Genebra, na Suíça, e as mesas de moedas e juros estão divididas entre Estados Unidos, Inglaterra, Brasil e Singapura.
“O objetivo dessas operações não é só proteger nossas receitas, é dar lucro. Vamos errar, mas isso tem de ocorrer dentro dos limites previstos. Se acertarmos sempre, estamos deixando dinheiro na mesa”, diz Luiz Pretti, presidente da Cargill no Brasil e membro do comitê global de risco. Ainda que haja limites a serem respeitados, os lucros da área financeira são, por definição, voláteis.
Em anos ruins, esse segmento representa 20% do resultado global da empresa; em anos bons (ou quando outras linhas de negócio vão melhor), o percentual pode chegar a 50%. Crescer na área de alimentos pode tornar os resultados da Cargill mais previsíveis, algo que poderia melhorar o perfil de risco da empresa e reduzir seu custo de captação.
Num livro de 2008 sobre a empresa, o jornalista Wayne Broehl diz que a Cargill sempre teve o estilo John Wayne, ator americano famoso por interpretar caubóis no cinema: fazia o que queria e falava pouco. Valia para o mercado e para os próprios funcionários. Sua sede fica até hoje numa mansão de quase 4 000 metros quadrados, isolada num bairro residencial de Minneapolis, no Meio-Oeste americano.
O casarão foi comprado pelos fundadores da Cargill nos anos 40 e ainda conserva salas, quartos e até 14 lareiras do projeto original. Só os principais executivos trabalham ali. Os demais funcionários precisam de autorização especial para entrar na sede – e alguns chamam o local de Palácio de Versalhes.
“É a cultura do Meio-Oeste (...), que alguns acham arrogante”, escreveu Broehl. Ao longo dos anos, essa postura rendeu inimigos à companhia. Em 1938, foi banida da bolsa de mercadorias de Chicago, por ser acusada de manipular os preços do milho (sempre negou as acusações, e só voltou ao mercado 24 anos depois).
Em 2003, foi alvo de protestos do Greenpeace, que dizia que a Cargill e outras empresas contribuíam para aumentar o desmatamente na Amazônia ao comprar soja cultivada na região. Depois de três anos de brigas, fechou um acordo em que se comprometeu a não comprar mais a soja plantada ali. Com a nova atitude paz e amor, seus executivos pretendem enterrar essa imagem. Em 2011, decidiu mostrar pela primeira vez um de seus abatedouros - e, para surpresa geral, a instalação apareceu no programa da apresentadora Oprah.
Há um esforço para tornar a empresa mais transparente, mas abrir o capital continua fora dos planos. Seus executivos dizem que a companhia só funciona porque se planeja para o longo prazo, o que é incompatível com a cotação minuto a minuto das ações. Por enquanto, dizem, não falta dinheiro para crescer.
A empresa é controlada por duas famílias, os Cargill e os MacMillan – John MacMillan casou com a filha de um dos fundadores e comandou a operação por quase 25 anos. Hoje, há cerca de 90 descendentes dos Cargill e dos MacMillan, e eles reinvestem no negócio cerca de 80% dos dividendos a que têm direito. Seis deles estão no conselho de administração e só um, de 26 anos, trabalha na companhia. A estratégia da empresa é discutida com os conselheiros trimestralmente.
“Não é fácil convencê-los de que a empresa precisa ser mais transparente, porque eles não gostam de aparecer, mas, até agora, estão gostando dos resultados”, diz um executivo. O desempenho futuro da companhia pode depender disso.