O manejo sustentável do pirarucu é uma iniciativa de comunidades extrativistas ribeirinhas e indígenas da Amazônia (Agência/Getty Images)
Ele é chamado de rei dos rios pelos ribeirinhos da Amazônia. Não por acaso. Exuberante, o pirarucu selvagem é um dos maiores peixes de escamas de água doce do planeta, podendo chegar a 3 metros e quase 200 quilos. O nome da espécie, nativa da região, quer dizer peixe vermelho em tupi (“pira”, peixe + “urucum”, vermelho) e tem a ver com a majestosa coloração de sua cauda.
O gigante amazônico, entretanto, não é singular apenas pela imponência. Seu manejo, dentro da maior floresta tropical do planeta, é hoje um case de sucesso quando se trata de sustentabilidade. Uma prova de que, com planejamento e empenho coletivo, é possível gerar renda, fortalecer as comunidades locais e, ao mesmo tempo, preservar a biodiversidade.
Para entender essa história, é preciso primeiro voltar um pouco no tempo. Na década de 1970, com o declínio de atividades econômicas importantes, como a exploração da seringueira e da juta, a pesca se tornou uma opção atrativa pelo retorno financeiro rápido. Mas, sem controle, gerou uma sobrecarga do pirarucu, reduzindo drasticamente a população da espécie em quase toda a Amazônia.
Na tentativa de salvá-lo da extinção, algumas medidas de proteção foram tomadas. Entre elas, a determinação do Ibama, em 1989, de um tamanho mínimo de captura (150 cm) e, no ano seguinte, o estabelecimento de um período de defeso reprodutivo (interdição da captura na fase de reprodução).
As normas, sozinhas, acabaram não surtindo muito efeito, devido à extensão geográfica da Amazônia e à falta de mecanismos eficazes de fiscalização. Por isso, em 1996 a pesca comercial do pirarucu foi proibida no Amazonas.
Foi então que, em 1999, um projeto do Instituto Mamirauá, inicialmente implementado na região do médio Solimões, propôs um conjunto de diretrizes para a conservação e recuperação dos estoques de pirarucu, passando também pela instituição de cotas de extração.
Era o início de um sistema de manejo comunitário e sustentável que seria difundido por quase todo o território amazônico nos últimos 20 anos e transformaria essa realidade.
A pesca do pirarucu selvagem segue proibida no estado o ano todo para comercialização, mas é permitida pelo Ibama onde foi implementado o manejo, restrito a áreas pertencentes a Unidades de Conservação, Terras Indígenas e Acordos de Pesca.
Reconhecida inclusive no exterior pela exemplar contribuição socioambiental, a iniciativa é um processo complexo, que acontece apenas uma vez por ano, e envolve algumas etapas fundamentais.
“A principal é a proteção do território. Só existe o manejo se houver um território e ele estiver protegido pela comunidade — com vigilância contra invasores, saques, desmatamento”, explica Adevaldo Dias, presidente do Memorial Chico Mendes e assessor da Associação dos Produtores Rurais de Carauari (Asproc), município do Amazonas que abriga a Reserva Extrativista do Médio Juruá, uma das áreas autorizadas.
A segunda etapa é a contagem dos pirarucus do ambiente. A técnica desenvolvida pela comunidade com o apoio de pesquisadores se utiliza de uma peculiaridade desse peixe: a de aliar respiração aérea e branquial. De tempos em tempos, ele vem à superfície para respirar, o que permite um levantamento de quantos animais adultos e jovens há naquele lago.
Essa informação é então disponibilizada para o Ibama. Conforme a contagem e o histórico da população do peixe na área, o órgão determina a cota permitida de abate, que é de no máximo 30% dos indivíduos adultos registrados. Os 70% restantes permanecem no local para assegurar a reprodução e o crescimento dos jovens.
Na sequência, vem a fase mais complexa: a preparação para a pesca. “Se não for bem planejada, pode dar errado. Por isso, é preciso uma grande organização para que ela aconteça”, conta Dias.
Com tudo organizado e a autorização do Ibama em mãos, a comunidade realiza a pesca. “Ninguém faz isso de forma individual, é um movimento comunitário sempre. Em média, cada ação de manejo envolve 15 famílias”, ressalta.
Por fim, há o escoamento dessa produção, uma logística trabalhosa, já que os lagos costumam ser bem no interior da Amazônia. No manejo coordenado pela Asproc, por exemplo, ficam a três dias de barco da cidade de Carauari e, de lá, mais sete dias até Manaus.
“No nosso caso, existe ainda uma etapa extra, de beneficiamento. Para isso, a Asproc tem uma unidade de beneficiamento, que transforma o peixe em filés para o mercado”, acrescenta o assessor. A associação tem uma marca própria chamada Gosto da Amazônia.
Desde que o plano de manejo foi implementado, o pirarucu voltou a habitar grande parte das várzeas amazônicas. Os resultados são impressionantes: só no Médio Juruá, de 2011, ano da primeira experiência, até 2021, a população monitorada da espécie cresceu mais de 600%. A pesca mais recente, do último trimestre do ano passado, superou 150 toneladas de pescado.
“Algumas pessoas ficam impressionadas com como a gente tira essa quantidade de peixe do lago e no outro ano tem mais. Porque o manejo é exatamente isso: retirar dentro da capacidade de suporte. Tiramos o peixe um mês, mas nos outros 11 ele está sendo protegido. É uma questão fantástica mesmo”, comenta Adevaldo Dias.
Junto com a preservação do pirarucu, o sistema traz outros benefícios. Garante, por exemplo, o enriquecimento da área com outras espécies de peixes, a fartura e a segurança alimentar para quem vive na região, além de promover maior participação feminina na atividade pesqueira.
Nos últimos dez anos, só no Médio Juruá, a população monitorada de pirarucus cresceu mais de 600%
Para a economia local, também é um ganho considerável. As comunidades extrativistas da Amazônia trabalham, como Dias bem definiu, com uma cesta de produtos da floresta — existe o período dedicado ao pirarucu, outro ao látex para fabricação de borracha, depois à coleta de sementes para a indústria cosmética e assim por diante —, mas o pirarucu tem, a cada ano, representando um volume crescente dentro dessa cesta, gerando a maior receita.
O ganho mais representativo, no entanto, está além dos indicativos numéricos. A adoção do manejo participativo ressignificou a relação das comunidades tradicionais com o meio ambiente e, acima de tudo, fortaleceu a organização social.
“Imagina, nas distâncias em questão, cuidar de um produto tão perecível e dar conta de viabilizar isso. Quando você se organiza para fazer o manejo, que é uma atividade supercomplexa, se capacita também para resolver outros problemas da comunidade. Estamos num local muito isolado, ausente de tudo. Então, ou somos muito bons em nos mobilizar ou a gente desaparece”, analisa Dias.
Ele considera o manejo do pirarucu a melhor estratégia de conservação da Amazônia, exatamente porque envolve os povos da floresta, protagonistas em todo o processo. E os resultados reforçam essa visão, com significativos benefícios ambientais, sociais e econômicos.
Embora as conquistas sejam expressivas, a cadeia extrativista do pirarucu ainda tem suas dificuldades. Uma delas é o consumidor não perceber o valor da iniciativa, o que faz com que as comunidades ganhem pouco pelo quilo de peixe comercializado, muitas vezes nem cobrindo o seu custo.
Para a Asproc, reverter esse quadro requer uma melhor comunicação. “A pessoa chega ao supermercado, vê a nossa marca de pescado e não sabe o que nos diferencia de outros pirarucus, que vieram de um processo que explora as comunidades e destrói o meio ambiente. Não soubemos ainda comunicar bem esse diferencial”, avalia o assessor.
A falta de políticas públicas que reconheçam a importância do serviço de proteção prestado por essas comunidades é outro ponto sempre debatido.
Mas, principalmente, há desafios relacionados à carência de infraestrutura, o que dificulta e encarece o trabalho. “Em lugares tão isolados assim, às vezes não tem nem onde comprar gelo para levar o peixe, ou não existe uma embarcação para alugar, como se aluga um caminhão ou um carro, para fazer o nosso serviço”.
Para auxiliar nesses desafios, algumas entidades não governamentais têm desenvolvido parcerias com os manejadores. Na região do Médio Juruá, um exemplo é o projeto Pesca Justa e Sustentável, que tem o apoio do Fundo JBS pela Amazônia para lidar com um dos problemas de infraestrutura.
O programa visa a aquisição de uma embarcação certificada, que garanta as condições adequadas para o escoamento da produção no processo de pré-beneficiamento, com armazenamento provisório e transporte do peixe entre o lago e o entreposto em Carauari.
E pode ainda ser ampliado, segundo Dias. Está em estudo a possibilidade de o pescado, após processado como filé, ser transportado nessa mesma embarcação até um grande mercado consumidor como Manaus. “Do entreposto até lá, só de barco. São sete dias de viagem e não temos uma estrutura refrigerada para isso”, conta.
Outro projeto na região, financiado pelo Innovation Challenge, iniciativa do PNUD Brasil, tem contribuído para levar informação ao mercado consumidor. Um sistema de QR Code permite acompanhar toda a trajetória do pirarucu manejado, desde a pesca até a chegada aos supermercados.
O pescado Gosto da Amazônia, da Asproc, foi a primeira experiência de rastreabilidade da cadeia no estado, em 2020, e a projeção é que seja ampliada para outras áreas de manejo.
O apoio de projetos como esses motivam ribeirinhos e indígenas a seguirem aperfeiçoando o modelo, que já conquistou tanto. “É um nível de amadurecimento formidável. Vendo 30 anos atrás e hoje, ter aprendido a fazer tudo isso, é um avanço sem medida. Dez anos antes, a gente acharia que seria impossível”, finaliza.